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O Existencialismo perante o Direito, a Sociedade e o Estado

Giuseppe Lumia: Abbagnano

Nicola Abbagnano

terça-feira 5 de outubro de 2021

LUMIA. (Giuseppe) O EXISTENCIALISMO PERANTE O DIREITO, A SOCIEDADE E O ESTADO. Tradução de Adriano Jardim e Miguel Caeiro  . Colecção « Doutrina ». N.º 3. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1964.


Dominada durante trinta anos pelo idealismo, a cultura italiana só tarde se interessou pela filosofia da existência. A princípio não a tomou a sério, para o que basta recordar as muito conhecidas e ligeiras apreciações de Croce e De Ruggero. Mesmo pensadores de formação diferente, como Bobbio, nada mais viram nela que a transcrição, em tom filosófico, dos motivos típicos do decadentismo literário. O que feriu os italianos e fez que adotassem para com a filosofia da existência uma atitude resoluta de condenação, foi a grande margem de negativo com que ela se apresentava nos seus corifeus transalpinos, especialmente Heidegger e Jaspers  . Por isso era evidente que, se o existencialismo queria aclimatar-se em Itália, tinha de mudar de aspecto, ou melhor, transformar-se de negativo em positivo.

Foi este objetivo que se propôs Nicola Abbagnano  , o qual com a sua Struttura dell’esistenza, publicada em 1939, pretendeu precisamente, como mais tarde disse, fundar um «existencialismo positivo». Por isso, o existencialismo italiano é posterior uma dúzia de anos ao alemão e ao francês. Mas em compensação, se não é, como já alguém sustentou, «a última palavra do existencialismo», pois que em filosofia a última palavra não será nunca dita, o certo é que ele reelabora a temática existencial em uma forma nova e original que abre o caminho a ulteriores desenvolvimentos, e cujo valor especulativo dificilmente poderá ser negado.

No pensamento de Abbagnano é fundamental o conceito de possibilidade, como estrutura típica da existência do homem. Afirma ele que Kant   ilustrou o aspecto positivo desse conceito, como possibilidade-de-sim, enquanto Kierkegaard   revelou o aspecto negativo, como possibilidade-de-não. Os existencialistas alemães e franceses perderam, segundo Abbagnano, o sentido genuíno do conceito de possibilidade. O existencialismo alemão, em especial, apresenta-se aos seus olhos mais como uma filosofia da impossibilidade. É próprio do homem não coincidir a existência com a essência, quer dizer, o sentido da vida do homem não está implícito no fato de ele existir, é sim um sentido que ele procura. Ora Abbagnano põe em relevo que no pensamento de Heidegger e de Jaspers essa pesquisa do ser revela-se impossível: para Heidegger o homem não consegue desligar-se do nada de que provém, e para Jaspers não consegue atingir o ser para que tende. O ser-para-a-morte de um, e o ser-para-o-naufrágio do outro não representam mais que duas formas de impossibilidade de constituir a existência de modo autêntico.

Só resta, segundo Abbagnano, uma terceira via, que é a de constituir a existência como a própria possibilidade de referência ao ser, como possibilidade de pesquisa do ser, como problematicidade. O homem pode conseguir dar um significado à sua vida, mas pode também não o conseguir: a vida é para ele um problema sempre em aberto, é, melhor dizendo, este mesmo problema. O problema da existência importa uma variedade de soluções, entre as quais todos nós devemos fazer a nossa escolha, que é livre. Problematicidade equivale, portanto, a liberdade.

Para Abbagnano a liberdade não é todavia absoluta. Se a impossibilidade do existencialismo alemão equivale a necessidade, a possibilidade infinita do existencialismo francês (Sartre  , Camus  ) equivale a indiferença. Para Heidegger e para Jaspers o homem não tem escolha, condenado como está sem remissão à morte e ao fracasso. Para Sartre e para Camus o homem é livre de escolher entre infinitas possibilidades todas elas equivalendo-se; mas, precisamente porque se equivalem, permanece de igual modo impossível uma escolha, pois que a equivalência absoluta de todas as possibilidades humanas é, diz Abbagnano, paralisante».

Uma verdadeira liberdade não pode, por isso, ser nem necessidade absoluta, nem infinita possibilidade, mas sim «possibilidade transcendental  », como ele lhe chama. Este conceito é bastante complexo, mas vale a pena determo-nos sobre ele, porque constitui a chave de toda a filosofia de Abbagnano. Possibilidade transcendental significa, antes de mais, que a existência se encontra em face de problemas, que comportam não uma única nem uma infinidade de soluções, mas um número finito de soluções determinadas. O homem encontra-se sempre perante um «campo de possibilidades», e, escolhendo neste, empenha a sua própria responsabilidade., Encontramos já este conceito em Merleau-Ponty  , para quem a liberdade é sempre «liberdade em situação».

Mas Abbagnano usa a expressão «possibilidade transcendental» com outro significado de maior alcance. Com efeito, as possibilidades concretas, historicamente determinadas, entre as quais eu posso escolher, não se equivalem, como pensa Sartre, pois só uma é a possibilidade autêntica, transcendental, sobre que eu tenho de fazer recair a minha escolha, para que esta tenha um valor. Mas qual é o critério normativo que me permite distinguir a escolha autêntica das inautênticas? É precisamente o critério da «transcendentalidade»: uma escolha só é autêntica se tornar de novo e sempre possível uma ulterior escolha, quer dizer, se longe de pretender fechar a vida em soluções definitivas, deixa aberta a porta às possibilidades futuras. Ele apresenta a este respeito um exemplo muito significativo: se um povo é chamado a escolher o seu governo e escolhe um governo que não preza a liberdade, a sua escolha não será a justa, porque, escolhendo um governo tirânico, terá precludido a si próprio a possibilidade de qualquer escolha ulterior. Não basta que um governo seja escolhido pelo povo, para ser um governo livre; é necessário que ele garanta a possibilidade de uma escolha ulterior: «Por isso, nem toda a escolha é liberdade, mas só a escolha que garante a si própria a sua possibilidade».

Como é evidente, o que constitui a autenticidade da escolha é, em última análise, a fecundidade dela. Revela-se aqui a estreita analogia   que aproxima a posição de Abbagnano da do pragmatismo americano, e em especial de Dewey. Para ambos a vida é essencialmente problematicidade: tudo nela é inseguro, precário, incerto. Um e outro regeitam a ideia de um mundo em que os valores humanos sejam garantidos pela sua referência a uma realidade transcendente. Abbagnano, em especial, polemiza com os representantes do existencialismo teológico, afirmando que, quer se conceba Deus como mistério (Marcel), como presença (Lavelle  ) ou como valor (Le Senne), o resultado é oferecer-se ao homem a garantia de que as possibilidades da sua existência se realizem do melhor dos modos. Mas esse ponto de vista, embora consolador, é para Abbagnano mais a expressão de um perigoso desejo do que o resultado de uma análise isenta de prejuízos. Num mundo em que o insucesso, o fracasso, a infelicidade, a dor e a morte são experiências quotidianas, compete-nos introduzir um elemento de ordem, de organização, de valor. A nossa conduta pode revelar-se justificada, tanto na medida em que triunfa nesta direção, como enquanto deixa aberta a possibilidade para ulterior progredir.

Abbagnano concorda com Dewey quanto a uma valorização positiva da técnica e da ciência em geral, mas neste ponto o seu pensamento encontra-se também com outras correntes do pensamento contemporâneo, e especialmente com o neo-positivismo da chamada «escola de Viena». Não encontramos em Abbagnano a habitual acusação contra a técnica e a ciência do mundo contemporâneo, a que nos acostumaram os outros existencialistas — autêntica palinódia que o século XX escreveu contra o orgulho cientista de Oitocentos; encontramos sim a franca verificação de que não é possível de nenhum modo voltar atrás, e que bem melhor será «reconduzir a técnica à sua natureza… e reencontrar no seu seio, como exigências autóctones, os valores fundamentais do homem». Ele vê na ciência o instrumento indispensável para o nosso domínio sobre o mundo e para a satisfação das nossas necessidades, e verifica, por fim, como hoje a epistemologia científica apela para um horizonte categorial diferente do da ciência de Oitocentos, dominada pela ideia de necessidade. Põe em relevo que hoje a matemática forma um todo único com as regras lógicas mercê das quais é construída, enquanto a física se identifica com os seus métodos de observação e de medida. E, na verdade, dizer que «a soma dos ângulos internos de um triângulo é igual a dois ângulos retos», ou que «os fenômenos A e B são contemporâneos», significa simplesmente que «a soma dos ângulos internos de um triângulo pode ser igual a dois ângulos retos» (se nos referimos à geometria euclideana), e que «os fenômenos A e B podem ser contemporâneos» (se se escolher um conveniente sistema de referência).

Por aqui se vê que a ciência também se nos mostra como construída sobre a categoria da possibilidade. E como a possibilidade é a própria estrutura da existência, é lícito concluir que nunca como hoje a ciência se nos apresentou em escala humana, nunca como hoje se nos revelou na sua humanidade.


A orientação fundamental da filosofia de Abbagnano não podia deixar de traduzir-se em uma consideração positiva das relações sociais. Ao problema da coexistência dedica um capítulo, o quinto, da Struttura dell’esistenza, e a ele volta algumas vezes nas suas obras posteriores. A coexistência não é, para ele, a simples com-presença das coisas no mundo, ainda que o homem, como corpo, tenha também o modo de ser da com-presença. A coexistência é mais do que isso : o homem é para o homem também uma presença corpórea, mas não apenas uma presença corpórea. Os homens, enquanto homens, coexistem: «a coexistência significa a sua participação comum na estrutura existencial, por via do seu próprio ato constitutivo». O eu e o tu constituem-se simultaneamente. Definindo-me nas minhas possibilidades e reconhecendo-me nelas defino a possibilidade do outro, e reconheço o outro nessas possibilidades.

A coexistência aparece-nos deste modo como constitutiva da própria existência, já que só num horizonte sociai o homem pode realizar as suas possibilidades transcendentais. O reconhecimento do outro não depende por isso do empírico encontrar-se no mundo; é antes um modo de ser fundamental do eu, que da consciência de si próprio como liberdade deduz a .possibilidade de outros eus igualmente livres. A coexistência não é então mais um fato empírico, mas uma categoria estrutural da existência.

Em obra posterior, Introduzione all’esistenzialismo (1942), Abbagnano retoma e esclarece estes conceitos, pondo em relevo que «o eu não pode realizar a sua função só por si e só para si». O isolamento «significaria cisão da solidariedade humana, isto é, impossibilidade de compreender e ser compreendido pelos outros, de ajudá-los e ser ajudado, de amá-los ou de odiá-los, impossibilidade de qualquer tarefa ou trabalho comum». Isto porque «na realidade qualquer tarefa ou trabalho é comum, mesmo aquele que se realiza na solidão mais rigorosa. O auxílio dos outros atinge-nos de mil maneiras, pela tradição, pelos livros, pela própria meditação pessoal; e aos outros chega de mil maneiras o reflexo e o resultado do nosso trabalho».

Aqui introduz, todavia, Abbagnano um elemento normativo que, se não erramos, confere um aspecto novo à doutrina já exposta na Struttura dell’esistenza. Com efeito, partindo da sua premissa de que «a liberdade é um juízo», quer dizer, depende de uma escolha minha ser ou não ser livre, distingue dois planos de coexistência: o da simples convivência, e o de uma coexistência autêntica. «A convivência humana é simplesmente choque, dispersão e distração para o homem que não atingiu a unidade do eu com a opção da liberdade. Os outros degradam-se neste caso a simples instrumentos a utilizar mais ou menos para as necessidades de momento: não são reconhecidos como solidários de uma tarefa comum. A própria luta é em tal caso puro choque de incompreensões recíprocas, sem um motivo ou uma justificação profunda; é simples rivalidade vulgar».

A opção da liberdade transforma a convivência em coexistência. «Constituir e afirmar a própria individualidade significa reconhecer e respeitar nos outros a mesma capacidade de valer como individualidade… A liberdade, constituindo o homem em individualidade, funda a sua solidariedade com os outros, isto é, determina a possibilidade de uma colaboração ou de um choque no plano de um trabalho comum, conexo de uma recíproca compreensão fundamental… A liberdade… funda a compreensão inter-humana».

É evidente que para Abbagnano a vida social não marca um regresso ou uma decadência da existência — como acontece, por exemplo, com Kierkegaard ou com Heidegger —, mas constitui a condição para se realizar a existência autêntica, que só na coexistência exprime plenamente o seu significado. A sua atitude para com a sociedade é, pois, inteiramente positiva, como positiva é, por reflexo, a sua consideração da sociologia. Para o reviver dos estudos sociológicos em Itália, depois do longo ostracismo a que foram praticamente votados durante o predomínio do idealismo, contribuiu Abbagnano de forma notável com uma série de artigos recentemente reunidos no volume Problemi di sociologia (1959), e com a fundação dos Quaderni di sociologia, que dirige com Franco Ferrarotti.

Salienta que a sociologia, desde a sua constituição como disciplina autônoma, visou adquirir um método e uma estrutura científicos, idênticos aos das ciências naturais. Mas como falhou nesse objetivo, duvidou-se muito tempo das suas «legitimidades»: pretendeu pesquisar quais as leis necessárias da vida social, e foi acusada de não ter conseguido definir uma única destas leis. Mas o novo conceito de ciência que tem vindo a ser precisado nos últimos decênios modifica radicalmente os termos do problema. Na verdade, agora que as chamadas ciências naturais renunciaram à pretensão de formular leis necessárias que permitam a previsão infalível dos fatos, será mais difícil duvidar da «cientificidade» da sociologia, que estuda a uniformidade relativa das atitudes humanas, contentando-se com poder formular previsões prováveis. Deixará assim de pedir-se à sociologia que nos ofereça uma explicação causal completa dos fatos humanos, agora que até as ciências físicas renunciaram a semelhante intento.

Notável na sociologia de Abbagnano é a identificação do conceito de socialidade com o de comunicação, ou melhor, de possibilidade de comunicação, pelo que compreender a socialidade significa determinar as vias e os modos pelos quais é possível a comunicação. A possibilidade é, por isso, não apenas a característica específica das relações humanas, mas também a categoria que permite compreender essas relações. Mas precisamente porque é uma possibilidade, a comunicação comporta também a possibilidade da não-comunicação, do isolamento. 0 isolamento ameaça todas as relações humanas: não há comunicação, por mais firme e profunda, que não esteja sujeita ao perigo da ruptura, e portanto do isolamento. Mas a ameaça do isolamento que paira sobre a comunicação atinge também a personalidade humana, dado que esta é essencialmente constituída por relações sociais, fora das quais não pode formar-se nem viver.

Do isolamento há seguramente que distinguir a solidão: esta é um recolhesse do homem em si próprio, à procura de relações sociais diferentes das que lhe são oferecidas pela vida quotidiana. A esfera das relações sociais na solidão não se restringe, antes se alarga a outros homens, que, embora afastados no tempo e no espaço, tornam-se-nos próximos através dos seus livros e das suas obras, e são nossos companheiros e mestres.

As relações sociais, nas quais se realiza a comunicação, formam objeto da sociologia na medida em que constituem atitudes e instituições. A atitude é um «projeto de modo de ser» qle, partindo de experiências passadas, tende a predispor um comportamento futuro: é uma escolha, é a resposta com que o indivíduo reage a certas situações, é a solução que dá a certos problemas. Esta escolha não é necessariamente determinada pelos pressupostos de fato, nem por outro lado é absolutamente livre e infinitamente arbitrária; mas é simplesmente condicionada pela situação. A condição não determina necessariamente, pois que a determinação excluiria a escolha, mas limita e define a possibilidade da mesma escolha. Esta não é, além disso, arbitrária, mas inspirada em certos valores, isto é, ditada por certas valorizações, que justificam a escolha e a tornam racional e por isso comunicável.

Uma atitude que se repete é, para Abbagnano, uma instituição, palavra a que ele atribui um sentido que vai muito além do sentido estritamente jurídico. Entende por instituições não apenas o Estado, a Igreja, etc., mas até uma certa forma de saudação, uma técnica de trabalho, a moda. Na atitude, enquanto estruturada em volta do valor, está implícito o seu carácter normativo. Com efeito, uma atitude obriga na medida da importância que se atribuir ao valor que ela tende a realizar. Surge assim a tendência para organizar certas formas de contato, com o fim de assegurar por meios mais ou menos idôneos a repetição de certa atitude, ou seja, a sua institucionalização. Entre estas formas de controlo revestem particular importância as que se traduzem na formulação de determinadas regras, na criação de uma autoridade responsável pela sua aplicação e na cominação de sanções especiais, isto é, de prémios ou de castigos.

Por esta forma explica Abbagnano a gênese do direito e do Estado. O primeiro aparece como uma técnica particular do controlo social, e o segundo como a autoridade que, mediante o instrumento da sanção, garante a realização daquele. A autoridade pode fundar-se no temor, na admiração ou no respeito. A que se apoia no temor tem carácter absolutístico; a que assenta na admiração para com aquele que a exerce tem carácter paternalístico finalmente, a que se funda no respeito, ou seja, no reconhecimento de que, sem ela, a vida do grupo social seria impossível, tem carácter liberal.

O valor da filosofia de Abbagnano, à parte o contributo prestado à clarificação dos métodos e dos objetivos dessa disciplina, pelo que se lhe reconhece mérito, está, em nosso entender, na particular relação de implicação entre indivíduo e sociedade, que conduz ao mesmo tempo à superação das doutrinas organicistas e das mecanicistas. E, na verdade, se de um lado «as relações sociais não são estranhas e acidentais à pessoa, mas vêm a constituí-la», de outro lado «a pessoa não é simplesmente a resultante destas relações, pois que possui, em face delas, uma capacidade de reação e de escolha». «Esta concepção — observa o próprio Abbagnano — elimina o antagonismo teorético entre a sociedade e o indivíduo, e estabelece o carácter social concreto da pessoa. Além disso, impede o aplanamento da pessoa sobre a uniformidade objetiva das relações sociais, e reconhece-lhe, com a capacidade de reação, a sua liberdade». Abbagnano não teme, como os outros existencialistas, a absorção do indivíduo na sociedade, porque atribui àquele, embora dentro do horizonte social, uma possibilidade de escolha, uma capacidade de reação, uma liberdade.

Entre os vários aspectos do seu complexo pensamento, este não é seguramente o menos importante e «positivo».