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INICIAÇÃO À FILOSOFIA [2009a]

Harada (2009a:26-28) – inter-esse

Do Mito e da Arte

segunda-feira 11 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

Interesse   se lê inter-esse. Inter se pode interpretar ora como entre, mas também como dentro. O dentro, porém, do inter não é dentro de uma coisa-bloco, mas sim dentro do “entre-meio”, no médium. O nosso problema é que sempre ainda representamos o médium como um bloco liquidificado ou rarefeito a modo de um espaço vazio, semi-vazio, ou cheio de uma substância sublimada etérea. E não como a dinâmica de estruturação do vir-a-ser-mundo como acontece p. ex. no médium denominado, musicalidade.

O que acima denominamos de interesse  , se o olharmos bem, não é nem subjetivo nem objetivo. Pois, os adjetivos ‘subjetivo e objetivo’ se referem ao sujeito homem (subjetivo) e a coisa-objeto (objetivo) como ente-bloco, algo, como um quê em si. Pois, o interesse, considerado na Arte, i. é, no conjunto artista-ato criativo-obra de arte é o que acima denominamos de essência.

Interesse se lê inter-esse. Inter se pode interpretar ora como entre, mas também como dentro. O dentro, porém, do inter não é dentro de uma coisa-bloco, mas sim dentro do “entre-meio”, no médium. O nosso problema é que sempre ainda representamos o médium como um bloco liquidificado ou rarefeito a modo de um espaço vazio, semi-vazio, ou cheio de uma substância sublimada etérea. E não como a dinâmica de estruturação do vir-a-ser-mundo como acontece p. ex. no médium denominado, musicalidade. [25]

Aqui a tonância impregna toda a sinfonia a se “estruturar” em e como mil e mil diferentes composições e constelações de composições, cujos elementos constitutivos não são átomos blocos, mas sim concreções de modalidades e modulações tonais em percussões e repercussões. Esse conjunto, essa syn-phônica ora se abre, ora se fecha, na expansão e no recolhimento sucessivos e simultâneos, cada vez todo, de todo, no movimento vivo e concreto de determinações em infindas possibilidades de repetições moduladas. Esse “estar no”, esse “ser-em” é o inter-esse. Essa maneira de “descrever” parece só se referir à obra, aqui à execução. Mas para que haja execução da sinfonia temos a partitura da música, os compositores e tudo que a eles se refere enquanto compositores e músicos, diversos instrumentos; os membros da orquestra, maestro e os instrumentistas, o coro e seus componentes, a sala de concerto, os ouvintes; todo o processo que em contínuos e repetidos ensaios e exercícios forma tanto o maestro como os componentes da orquestra, os próprios instrumentos que foram artesanalmente confeccionados; o sistema de microfones, o sistema de gravação da música, da sua transmissão no rádio e televisão etc. Tentemos ter tudo isso presente bem concretamente, quando aqui dizemos de modo esquemático e formal  : o conjunto artista-ato de produção artística da obra de arte. E isso não como fila ou amontoado de entes ajuntados e enfileirados como ente-blocos, um ao lado do outro, mas na dinâmica do seu tomar-se, consumar-se em diversos e variegados modos de ser em concreção, que, no seu todo e em cada momento da dinâmica da expansão e do recolhimento, está impregnado da mesma “causa”, ou melhor, do mesmo “princípio”, da mesmidade no ser, formando todo um mundo no seu ser. A esse movimento denominamos realizações ou estruturações da realidade e realidade das estruturações.

Para perceber como o inter-esse é o que possibilita, faz surgir, sustenta tanto a obra de Arte como o artista e sua ação criadora, vamos dar um outro exemplo, já usado numa outra ocasião, num outro artigo [1]. Esse [26] exemplo, mais do que o exemplo anterior tenta conduzir a consideração do interesse, do “setor” subjetivo dentro do sujeito-eu para o inter-esse “anterior” e mais “fundamental”, a partir e dentro do qual se constituem tanto o sujeito como o objeto [2] de uma determinada ação. Um artista. Digamos um organista. Toca fuga de Bach. O livro com as notas musicais diante de si. Os dedos transmitem a leitura das notas ao órgão. Dali surge a fuga. E o organista ouve a fuga produzida. Posso considerar a produção da música como uma sucessão linear de causa e efeito: o livro de notas musicais, o olho-leitura, o movimento dos dedos, o órgão, o som, o ouvido-ausculta. Vamos suspender essa consideração que enfoca o aspecto produtivo causai da fuga. Examinemos o fenômeno de imediato, diretamente: Um homem debruçado sobre o órgão. Todo o seu ser é concentração. Para onde se concentra o seu ser? Para a produção da fuga? Para pôr em obra as normas técnicas da execução musical? Digamos que o nosso organista domina a técnica de execução. Os dedos obedecem espontaneamente aos mínimos detalhes do seu comando. O movimento do dedilhado lhe flui do querer sem resistência, de tal sorte que o organista não precisa mais se concentrar na execução.

Mas, então, para onde se recolhe o vigor da sua concentração? Para a ausculta. Ele é todo ouvido na concentração. Mas para a ausculta de quê? Para a ausculta da fuga de Bach que sai dos tubos sonoros do instrumento-órgão? Certamente o organista ouve a fuga de Bach como música por ele produzida através do instrumento. Mas esse ouvir, assim explicado, não coincide com a ausculta aberta no recolhimento da concentração. Pois ele, ao ouvir a música produzida, percebe nela, por exemplo, a ausência do vigor, do colorido, do frescor; sente como a sua música não tem ressonância, não se sustenta, não se liberta para o júbilo da festa, não consegue dizer a profundidade da dor, não vibra, não tona, não [27] saltita. Com outras palavras, o artista percebe que a sua fuga não “está no ponto”. Por conseguinte, o organista, ao ouvir a música produzida, mede-a simultaneamente a partir de… Mas a partir de quê? Onde está, em que consiste esta medida, o “ponto” da plenitude? A nossa representação objetiva essa medida no interior do artista. Mas onde está? o que é essa interioridade? A pergunta não tem resposta, pois a interioridade não está no espaço-onde extensional “físico”, “anímico” nem “espiritual”. Antes, é ela a fonte, a nascividade do tempo e espaço da ressonância toda própria, da musicalidade das músicas, do mundo da música. Em outras palavras, a pergunta-onde e a sua resposta, por operarem a partir e dentro do espaço objetivado da re-presentação, algo ou objeto, estão “fora” da dimensão da interioridade aqui em questão. Mas o que é essa interioridade? Essa interioridade está na obra da Arte? Na ação criadora da execução da obra? No artista? Ela está em toda a parte. É o inter-esse que impregna, penetra todos os poros, todos os momentos do conjunto Arte, artista, ação criadora e obra da Arte e tudo que se refere à Arte em diversas implicações, como prolongamento de estruturações do mundo da música. E isto desde a ausculta, a mais pura e sublime de um artista inteiramente doado à limpidez da criatividade da Música-Arte, até mesmo às implicações já bastante desfocadas e desafinadas da venda e do lucro, provenientes do comércio dos produtos de Arte. Essa interioridade não é nem dentro, nem fora, mas sim é um “ser em” como vigência de uma presença onipresente, em cada momento do conjunto, a fazer surgir, crescer e se consumar a percussão e a repercussão da realização e realizações da realidade: a musicalidade, o ser da musica, o inter-esse do mundo-Música.

Essa vigência se chama essência. Portanto, observemos “onde” se “localiza” o que acima denominamos essência, o inter-médio in-pregnante, onipresente em todos os momentos, em todas as articulações, em todos os movimentos estruturantes do todo, envolvendo, inundando e irrigando tanto o artista, como a ação criadora, como também e principalmente a obra de Arte. E perguntemos o que é, quem é esse inter-esse? [28]


Ver online : Hermógenes Harada


[1Harada, Hermógenes, Reflexões de quem não sabe o que é oração, in: coleção de artigos de vários autores, no livro intitulado A oração no mundo secular, 2a ed. Vozes, Petrópolis 1972.

[2Se não ficarmos atentos, podemos estar entendendo tanto sujeito como objeto como uma determinada coisa-bloco. Aqui devemos entender cada vez, tanto sujeito como objeto como mundo na sua complexa textura na dinâmica das suas implicações.