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Iniciação à Filosofia [Harada2009a]

Harada (2009a:20-24) – a coisa

Do Mito e da Arte

segunda-feira 11 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou num modo inteiramente vazio de conteúdo ou prenhe de possibilidades concretas de conteúdo.

Entrementes para nós hoje, há coisa e coisa. Coisa, usualmente é objeto. Coisa como Objeto, em diferentes níveis, está, de alguma forma, referida ao projeto da ação e do saber do sujeito-homem. Coisa como Coisa se refere mais a um fato da natureza virgem, ainda intacta da indústria humana. E, em vez de objeto e coisa, dizemos de um modo inteiramente geral algo. A coisa objeto e a sua coisalidade, e o fato natural, e o algo e suas coisalidades, o que é? Há algo anterior à coisa objeto (produto do homem) e à coisa fato natural (produto da natureza)? Algo comum a todas as coisas? Em alemão existem vários termos referidos ao que denominamos coisa, a res, a realidade e suas realizações: por exemplo, etwas (algo), das Seiende   (o ente), das Sein   (o Ser), [1] der Gegenstand   (objeto), das Objekt (objeto), e principalmente das Ding   (coisa) e die Sache (coisa).

O ponto nevrálgico, a observar aqui, está nisso: nós usualmente pensamos que esses termos indicam coisa no sentido desse ente ou daquele ente. Sem dúvida, os termos mencionados o fazem, mas ao mesmo tempo, obliquamente nos remetem ao modo de ser da “classe” da coisalidade, a que pertencem os entes, esses ou aqueles entes. De que se trata, pois? Tentemos dizer de que se trata, através de uma explicação. Com “algo” posso predicar tudo, até mesmo o nada. Esse tipo de “classificação”, contém sob a extensão da sua coisalidade todas as “coisas”, mas sem nenhum conteúdo, a não ser o de “ser um quê”, totalmente indeterminado, abstrato e geral. “Objeto” já é uma classificação da coisalidade que subsume sob a sua extensão as “coisas feitas pelo Homem” [2]. À coisalidade da classe “Coisa” pertencem primeiramente as “coisas produzidas pela Natureza e também os objetos acima mencionados [3]. O ente e o ser indicam “as coisas” numa indeterminação ou num modo inteiramente vazio de conteúdo ou prenhe de possibilidades concretas de conteúdo. Isso em português. Como acima mencionamos, em alemão, além de etwas (algo), Objekt (objeto), Sache (coisa) temos Gegenstand (objeto), Ding (coisa). Aliás em português popular do Brasil, temos p. ex. troço, trem. Quando entram em cena termos do uso popular, a gente fica um tanto “abalado” pois nos soam tão concretos e vivos, de tal modo que se tem a sensação de se ter a coisa, ela mesma, diante da gente, e no entanto quando se pergunta de que se trata, nada dizem, a não ser um vago indeterminado “algo”, embora diferente do algo, pois é vago e indeterminado a modo todo e bem concreto. Sem muita precisão nem certeza, possamos talvez dizer que o termo alemão Objekt indica as “coisas” que são casos na coisaiidade das ciências naturais na sua formalidade abstrata; ao passo que Gegenstand se refere às “coisas” consideradas de modo menos formal   e abstrato, e tomadas das considerações mais abrangentes, estendidas sobre todas as coisas, numa captação mais imediata da vida; Ding também indicaria “coisas” no sentido parecido com Gegenstand, mas mais referidas às “coisas” produzidas pelo Homem, “coisas” que se aproximam do modo de ser de uma obra artesanal, feita à “mão”; [4] e Sache, a coisa no sentido de causa, entendida talvez como aquilo que atinge o âmago do interesse   como “a coisa ela mesma”. Sache possui a mesma radical da Sage (do verbo sagen   = dizer, falar), e significa também saga, lenda, narrativa heroica, mito, indicando as “coisas” todo próprias, referidas à tradição antiga, primitiva e originária no início da História.

É necessário não esquecer que essas palavras indicam grupos de coisas, mas que, em indicando coisas, conotam “tipos de coisas”, ou a tipicidade dos modos de ser das coisas, i. é, o cunho, o caráter próprio de ser. É o que acima denominamos de coisalidade. São portanto cada vez conceitos classificatórios dos diversos modos de ser das coisas. Só que, quando se trata de modo de ser, não é de precisão a gente chamar esses termos de classificatórios. Pois classe indica região, área, setor de um modo de ser, mas não tematiza o modo de ser característico de cada modo de ser. É que ser indica não isso ou aquilo, mesmo que isso ou aquilo seja região, classe, grupo de coisas, mas sim o “que ” impregna as coisas de todo, de “cabo a rabo” plena e completamente, de tal maneira que se identifica inteiramente com isso e aquilo, com a coisa, e no entanto não se iguala a ela. Por isso aqui em vez de classe, usemos a palavra horizonte. Assim, algo, objeto, coisa, vulgo troço, trem, em alemão, etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, Sache, são horizontes, totalidades dos entes de um certo modo de ser, no seu todo, na sua coisalidade. Mas então, o que é Horizonte! De modo bastante imperfeito e desajeitado podemos talvez dizer que Horizonte é “espaço” de abertura, a partir e dentro da qual as coisas vêm ao encontro e de encontro a nós, se nos apresentam, i. é, aparecem numa certa, cada vez diferenciada determinação de ser. Quanto menor a determinação na sua diferenciação, quanto mais geral a determinação, tanto mais vagos, indeterminados, vazios de conteúdo se nos apresentam os entes que aparecem a partir de e em um horizonte. E o caso do horizonte “algo” e os seus entes. Assim, entre algo, objeto, e coisa, em alemão, entre etwas, Objekt, Gegenstand, Ding, e Sache há uma espécie de “escalação” de adensamento “qualificativo” na determinação diferencial dos horizontes. E isto de tal modo que, na medida desse adensamento horizontal, a identificação ou a coincidência entre horizonte e os seus entes se intensifica. Assim, no caso da “coisa ela mesma”, em alemão Sache, o horizonte não é propriamente “espaço” dentro do qual se acham os entes, mas o horizonte se toma por assim dizer a dinâmica da estruturação da presença do ente ele mesmo no que há de próprio. Em vez de horizonte podemos também usar com maior concreção e propriedade a palavra mundo (Welt  ) na acepção do uso quando dizemos “isso contém todo um mundo de implicâncias”. Só que, se usamos o termo mundo em vez de horizonte, pode acontecer que no caso do horizonte algo, haja o mínimo ou nada de implicância, a tal ponto de a mundidade se “apresentar” como um “espaço vazio” e ali dentro o ente, ao passo que no Ding, as estruturações e texturas das implicâncias, constitutivas da mundidade se tomam bem complexas e densas, e na Sache se adensam, a ponto de aqui, se não tivermos boa sensibilidade própria de captação, a mundidade se apresentar como o oposto do horizonte algo (= espaço vazio), a saber como um bloco maciço ali ocorrente em si. No entanto, se conseguirmos ver bem, o que parece um bloco maciço, na realidade, é como o sumo, a concentração de todas as estruturas e implicâncias de um mundo numa coesão plena, densa, a tal ponto que essa auto-identidade de concentração monadológica inclui todos os mundos, digamos numa única singular perfilação do abismo insondável de ser. E provavelmente o caso da obra de Arte. Assim é radicalmente diferente um bloco de cimento maciço opaco na sua coisalidade de ocorrer e a presença de uma obra de Arte na mundidade da sua densidade de ser. No entanto, pode-se dar em nós uma espécie de miopia, em relação à clareira do horizonte ou do mundo na sua mundidade. Nessa miopia, vemos tudo como coisas-bloco, uma ao lado da outra. Trata-se de uma impostação do nosso “ver”. Esse “ver”, ao ver os entes, inclusive a nós mesmos, vê tudo como essa “coisa” maciça, esse bloco em si, e o faz sem nenhuma referência às estruturas e às texturas das estruturações do ente na sua mundidade, portanto apenas como isto e aquilo isolado ou ilhado em si. E isso de tal modo que a mútua relação entre os entes se estabelece a partir de fora, como relações acidentais que não dizem respeito à interioridade da coisa. Dito de outro modo, esse ver não vê a coisa na sua essência. E quem é o agente dessa impostação e dessa mútua relação entre os entes, que cria concatenações entre os entes-bloco? O sujeito homem que está “dentro” do horizonte p. ex. acima mencionado de algo (etwas) ou objeto (Objekt), a partir e dentro do qual capta o ente como ente-bloco, inclusive a si, portanto como este sujeito [5] (ou este grupo, este conjunto nós, vós, eles e elas como bloco) no qual reside um centro, um núcleo “espiritual” eu [6]. Assim, nessa impostação o que captamos da “coisa” ela mesma depende, em última instância, do interesse do sujeito que “vê” esta coisa, aquela coisa, este grupo e aquele grupo de coisas conforme a perspectiva do interesse do “eu”. O horizonte, o mundo na sua mundidade se transforma no interesse, entendido como instância do eu subjetivo. Este se separa do ente que aparece como realidade em si objetiva diante dele e os atos do sujeito se tornam fio de ligação entre o objeto e o sujeito. Nessa impostação, o que denominamos obra de arte é uma coisa, produto da atuação do Homem, enquanto expressão do seu interesse subjetivo denominado interesse artístico-estético. O que comanda e dá o caráter todo próprio denominado artístico-estético é o interesse subjetivo do sujeito-homem. Por ser expressão do sujeito-homem, para compreender a obra de arte é necessário conhecer no sujeito artista coisas como a hereditariedade físico-anímica, as suas experiências, suas ideias e vivências, as influências recebidas do meio ambiente sócio-cultural, sócio-econômico etc, expressas e exteriorizadas no produto-obra de Arte, tendo como meios dessa exteriorização diversos materiais, conforme as modalidades da expressão artística como p. ex. na música, literatura, nas artes plásticas, no teatro  , cinema etc etc.


Ver online : Hermógenes Harada


[1O ente (das Seiende) e o ser (das Sein) são termos que dizem tudo e nada, indicando a imensa, profunda e a mais criativa questão do sentido do ser. Assim sendo, pode indicar o significado, o mais abstrato e geral e, ao mesmo tempo, o mais concreto, singular, denso e universal de toda a realidade das realidades.

[2Mas objeto pode também ser usado com a mesma função de algo.

[3Mas coisa aqui pode ser também um termo usado com a mesma função de algo.

[4Cfr. nota 16. Aqui trata-se de artefato cuja densidade de ser não é a de um simples ustencílio.

[5Sujeito aqui, embora diferenciado do objeto, no fundo participa da mesma coisalidade. A diferença de ser entre sujeito e objeto é encoberta debaixo de uma compreensão prefixada do ser, comum a dois, de modo que o próprio sujeito (Homem) é considerado como um caso do objeto.

[6Se eu aqui é entendido como eu empírico ou como eu transcendental, no fundo parece não haver muita diferença no que se refere ao sentido do ser dominante no horizonte algo ou objeto.