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Heidegger et l’essence de l’homme

Haar (1990:139-143) – o salto (Sprung)

terça-feira 30 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Alves

O que é o «salto»? Por que é preciso um salto? O salto é verdadeiramente um acto, uma atitude «voluntária» do pensamento? Nós arriscamo-nos aqui a ser logrados pelo preconceito da subjectividade, a saber: a ideia de que o pensamento deve [134] colocar o seu objecto e que deve apoderar-se dele por meio de categorias… imaginamos que não há outra alternativa; ou o pensamento é um trabalho conceptual, uma operação de fundação e de delimitação objectivante, ou então é um reflexo, uma imagem, um epifenómeno. Ora pode existir actividade de pensamento sem que haja objectivação, determinação a partir do pensamento. Reflectindo sobre a tradição da palavra mein na sentença de Parménides (to auto esti mein te kaieinai), Heidegger faz notar que o equivalente habitual, «apreender», «captar», é ambíguo. Noien pode significar a receptividade que a conceptualidade informa e transforma, à semelhança da receptividade da sensibilidade de Kant   submetida à espontaneidade do entendimento. «Ora mein não significa precisamente uma tal aceitação passiva». Noein   também não significa o inverso, a captação, no sentido de tomada, captura, mão-colocada. O noein não é nem uma passividade nem uma tomada como captura, mas uma «tomada com cuidado» (in die Acht nehmen  ). O seu pensamento, como noein, corresponde a um logos   não dominador, um logos que não é cálculo racional, mas recolhimento, semelhança, «deixar ser de modo semelhante».

A ideia de que todo o pensamento deve primeiro querer, deve primeiro pôr o ser como objecto, repousa também num preconceito relativo à acção. O agir deve ser, crê-se, criação, produção de resultados, deve introduzir o novo e o nunca visto. Ora a acção não poderia ser um começo absoluto, mas apenas continuação do que é, realização. «Só conhecemos o agir como a produção dum efeito cuja realidade é apreciada segundo a utilidade que oferece. Mas a essência do agir é o realizar. Realizar significa: desenvolver uma coisa na plenitude da sua essência, atingir essa plenitude, producere. Não pode pois ser realizado a não ser aquilo que já é». Qualquer acção se apoia no que é, o que não impede que haja um salto entre o agir e o não agir.

Do mesmo modo, há um salto no começo do pensamento, no sentido em que precisamente ele não começa a partir dele próprio, e todavia começa. Pensar — tal como nadar exige que nos atiremos à água — exige que nos confiemos ao elemento que [135] torna possível o pensamento. O acesso a este elemento é um acto (que só pode ser súbito, sem transição), um movimento pelo qual o pensamento se afasta do ente familiar, sem o abandonar, para se ir colocar face ao enigma: que o ente é. «O salto é sempre um começo, mas não é um abandono. O domínio de que o salto nos distancia pode, pelo contrário, ser visto de cima e de outro modo, e é apenas pelo salto que ele pode sê-lo. O salto do pensamento não deixa atrás dele o seu ponto de partida, mas apropria-se dele duma maneira mais original». O salto implica uma brusca mudança de registo, ou de terreno, uma outra perspectiva, ou um outro modo, uma nova «colocação do ponto» como dizem em fotografia. É uma modificação da compreensão do ser, que de latente se torna explícita, se torna questão. Esta modificação pode aplicar-se aos entes do mundo tal como às proposições metafísicas. Descobrir a presença das coisas presentes, e por aí tudo o que sabemos delas, necessita de um salto. Do mesmo modo que necessita dum salto, passar do princípio da razão como proposição lógica: «nenhum ente é desprovido de causa que o determina a ser o que ele é», a um enunciado concernente ao ser: «nada — nenhum ente, quer dizer, o próprio ser — é ele próprio sem razão, é ele próprio abismo». Quando o pensamento passa da reflexão sobre o princípio de razão à meditação sobre o carácter infundável do ser, ele não a abandona, não renega a possibilidade da racionalidade, mas recua, volta ao aquém do racional. O salto é a passagem «sem sair do lugar» do ente ao ser. Uma tal passagem não suporta transição, só pode ser feita num instante, mesmo que seja depois preciso ao pensamento muitas palavras para a explicitar.

Pelo salto o pensamento ganha ou reganha, dum golpe, por uma inclinação (er-springt, diz Heidegger), a sua pertença ao ser. Por aí essa inclinação do pensamento antecipa a sua tarefa, atinge de repente o domínio que deve explorar. «O salto atravessa com a sua inclinação (durchspringt) o domínio (Bereich) que se estende entre o ente e o ser». Este entre-dois (Zwischen  ), esta distância que percorre o salto, é ao mesmo tempo imperceptível, à força de ser diminuta, já que nada, para falar com justeza, separa o ente [136] do ser (o ser não é um lugar separado), e imenso, pois que o ser ausenta-se, retira-se na massividade do ente. Heidegger opõe o repentino do salto à lentidão da passagem, que Kant chama «dedução», que remonta do objecto à sua condição de possibilidade.

A simplicidade do salto «sem sair do lugar» opõe-se à complexidade da representação. Assim, como fazemos por nos tornar presente o ente que está perante nós, por exemplo uma árvore ou uma flor? O pensamento representacional tem necessidade de mediações, tais como o juízo ou o esquema corporal. O pensamento do ser contenta-se em deixar estar a árvore no seu sítio, e em dizer: a árvore apresenta-se a nós. Onde há aqui um salto? Há um salto quando voltamos da percepção ao ser-descoberto, à auto-doação do mundo, que suprime o primado da percepção. A apresentação não é assunto dum sujeito e não se joga na sua cabeça. Ela está aí, onde está a coisa. Assim o salto consiste em reencontrar o solo original, em repor os pés em terra. «É algo estranho ou mesmo sinistro, ter primeiro que saltar para atingir o próprio solo em que nos encontramos». Nós só compreendemos que o face a face com as coisas não seja o dum sujeito face a um objecto, se efectivamente voltarmos às próprias coisas, e para que tal aconteça é preciso sairmos para fora do centro que a nossa subjectividade ocupa como evidente. Eis o salto que se traduz numa questão simples: «Estará a Terra na nossa cabeça ou estaremos nós de pé sobre a Terra?».

«Sinistro», como o peso morto duma tradição de desconfiança e desenraizamento, é o esquecimento que nos impede espontaneamente nesta posição que nos parece sempre de repente simplificadoramente «realista». O salto aparece, antes de mais, como uma inversão da metafísica, senão como uma aversão por ela. Ele supõe uma libertação em relação à representação, que nenhum raciocínio pode realizar. Seremos nós livres de dar o salto? Sim e não. «O salto mantém-se uma possibilidade livre do pensamento». Somos nós que o damos. Pela nossa própria cabeça, de plena vontade, mas de certeza que não «voluntariamente». O salto revela onde se situa a verdadeira «região onde reside a essência da liberdade». Adivinhamos que essa região não é o homem. Pois que se o podemos realizar, é porque o ser no-lo permite, chamando-nos a ele. Nós só somos transportados para o terreno do ser por «favor» (Gunst) do ser. Tal como, sem a luz do ser, os entes não poderiam aparecer perante nós, também se o ser não nos chamasse, não nos atraísse a si, não haveria salto, não haveria pensamento possível.

E se o ser nos chama é porque se retira! Heidegger estabelece uma correlação entre o Entzug  , o retiro do ser, o Zug, a atracção do pensamento que é levado até ele, e o Bezug  , a relação com o ser. «Como retiro (Entzug) destinal, o ser tem sempre já em si passagem (Bezug) à essência do homem». Só há pensamento, quer dizer, relação com o desvelamento porque o ser se retira. Somos movidos pelo próprio movimento da retirada. «O que se retira perante nós atrai-nos precisamente pelo mesmo movimento na sua direcção». Também aqui se nota a docilidade do pensamento a respeito do que lhe dita o ser. A relação fundamental é bem aquela que vai do ser ao homem.

Original

Qu’est-ce que le «saut» ? Pourquoi faut-il un saut ? Le saut est-il vraiment un acte, une attitude «volontaire» de la pensée ? Nous risquons ici d’être abusés par le préjugé de la subjectivité : l’idée que la pensée doit poser elle-même son objet, et s’en emparer par le moyen des catégories… On imagine qu’il n’y a qu’une alternative : que la pensée soit un travail conceptuel, une opération de fondation et de délimitation objectivante, ou alors qu’elle soit un reflet, une image, un épi-phénomène. Or il peut y avoir activité de pensée sans qu’il y ait objectivation, détermination à partir de la pensée. Réfléchissant sur la tradition   du mot noeïn dans la sentence de Parménide   (to auto esti noeïn te kaï eïnaï), Heidegger fait remarquer que l’équivalent habituel, «appréhender», «saisir», est ambigu. Noeïn peut signifier la réceptivité que la conceptualité informe et transforme, comme chez Kant la réceptivité de la sensibilité est soumise à la spontanéité de l’entendement. «Or c’est précisément une telle acceptation passive que noeïn ne signifie pas». Noeïn ne signifie pas non plus l’inverse, la saisie au sens de prise, de capture, de main-mise. Le noeïn n’est ni une passivité ni une prise comme capture, mais une «prise en garde» (in die Acht nehmen). Sa pensée comme noeïn correspond à un logos non dominateur, un logos qui n’est pas calcul rationnel, mais recueillement, rassemblement, «laisser être en mode rassemblé».

L’idée que toute pensée doit d’abord vouloir, doit d’abord poser l’être comme objet, repose aussi sur un préjugé relatif à l’action. L’agir doit être, croit-on, création, production de résultats, doit introduire du neuf et du jamais vu. Or l’action ne saurait être un commencement absolu, mais seulement continuation de ce qui est, accomplissement. «On ne connaît l’agir que comme la production d’un effet dont la réalité est appréciée suivant l’utilité qu’il offre. Mais l’essence de l’agir est l’accomplir. Accomplir signifie : déployer une chose dans la plénitude de son essence, atteindre à cette plénitude, producere. Ne peut donc être accompli proprement que ce qui est déjà». Toute action s’appuie sur ce qui est, mais il n’empêche qu’il y a un saut entre l’agir et le non agir.

De la même façon, il y a un saut au commencement de la pensée, au sens où précisément elle ne commence pas à partir d’elle-même, et cependant commence. Penser - tout comme nager exige que l’on se jette à l’eau - exige que l’on se confie à l’élément qui lui-même rend possible la pensée. L’accès à cet élément est un acte (qui ne peut être que soudain, sans transition), un mouvement par lequel la pensée s’écarte de l’étant familier, sans l’abandonner, pour aller au-devant de l’énigme : que l’étant est. «Le saut est toujours un départ, mais il n’est pas un abandon. Le domaine dont le saut nous éloigne peut, au contraire, être vu d’en haut et autrement, et c’est seulement par le saut qu’il peut l’être. Le saut de la pensée ne laisse pas derrière lui ce dont il part, mais il se l’approprie d’une façon plus originelle». Le saut implique un brusque changement de registre, ou de terrain, une façon de voir d’ailleurs, ou autrement, une nouvelle «mise au point», comme on dit en photographie. C’est une modification de la compréhension de l’être, qui de latente devient explicite, devient question. Cette modification peut s’appliquer aux étants du monde aussi bien qu’aux propositions métaphysiques. Découvrir la présence des choses présentes, par delà tout ce que nous savons d’elles, nécessite un saut. De même, passer du principe de raison comme proposition logique : «aucun étant n’est dépourvu de cause qui le détermine à être ce qu’il est», à un énoncé concernant l’être : «rien - aucun étant, c’est-à-dire l’être même - est lui-même sans-raison, est lui-même abîme», nécessite un saut. Lorsque la pensée passe de la réflexion sur le principe de raison à la méditation sur le caractère infondable de l’être, elle n’abandonne pas, ne renie pas la possibilité de la rationalité, mais prend recul, revient en deçà du rationnel. Le saut est le passage «sur place» de l’étant à l’être. Un tel passage ne supporte pas de transition, il ne peut se faire que dans un instant, même s’il faut ensuite à la pensée beaucoup de mots pour l’expliciter.

Par le saut la pensée gagne ou regagne, d’un seul coup, par un élan (er-springt, dit Heidegger) son appartenance à l’être. Par là cet élan de la pensée anticipe sa tâche, atteint d’emblée le domaine qu’elle doit explorer. «Le saut traverse de son élan (durchspringt) le domaine (Bereich) qui s’étend entre l’étant et l’être». Cet entre-deux (Zwischen), cette distance que parcourt le saut est à la fois imperceptible, à force d’être mince, car rien à proprement parler ne sépare l’étant de l’être (l’être n’est pas en un lieu séparé), et immense, car l’être s’absente, se retire dans la massivité de l’étant. Heidegger oppose la soudaineté du saut à la lenteur du passage, que Kant appelle «déduction», qui remonte de l’objet à sa condition transcendantale de possibilité.

La simplicité du saut «sur place» s’oppose à la complexité de la représentation. Ainsi, comment faisons-nous pour nous rendre présent l’étant qui est devant nous, par exemple l’arbre en fleur ? La pensée représentationnelle a besoin de médiations, telles que le jugement, ou le schéma corporel. La pensée de l’être se contente de laisser être l’arbre là où il est, et de dire : l’arbre se présente à nous. En quoi y a-t-il un saut ? Il y a un saut en ce que nous «revenons» de la perception à l’être-découvert, à l’auto-donation du monde, qui supprime le primat de la perception. La présentation n’est pas l’affaire d’un sujet et ne se joue pas dans sa tête. Elle est là où est la chose. Ainsi le saut consiste à retrouver le sol original, à reprendre pied sur terre. «C’est une chose étrange, ou même une chose sinistre, que de devoir d’abord sauter pour atteindre le sol même sur lequel nous nous trouvons». Que le face à face avec les choses ne soit pas celui d’un sujet face à un objet, nous ne le comprendrons que si effectivement nous revenons aux choses mêmes, et pour cela il faut nous jeter hors du centre que notre subjectivité occupe comme allant de soi. C’est cela le saut, qui s’exprime dans une question simple : «La Terre est-elle dans notre tête, ou bien sommes-nous debout sur la Terre ?»

«Sinistre», comme le poids mort d’une tradition de défiance et de déracinement est l’oubli qui nous empêche spontanément de nous placer dans cette position qui nous semble toujours d’emblée platement «réaliste». Le saut apparaît tout d’abord comme une inversion de la métaphysique, sinon comme une aversion pour elle. Il suppose une libération par rapport à la représentation, qu’aucun raisonnement ne peut accomplir. Sommes-nous libres de faire le saut ? Oui et non. «Le saut reste une libre possibilité de la pensée». C’est nous qui le faisons. De notre propre chef, et de plein gré, mais sûrement pas «volontairement». Le saut révèle où se situe la véritable «région où réside l’essence de la liberté». On devine que cette région n’est pas l’homme. Car si nous pouvons l’accomplir, c’est parce que l’être nous le permet, en nous y appelant. Nous ne sommes transportés sur le terrain de l’être que par la «faveur» (Gunst) de l’être. De même que sans la lumière de l’être, les étants ne pourraient pas apparaître face à nous, de même si l’être ne nous appelait, ne nous attirait pas à lui, il n’y aurait pas de saut, pas de pensée possible.

Et si l’être nous appelle, c’est parce qu’il se retire ! Heidegger établit une corrélation entre l’Entzug, le retrait de l’être, le Zug, l’attirance de la pensée qui est portée vers lui, et le Bezug, la relation à l’être. «Comme retrait (Entzug) destinai, l’être a toujours déjà en soi trait (Bezug) à l’essence de l’homme». Il n’y a de pensée, c’est-à-dire de rapport au décèlement que parce que l’être se retire. Nous sommes mus par le mouvement même du retrait. «Ce qui se retire devant nous nous attire précisément du même mouvement vers lui». Ici encore se marque la docilité de la pensée à l’égard de ce que lui dicte l’être. La relation fondamentale sera bien celle qui va de l’être à l’homme.


Ver online : Michel Haar


[HAAR, Michel. Heidegger e a essência do homem. Tr. Ana Cristina Alves. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 134-138]