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Gadamer (VM): problema da compreensão

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Neste ponto Hegel   aponta para além da dimensão global em que se havia colocado o problema da compreensão em Schleiermacher  . Hegel o eleva à base, sobre a qual ele fundamenta a filosofia como a forma mais alta do espírito absoluto. No saber absoluto da filosofia leva-se a cabo aquela autoconsciência do espírito que, como diz o texto, abrange, "de um modo superior", também a verdade da arte. Desse modo, para Hegel é a filosofia, isto é, a auto-imposição histórica do espírito, que domina a tarefa hermenêutica. Nela o comportamento histórico da imaginação se transforma em um comportamento pensante com respeito ao passado. Hegel expressa assim uma verdade categórica, dizendo que a essência do espírito histórico não consiste na restituição do passado, mas na mediação de pensamento com a vida atual. Hegel tem razão quando se nega a pensar essa mediação de pensamento como uma relação externa e posterior, e a coloca no mesmo nível que a verdade da arte. Com isso ele ultrapassa fundamentalmente a ideia da hermenêutica de Schleiermacher. Também para nós a questão da verdade da arte obrigou a uma crítica da consciência tanto estética como histórica, ao mesmo temo em que indagamos pela verdade que se manifesta na arte e na história. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Para poder situar em seu pano de fundo correto a verdadeira virada que Schleiermacher dá à história da hermenêutica, começaremos com uma reflexão que nele não desempenha o menor papel, e que desde ele desapareceu por completo dos questionamentos da hermenêutica (coisa que também restringe de uma maneira muito peculiar o interesse   histórico de Dilthey   pela história da hermenêutica), que na verdade domina o problema da hermenêutica e só através da qual torna-se compreensível a posição que Schleiermacher ocupa na história da hermenêutica. Partiremos do lema: compreender significa, de princípio, entender-se uns com os outros. Compreensão é, de princípio, entendimento. Assim, os homens se entendem entre si, na maioria das vezes imediatamente, isto é, vão se pondo de acordo até chegar a um entendimento. Acordo é sempre, portanto, acordo sobre algo. Compreender-se é compreender-se em [184] algo. Já a linguagem mostra que o "sobre quê" e o "em quê" não são apenas um objeto qualquer do discurso, do qual a compreensão mútua pudesse prescindir ao buscar seu caminho, mas são, antes, caminho e meta do próprio compreender-se. E quando se pode dizer que duas pessoas se entendem, independentemente do "sobre quê" e do "em quê", isso quer dizer que não somente se entendem nisso ou naquilo, mas em todas as coisas essenciais que unem os homens. A compreensão só se converte numa tarefa especial no momento em que esta vida natural experimenta alguma distorção no co-visar do visado, que é um visar da coisa em causa comum. No momento em que se produz um mal-entendido, ou alguém manifesta uma opinião   que causa estranheza por ser incompreensível, é apenas aí que a vida natural fica tão inibida com relação à coisa em causa comum, que a opinião enquanto opinião, isto é, enquanto opinião do outro, do tu ou do texto, se converte num dado fixo. Mas mesmo assim, ainda se procura em geral chegar a um acordo, e não somente compreender. E isso, de tal modo, que se refaz o caminho em direção à coisa em causa. Só quando se mostram vãs todas essas idas e vindas, que perfazem a arte do diálogo, da argumentação, do perguntar e do responder, do objetar e do refutar, e que se realizam também face a um texto como diálogo interior da alma que busca a compreensão, far-se-á uma mudança no questionamento. Só então o esforço da compreensão vai perceber a individualidade do tu e considerar sua peculiaridade. Na medida em que se trata de uma língua estrangeira, o texto já será, isso não é mais do que uma condição prévia. O verdadeiro problema da compreensão aparece quando, no esforço de compreender um conteúdo, coloca-se a pergunta reflexiva de como o outro chegou à sua opinião. Pois é evidente que um questionamento como este anuncia uma forma de alteridade bem diferente, e significa, em último caso, a renúncia a um sentido comum. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da "congenialidade" que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um "saber dominador", isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Convém recordar que na origem, e primordialmente, a hermenêutica tem como tarefa a compreensão dos textos. Foi somente Schleiermacher que minimizou o caráter essencial da fixação por escrito com respeito ao problema hermenêutico, quando considerou que o problema da compreensão estava dado também face ao discurso oral, e quiçá na sua plena realização. Já demonstramos até que ponto a versão psicológica, que ele introduziu na hermenêutica, abafou a autêntica dimensão histórica do fenômeno hermenêutico. Na realidade a escrita possui, para o fenômeno hermenêutico, uma significação central, na medida em que nela a ruptura com o escritor ou autor, assim como com o endereço concreto de um destinatário [396] é trazida, por assim dizer, a uma existência própria. O que se fíxa por escrito se eleva de um certo modo, à vista de todos, a uma esfera de sentido na qual pode participar todo aquele que esteja em condições de ler. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

O fato de, como foi dito acima, todo enunciado ter seu horizonte situacional e sua função interpelativa, constitui apenas a base para a conclusão posterior, segundo a qual a historicidade de todos os enunciados enraíza-se na finitude fundamental de nosso ser. O fato de um enunciado ser mais do que a mera atualização de um estado de coisas prejacente significa sobretudo que ele pertence ao todo de uma existência histórica, sendo simultâneo com tudo que nelá pode estar presente. Se quisermos compreender frases transmitidas pela tradição, lançamos mão de reflexões históricas, a partir das quais deve-se explicitar onde e como estas frases foram ditas, qual seu [55] verdadeiro pano de fundo motivacional e seu verdadeiro sentido. Se quisermos pois atualizar uma frase enquanto tal, devemos atualizar também o seu horizonte histórico. Isso, porém, não será suficiente para descrever o que realmente fazemos, pois o nosso comportamento frente à tradição não se contenta com o fato de querermos compreendê-la, mediando seu sentido pela reconstrução histórica. Isso pode muito bem ser feito pelo filólogo. Mas mesmo o filólogo poderia reconhecer que aquilo que ele na verdade faz é mais do que isto. Se a Antiguidade não tivesse sido clássica, ou seja, exemplar para todo dizer, pensar e poetar, não haveria nenhuma filologia clássica. Mas para toda e qualquer outra filologia vale o fato de que nela está atuando o fascínio pelo outro, pelo estranho ou pelo distante que se nos revela. A verdadeira filologia não é apenas história, e isso porque a própria história é na verdade uma ratio philosophandi, um caminho para conhecer a verdade. Quem empreende um estudo histórico acaba sempre codeterminado pelo fato de ele próprio experimentar a história. Por isso, porque a atualidade nos determina, a história acaba sempre sendo escrita de novo. Não se trata somente de reconstrução, de simultaneização do passado. O verdadeiro enigma e problema da compreensão é o fato de que aquilo que se fez simultâneo já era sempre simultâneo conosco, como algo que se queria verdadeiro. O que parece ser uma mera reconstrução do sentido passado funde-se com o que nos interpela imediatamente como verdadeiro. Creio que esta é uma das correções mais importantes que devemos fazer com referência à nossa autoconcepção da consciência histórica: mostrar que a simultaneidade é um problema sumamente dialético. O conhecimento histórico jamais é mera atualização. Mas também a compreensão não é mera reconstrução de uma configuração de sentido, interpretação consciente de uma produção inconsciente. O compreender recíproco significa, antes, entender-se sobre algo. Correspondentemente, compreender o passado significa ouvi-lo no que ele tem a nos dizer como válido. O primado da pergunta em relação ao enunciado significa, para a hermenêutica, que toda pergunta que nós compreendemos, nós mesmos temos que fazê-la. A fusão do horizonte do presente com o horizonte do passado é assunto das ciências históricas do espírito. Com isso, porém, elas realizam apenas aquilo que já sempre fazemos à medida que existimos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Nos últimos anos, o problema da compreensão foi adquirindo cada vez mais atualidade. Isso ocorre sem dúvida em conexão com a intensificação da situação política e social do mundo e do agravamento das tensões que perpassam a atualidade. Por toda parte constata-se que as tentativas de entendimento entre as áreas, as nações, os blocos, as gerações, fracassam porque parece faltar uma linguagem comum e os conceitos básicos utilizados parecem atuar como motes incitadores que reforçam as contradições e aprofundam as tensões que se deveriam suprimir. Basta lembrar o que ocorre com palavras como "democracia" ou "liberdade". VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O "sentido" dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann  , as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser "compreendido". Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento "mais" do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá [404] acontecer se compreendermos esse "rnais" corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.