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O Existencialismo perante o Direito, a Sociedade e o Estado

Giuseppe Lumia: existencialismo teísta - René Le Senne

Existencialismo Teísta: (Marcel, Le Senne, Lavelle)

terça-feira 5 de outubro de 2021

LUMIA. (Giuseppe) O EXISTENCIALISMO PERANTE O DIREITO, A SOCIEDADE E O ESTADO. Tradução de Adriano Jardim e Miguel Caeiro  . Colecção « Doutrina ». N.º 3. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1964.


Para sermos completos, não queremos deixar de fazer aqui breve alusão a dois autores cuja temática, na realidade, só em parte se situa no existencialismo, Referimo-nos a René Le Senne e a Louis Lavelle  , expoentes máximos daquela corrente de pensamento que, pelo título de uma muito conhecida coleção que compreende já algumas dezenas de volumes, é costume designar por. «Philosophie   de l’esprit». Nela encontram-se temas próprios do existencialismo com a metafísica espiritualista de inspiração agostiniana.

Para René Le Senne (1882-1954) o indivíduo adquire consciência da sua existência quando se choca com algum «obstáculo» que o contradiz: obstáculo é o erro, o mal, a dor, qualquer coisa que interrompe a atividade espontânea do eu. Põe-se então à nossa livre escolha uma alternativa: sucumbir ao obstáculo, ou triunfar dele, transformando-o em valor. Sucumbindo ao obstáculo, o eu reduz-se a coisa; realizando-o como valor, constitui-se a si mesmo como pessoa. Depende de mim ser para a morte, ou ser para o valor.

0 obstáculo é uma determinação, um limite que o eu encontra na sua atividade, é a natureza, o fato, a «situação»; o valor é o superamento deste limite, é a negação de qualquer determinação, a infinidade, o absoluto. O valor não se realiza concretamente senão no superamento de um obstáculo determinado, mas não se esgota nunca em alguma destas suas determinações. Ele tem, diz Le Senne, duas faces : com uma olha o Absoluto, enquanto com a outra, a que está voltada para nós, é determinado. Os valores cardiais são quatro: o verdadeiro, o belo, o bem e o amor; mas é necessário precavermo-nos contra a tentação de tomar algum deles separadamente e torná-lo absoluto, porque deste modo cairíamos no fanatismo. Pelo contrário, esses valores são solidários e fundam-se todos no valor absoluto, em Deus, que não é este ou aquele valor particular, mas o sol de que todos os valores irradiam, a fonte de que que todos brotam.

Stefanini observa lucidamente que Le Senne está para o existencialismo como Max Scheler   para a fenomenologia; num e noutra introduzem a exigência axiológica. Seja-nos lícito salientar, pela nossa parte, que é possível surpreender ecos fichtianos no existencialismo ético de Le Senne, que vê na natureza, no não-eu, o obstáculo contra o qual a liberdade do homem encontra matéria para exercitar-se indefinidamente, naquele esforço nunca acabado de superamento em que reside o valor da nossa existência. Só que o não-eu é, para Fichte  , o produto inconsciente do eu transcendental  , enquanto para Le Senne também ele tem a sua causa em Deus, aquele «Deus connosco» que, surgindo ao mesmo tempo das nossas contradições e do valor, dá-nos através da insatisfação do presente a esperança e a fé no futuro.

Para Le Senne a sociedade assenta toda na ordem das determinações: identifica-se com a força. A essência do Estado é a sanção. O Estado atua servindo-se de meios materiais, com que comprime a intimidade do indivíduo, impondo-lhe as suas determinações: leis, proibições, regulamentos, imposições. Ao seu nível mais baixo, a sociedade é o exército, que não é senão a ciência e a indústria mobilizadas; ao nível mais alto é o ensino, que fabrica as consciências em conformidade com os programas oficiais. Le Senne reconhece que o Estado, garantindo segurança e continuidade, é até certo ponto indispensável à liberdade e à felicidade, mas põe em guarda contra a consideração deste valor como absoluto, a qual conduz ao conflito ou à decadência. O ordenamento jurídico, sancionado pelo Estado, assegura a unidade da sociedade: ele é também um valor, mas um valor bastante baixo, porque a ordem finita é necessariamente inadequada em relação à infinidade do valor. Uma ordem meramente humana não pode ser perfeita.

Todo o código é o meio caminho entre a necessidade e a beleza: ele oscila da severidade dos tribunais militares, dominados pela necessidade, até à idealidade das academias jurídicas, que são os templos da pureza  . Mas estas oscilações estão encerradas em limites bastante próximos. O direito revela toda a sua insuficiência quando pretende monopolizar toda a vida ética, e estender o seu domínio para além dos limites que lhe são próprios. Quanto mais ele se estender para além das evidências morais que condenam a violência à mão armada ou a falsificação da moeda, tanto mais se revelará o seu caráter arbitrário e impositivo, e aparecerá então como o meio com que certos homens se asseguram o seu domínio sobre outros. Mas este fato, despojando-o de qualquer valor, necessariamente o enfraquecerá, pois é no íntimo das almas que o direito toma a sua força.