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Gadamer (VM): problema da hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A hermenêutica é um problema fundamental da atualidade. Assim como o termo deriva do uso linguístico da teologia, também o problema objetivo que ele designa se tornou mais incisivo sobretudo nas questões da justa compreensão bíblico-teológica. Entretanto, essa questão acha-se intimamente conexa com o problema mais vasto da "compreensão" no âmbito histórico e em geral no das ciências do espírito. Toda compreensão e interpretação, porém, tanto no sentido bíblico-teológico, como no histórico ou no das ciências do espírito, remonta essencialmente a pressupostos, cuja investigação e esclarecimento é tarefa da filosofia. Dessa maneira, formulam-se questões de importância básica para a filosofia em geral, ou seja, para sua possibilidade e metodologia simplesmente. O problema da hermenêutica torna-se, assim, um problema fundamental — talvez pudéssemos dizer: o problema fundamental — no pensamento filosófico do presente.

O termo "hermenêutica" provém do verbo grego hemeneuein (bem como de seus derivados hermeneus e hermeneia  ); significa declarar, anunciar, interpretar ou esclarecer e, por último, traduzir. Apresenta, pois, uma multiplicidade de acepções, as quais, entretanto, coincidem em significar que alguma coisa é "tornada compreensível" ou "levada à compreensão". Isso acontece em qualquer enunciado linguístico, que pretenda despertar uma compreensão, tornando algo inteligível. É o que sucede, principalmente, na interpretação ou esclarecimento de um enunciado talvez obscuro, de difícil compreensão, como, por exemplo, um texto histórico ou literário, cujo sentido não aparece imediatamente, mas deve antes ser tornado compreensível. E, por último, tal coisa ocorre na tradução de um texto, visto que toda tradução consiste na transposição de um complexo significativo para outro horizonte de compreensão linguística. Não há certeza filológica, mas só probabilidade, de que a palavra derive de Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem se atribui a origem da linguagem e da escrita. O certo é que já em grego o termo significava de preferência, embora não exclusivamente, a compreensão e a exposição de uma sentença dos deuses, de uma mensagem divina, como, digamos, de um oráculo de Delfos, o qual precisa de uma interpretação para ser apreendido corretamente, ou seja, "levado à compreensão". Dessa forma, o termo referia-se desde então a uma dimensão sacra: a compreensão e interpretação de uma palavra divina.

É por isso que a palavra "hermenêutica" foi primeiramente formada e empregada no domínio teológico, surgindo, porém, apenas na era moderna — como título de livro, encontra-se desde os séculos XVII e XVIII — no sentido de uma "arte da compreensão" ou de uma "doutrina da boa interpretação", a saber, no sentido bíblico de uma interpretação correta e objetiva da Escritura.

O problema, entretanto, é muito mais antigo e mais amplo. Não é somente a Escritura Sagrada que sempre apresentou problemas de interpretação. Também nos textos profanos surgiu a questão de um modo correto de interpretar os textos. Obras literárias, testemunhos históricos, velhos textos legislativos, etc, devem ser compreendidos corretamente e interpretados num sentido que será talvez, portanto, encarado neste contexto mais amplo. A hermenêutica bíblica, por um lado, tem muita afinidade com a hermenêutica histórico-filológica, dado que cumpre, em primeiro lugar, tratar e compreender os textos da Escritura (fazendo-se abstração do seu conteúdo de Revelação divina) como testemunhos literário-históricos, iguais a outros textos escritos do mesmo gênero. Por outro lado, a hermenêutica bíblica tem certo parentesco com a jurídica, enquanto em ambas se trata de textos que falam normativamente e autoritariamente, tendo por si pretensão a validez e obrigatoriedade, e neste sentido são apresentados ao intérprete, para serem compreendidos e expostos em todos os seus detalhes com esse caráter. Depara-se-nos assim um horizonte mais vasto, em que se insere o problema bíblico, embora afinal ele ocupe uma posição singular, enquanto se trata da palavra de Deus, mas transmitida numa palavra humana e histórica, isto é, em escritos elaborados pelos homens, surgidos na história e transmitidos por ela, devendo, portanto, ser investigados conforme sua origem histórica, seu modo de pensar histórico e sua maneira de falar. Ao mesmo tempo, porém, cumpre indagar qual seu sentido mais profundo e mais próprio, a saber, a palavra da Revelação divina, que neles nos fala.

Como se vê hoje mais que nunca, cumpre enquadrar o problema da hermenêutica bíblica num amplo contexto das ciências do espírito e sobre o fundo dos pressupostos teórico-científicos, metodológicos e também filosóficos postos em evidência desde Schleiermacher  , e depois particularmente por Dilthey   e Heidegger, terminando recentemente por Gadamer  , herdeiro e continuador dessa tradição.

Mas também por isso, no campo teológico, o significado da palavra "hermenêutica" mudou profundamente nos últimos decênios. Esta chamava-se primeiramente a "arte" da compreensão, como ciência prática, que formulava as regras de uma correta interpretação da Escritura, e portanto relacionava-se imediatamente com a "praxis  " do trabalho exegético, servindo a ele. Para este, exigia-se, a fim de ser levado a efeito corretamente, o conhecimento das respectivas línguas, do ambiente histórico e cultural em que a obra surgiu, a consideração da peculiaridade literária e estilística, da situação concreta e da intenção do autor, a interpretação do texto em particular através do contexto, etc. Somente a mais nova hermenêutica, influenciada pelas ciências do espírito e pela filosofia, mostrou gradativamente que subjazem a isso tudo problemas mais profundos e mais fundamentais. Que significa afinal "compreender"? Como é possível uma compreensão histórica, desde que cada um tem seu horizonte de compreensão, histórica e linguisticamente concreto, que o antecede e ao qual se acha preso, condicionando uma determinada "pré-compreensão" do objeto? Existirá algo como um encontro ou fusão de vários horizontes históricos da compreensão? Será que isso é possibilitado pela própria história, a saber, por uma conexão histórico-causal, onde a palavra historicamente pronunciada se efetua e interpreta no decorrer da história, penetrando em nosso próprio horizonte da compreensão e tornando assim possível a compreensão dos testemunhos de um passado histórico? E não há na base de tudo isso um entendimento mais original como condição da possibilidade de compreensão histórica, isto é, uma autocompreensão e compreensão do ser originalmente humana, mas que se interpreta historicamente? Não se coloca, porém, aí insistentemente a questão da verdade? Desaparece, de todo, nosso conhecimento num acontecer histórico-causal que condiciona o horizonte sempre mutável da compreensão histórica? Ou será que nos atinge, na própria história, a exigência absoluta da verdade? O que significa essa exigência e como podemos corresponder-lhe?

Essas perguntas indicam já a problemática filosófica contida na palavra hermenêutica, como a entendemos hoje. Não se trata apenas do problema da interpretação teológica da Escritura, nem se trata somente das questões mais amplas da compreensão e interpretação históricas das ciências do espírito, mas sim do problema fundamental de ordem filosófica a respeito da compreensão em sua essência e em suas estruturas, suas condições e seus limites. [Coreth  ]