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Gadamer (VM): vida histórica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mas havia a tarefa bastante urgente, numa pesquisa que estava, na verdade, em plena florescência, de elevar a “escola histórica” a uma autoconsciência lógica. Já no ano de 1843 J.G. Droysen, o autor e descobridor da história do helenismo, tinha escrito: “Não há certamente nenhum campo científico que esteja tão afastado de uma justificação, delimitação e articulação teóricas como a história”. Droysen já tinha exigido de um Kant   que, num imperativo categórico, “viesse a indicar à história as fontes vivas de onde flui a VIDA HISTÓRICA da humanidade”. E manifesta a esperança “de que o conceito da história, compreendido mais profundamente, será o ponto de gravitação, em redor do qual a desordenada oscilação das ciências do espírito tem de ganhar firmeza e a possibilidade de um continuado progresso”. VERDADE E MÉTODO PARTE I 1

No fundo, o que domina aqui é um ideal   humanístico. Wilhelm von Humboldt   tinha visto a perfeição específica da antiguidade grega na riqueza de grandes formas individuais que ela nos mostra. No entanto, os grandes historiadores não podem, certamente, restringir-se a um ideal classicista desse gênero. Eles seguem, antes, a Herder. Mas essa concepção histórica do mundo que vem ligada a Herder e que já não tem preferência especial por uma era clássica, que faz ela mais do que considerar o conjunto da história universal sob o mesmo paradigma que Humboldt empregou para fundamentar a primazia da antiguidade clássica? A riqueza das manifestações individuais não é somente o que caracteriza a vida grega, é a característica da VIDA HISTÓRICA em geral, e é isso o que perfaz o valor e o sentido da história. A estremecedora pergunta pelo sentido desse drama   de esplendorosos triunfos e ruínas cruéis, que abalam o coração humano, deveria encontrar aqui uma resposta. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

A primazia dessa resposta é que, com seu ideal humanista, não é pensado nenhum conteúdo concreto, porém subjaz-lhe a ideia formal   da máxima multiplicidade. Um ideal dessa classe é genuinamente universal. Não pode mais ser abalado fundamentalmente por nenhuma experiência da história, por nenhuma vulnerabilidade das coisas humanas, por mais desconcertante que esta possa ser. A história tem um sentido em si mesma. O que parece depor contra esse sentido — o caráter efêmero de tudo que é terreno — é, na realidade, seu verdadeiro fundamento, pois nesse mesmo passar do tempo encontra-se o mistério de uma inesgotável produtividade da VIDA HISTÓRICA. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

A expressão da compreensão adquire, a partir daqui, seu tom quase religioso. Compreender é participar imediatamente da vida, sem a mediação do pensamento através do conceito. O que interessa ao historiador não é referir a realidade a conceitos, mas chegar em todas as partes ao ponto em que “a vida pensa e o pensamento vive”. Os fenômenos da VIDA HISTÓRICA são entendidos na compreensão, como manifestações do todo da vida, da divindade. Essa penetração compreensiva dos mesmos significa, de fato, mais do que um universo interior, tal como Dilthey   reformulou o ideal do historiador face a Ranke. Trata-se de um enunciado metafísico, pelo que Ranke se aproxima enormemente de Fichte   e Hegel  , quando diz: “A intuição clara, plena e vivida, tal é a marca do ser que se tornou transparente e que enxerga através de si mesmo. Numa tal formulação, é impossível não perceber como Ranke, no fundo, permanece próximo do idealismo alemão. A plena auto-transparência do ser, que Hegel pensou no saber absoluto da filosofia, continua legitimando também a autoconsciência de Ranke como historiador, por mais que ele recuse as pretensões da filosofia especulativa. Essa é justamente a razão pela qual se torna tão próximo para ele o modelo do poeta, e porque não sente a menor necessidade de estabelecer limites face a ele, como historiador. Pois o que o historiador e o poeta têm em comum é que um e outro conseguem representar o elemento em que vivem todos “como algo que está fora deles”. Esse puro abandono à contemplação das coisas, a atitude épica de quem busca a lenda da história do mundo, tem direito a chamar-se de poético, na medida em que, para o historiador, Deus está presente em tudo, não sob a forma do conceito, mas sob a da “representação externa”. Não é possível descrever melhor a autocompreensão de Ranke, do que através desses conceitos de Hegel. O historiador, tal como o entende Ranke, pertence à forma do espírito absoluto que Hegel descreveu como “religião da arte”. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

O mundo moral   mediador se movimenta de tal modo que todos participem dele, mas de maneiras diversas: alguns, na medida em que suportam o estado vigente através do contínuo exercício do habitual, outros na medida em que intuem e manifestam ideias novas. Nessa constante superação do que é, partindo da crítica de como deveria ser, consiste a continuidade do processo histórico (§ 77s). Por isso Droysen não falaria de meras “cenas da liberdade”. Pois a liberdade é o pulso fundamental da VIDA HISTÓRICA, e não atua somente nos casos excepcionais. As grandes personalidades da história são somente um momento no movimento continuado do mundo moral, que é um mundo da liberdade tanto no seu todo como em suas partes. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

Em Dilthey não se encontra resposta explícita a essa pergunta. Todavia, toda sua obra científica responde indiretamente a ela. Talvez se pudesse dizer: a consciência histórica não é tanto um apagar-se a si mesmo, como uma progressiva posse de si mesmo, e é isso o que distingue a consciência histórica de todas as demais formas do espírito. Por mais indissociável que seja o fundamento da VIDA HISTÓRICA, do qual ela se eleva, a consciência histórica é capaz de compreender historicamente sua própria possibilidade de comportar-se historicamente. Por isso, não se trata — como acontece com a consciência, frente a seu desenvolvimento vitorioso que se torna consciência histórica — de expressão imediata de uma realidade da vida à tradição, na qual se encontra, nem a continuar assim, em ingênua apropriação da tradição, essa mesma tradição. Pelo contrário, se reconhece em uma relação reflexiva consigo mesma e com a tradição na qual se encontra. Compreende-se a si mesma a partir de sua história. A consciência histórica é uma forma do autoconhecimento. VERDADE E MÉTODO PARTE II 1

O problema epistemológico deve ser colocado aqui de uma forma fundamentalmente diferente. Já mostramos acima que Dilthey chegou a compreender isso, porém, não conseguiu superar os liames que o fixavam à teoria do conhecimento tradicional. Seu ponto de partida, a interiorização das “vivências”, não pode construir a ponte para as realidades históricas, porque as grandes realidades históricas, sociedade e estado, são sempre, na verdade, determinantes prévios de toda “vivência”. A auto-reflexão e a autobiografia — pontos de partida de Dilthey — não são fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história é reprivatizada. Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da VIDA HISTÓRICA. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser. VERDADE E MÉTODO PARTE II 2

Na análise do processo hermenêutico, havíamos concluído que a obtenção do horizonte da interpretação é, na realidade, uma fusão horizôntica. Isto se vê confirmado também a partir da linguisticidade da interpretação. Através da interpretação o texto tem de vir à fala. Todavia, nenhum texto, como também nenhum livro fala, se não falar a linguagem que alcance o outro. Assim, a interpretação tem de encontrar a linguagem correta, se é que quer fazer que o texto realmente fale. Por isso, não pode haver uma interpretação correta “em si”, porque em cada caso se trata do próprio texto. A VIDA HISTÓRICA da tradição consiste na sua dependência a apropriações e interpretações sempre novas. Uma interpretação correta em si seria um ideal sem pensamentos incapaz de conhecer a essência da tradição. Toda interpretação está obrigada a entrar nos eixos da situação hermenêutica a que pertence. VERDADE E MÉTODO PARTE III 1

Humboldt vê o problema em seu significado principal, quando diz da linguagem, que “ela se encontra propriamente face a um âmbito infinito e em verdade ilimitado, o sumo de todo o pensável. Por isso está obrigado a fazer um uso infinito de meios finitos, e pode fazê-lo em virtude da identidade da força que gera ideias e linguagem”. O poder fazer uso infinito de meios finitos é a verdadeira essência da força, que é consciente de si mesma. Essa força abrange tudo aquilo em que pode se exercitar. Nesse sentido, também a força linguística é superior a todas as aplicações de conteúdo. Como um formalismo do poder, é separável de toda a determinidade de conteúdo do falado. É por força de intuições geniais de Humboldt, sobretudo na medida em que não o ignora, que, por menor que seja a força de cada um, face à potência da língua, entre o indivíduo e a língua existe uma relação mútua que confere ao homem, face à língua, uma certa liberdade. Tampouco se engana, com respeito ao fato de que é uma liberdade limitada, na medida em que cada língua, face ao falado em cada caso, forma um modo peculiar de existência, que faz que nela se experimente, com particular nitidez e vivacidade, “até que ponto, inclusive o passado mais longínquo, continua vinculando-se ao sentimento do presente, já que a língua passou pelas sensações das gerações anteriores e conservou em si o hálito daquelas”. Humboldt consegue conservar a VIDA HISTÓRICA do espírito, inclusive na linguagem concebida como forma. A fundamentação do fenômeno da linguagem no conceito da força linguística confere ao conceito da forma interior uma legitimação própria, que faz justiça à mobilidade histórica da vida da linguagem. VERDADE E MÉTODO PARTE III 3

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a VIDA HISTÓRICA, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da VIDA HISTÓRICA. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl   e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

Mas a questão torna-se muito mais difícil, quando não se assumem as consequências que desembocam no relato cristão da criação, e apesar disso se busca contrapor o antigo cosmos teleológico — em favor do qual continua advogando a assim chamada consciência natural do mundo — à mudança da história humana. É correto e evidente afirmar que a essência da historicidade só veio à consciência do pensamento humano com a religião cristã e com sua ênfase ao momento absoluto do ato salvífico de Deus. Mas, esses mesmos fenômenos da VIDA HISTÓRICA já eram conhecidos, só que compreendidos “a-historicamente”, seja derivando o presente de um tempo mítico primitivo, seja compreendo-a na perspectiva de urna ordem ideal e eterna. VERDADE E METODO II ANEXOS 27

E onde está atuando aqui a reflexão emancipatória? Eu diria que por toda parte, e de tal modo que, cada vez que dissolve antigas ideias sobre objetivos, acaba concretizando-se novamente para novos objetivos. Com isso, obedece somente à própria lei do passo gradual da VIDA HISTÓRICA e social. Mas creio que essa reflexão tornar-se-ia vazia e adialética se presumisse ser uma reflexão perfeita e acabada. Segundo essa presunção, superando um processo de emancipação constante, a sociedade alcançaria uma autopossessão definitiva, livre e racional, libertando-se assim dos condicionamentos tradicionais e construindo novas formas vinculantes de validez. VERDADE E METODO II ANEXOS 29