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Gadamer (VM): pensamento ocidental

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Era claro, portanto, que o projeto heideggeriano de uma ontologia fundamental tinha como pano de fundo o problema da história. Todavia, em breve se perceberia que, nem a solução do problema do historicismo, nem uma fundamentação originária das ciências, e até nem mesmo uma autofundamentação ultra-radical da filosofia de Husserl   corresponderiam ao sentido dessa ontologia fundamental; é a própria idéia da fundamentação que experimenta agora uma inversão total. O questionamento já não é mais igual ao dé Husserl, quando Heidegger empreende a interpretação do ser, verdade e história a partir da temporalidade absoluta. Pois essa temporalidade já não era mais a da "consciência" ou a do eu-originário transcendental  . E verdade que na linha de pensamentos de Ser e tempo   soa, todavia, como uma intensificação da reflexão transcendental, como a conquista de uma etapa mais elevada da reflexão, quando o tempo se revela como o horizonte do ser. Pois é a carência de uma base ontológica da subjetividade transcendental, que já Heidegger havia reprovado na fenomenologia de Husserl, o que parece ficar superado na ressurreição do ser. O que o ser significa terá de ser determinado a partir do horizonte do tempo. A estrutura da temporalidade aparece assim como a determinação ontológica da subjetividade. Porém ela era mais do que isso. A tese de Heidegger era: o próprio ser é tempo. Com isso se rompe todo o subjetivismo da mais recente filosofia — sim, como logo se mostraria todo o horizonte de questionamento da metafísica, assumindo no ser como o presente (Anwesende  ). O fato de que à pre-sença importe o seu ser, e o fato de que se distinga de todo outro ente por sua compreensão do ser, isso não representa, como dá a entender em Ser e tempo, o fundamento último de que deve partir um questionamento transcendental. O que está em questão é um fundamento completamente diferente, o qual é o último que possibilita toda compreensão do ser, é o próprio fato de que exista um "pré" ("dá"), uma clareira no ser, isto é, a [262] diferença entre ente e ser. A indagação que se orienta para esse fato básico de que "há" tal coisa, pergunta, na verdade, ser, mas numa direção que ficou necessariamente impensada em todos os questionamentos anteriores sobre o ser dos entes, e que inclusive foi encoberta e ocultada pela indagação metafísica pelo ser. Sabe-se que Heidegger manifesta esse esquecimento essencial do ser que domina o pensamento ocidental desde a metafísica grega, apontando a confusão ontológica que o problema do nada provoca nesse pensamento. E, enquanto deixa manifesto que essa indagação pelo ser é ao mesmo tempo a indagação pelo nada, une o começo e o final da metafísica. O fato de que a indagação pelo ser pode ser colocada a partir da indagação pelo nada já pressupõe o pensamento do nada, ante o qual havia fracassado a metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Existe, no entanto, um pensamento que não é grego e que faz mais justiça ao ser da linguagem: a ela se deve que o esquecimento da linguagem pelo pensamento ocidental não se tornasse total. É a idéia cristã da encarnação. Encarnação não é evidentemente corporalização. Nem a idéia da alma nem a idéia de Deus, vinculadas a essa corporalização, correspondem ao conceito cristão da encarnação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Vale a pena que nos detenhamos agora nesse ponto nuclear do pensamento cristão, porque também para ele a encarnação está relacionada, de forma muito estreita, com o problema da palavra. Já desde os padres da Igreja, e obviamente [423] na elaboração sistemática do augustinismo da alta escolástica, a interpretação do mistério da trindade — a tarefa mais importante que se coloca ao pensamento medieval cristão — apóia-se na relação humana de falar e pensar. Com isso a dogmática segue sobretudo o prólogo do Evangelho de João, e por mais que os meios conceituais, com os quais ela procura resolver esse problema teológico, sejam de cunho grego, o pensamento filosófico ganha através deles uma dimensão que estava vedada ao pensamento grego. Quando o verbo se faz carne, e só nesta encarnação se consuma a realidade do espírito, o logos   se liberta com isso de sua espiritualidade, que significa simultaneamente sua potencialidade cósmica. A singularidade do acontecimento da redenção leva à introdução da essência histórica no pensamento ocidental e permite também que o fenômeno da linguagem emerja de sua imersão na idealidade do sentido e se ofereça à reflexão filosófica. Pois, diferentemente do logos grego, a palavra é um puro acontecer (verbum proprie dicitur personaliter tantum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

A linguagem não é o indício da finitude porque exista a diversidade de estruturação da linguagem humana, mas porque toda língua está em constante formação e desenvolvimento, quanto mais trouxer à fala a sua experiência do mundo. Não é finito por não ser ao mesmo tempo todas as demais línguas, mas porque é linguagem. Dirigimos as nossas perguntas a pontos-chave significativos do pensamento ocidental, e essa enquete nos ensinou que o acontecer da linguagem corresponde à finitude do homem num sentido muito mais radical que o que faz valer o pensamento cristão sobre a palavra. Trata-se do mediu da linguagem, a partir do qual se desenvolve toda a nossa experiência do mundo e em particular a experiência hermenêutica. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Ora, o relevante para o pensamento é que na guinada que experimentou o conceito de ciência no começo da modernidade é que mesmo ali o princípio fundamental do pensamento grego sobre o ser acabou se conservando. A física moderna pressupõe a metafísica antiga. Heidegger reconheceu essa cunhagem do pensamento ocidental, de origem remota, e com isso a autoconsciência histórica da atualidade ganhou uma significação específica. Isto porque esse conhecimento veda o caminho a todas as tentativas de restauração romântica dos ideais antigos, sejam eles medievais ou helenístico-humanistas, à medida que torna patente o caráter inevitável da história da civilização ocidental. Também o esquema hegeliano de uma filosofia da história e de uma história da filosofia já não pode ser suficiente, visto que, segundo Hegel  , a filosofia grega não [49] é nada mais que um prelúdio especulativo daquilo que encontrou sua realização plena na autoconsciência moderna do espírito. O idealismo especulativo e seu postulado de uma ciência especulativa acabaram convertendo-se numa restauração totalmente impotente. Por mais cerceada que seja, a ciência acaba sendo o alfa e o ômega de nossa civilização. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 4.

No grandioso começo do pensamento ocidental, temos a teoria do ser, apresentada por Parmênides   em seu poema didático. Lega aos sucessores a questão que ainda está em aberto. O próprio Platão   confessa não poder compreender a dimensão que Parmênides tem em mente com esse ser. A investigação moderna permanece controversa. Hermann Cohen pensava tratar-se da lei da identidade como a mais elevada exigência que o pensamento como tal pode fazer. A investigação histórica esbarra nesses anacronismos sistematizadores. Objeta-se com razão que o ser que se tem em mente nesse caso seria o mundo, a totalidade dos entes, pelo que os [86] jônicos perguntaram sob o título de ta panta  . A questão de saber se o ser de Parmênides é o prelúdio de um conceito filosófico supremo ou um nome coletivo para o conjunto de todos os entes, não pode ser encarada como se fosse uma alternativa a que se precisa escolher. Devemos ao contrário sofrer essa carência de linguagem, que num enorme esforço de elevação do pensamento cunhou a expressão to on, o ente, esse singular abstrato. Antes falava-se dos onta  , dos muitos entes. Devemos calcular os riscos desse discurso, se quisermos seguir o pensamento que aqui está em jogo. VERDADE E METODO II PRELIMINARES 7.

Mas o fenômeno universal da estrutura de linguagem humana desenvolve-se também em outras dimensões. Assim, o tema hermenêutico atinge outras concatenações que determinam a experiência de mundo que o homem faz pela linguagem. Muitos desses temas aparecem em Verdade e método I. Ali apresentei o tema da consciência da história dos efeitos como uma elucidação consciente da idéia da linguagem humana em algumas fases de sua história. Mas, como demonstrou Johannes Lohmann em seu livro Philosophie   und Sprachwissenschaf (Filosofia e ciência da linguagem) e em seu comentário sobre meu ensaio em Gnomon, essa consciência atinge também outras dimensões. No conceito de linguagem que eu próprio esbocei, Lohmann amplia sua "cunhagem no âmbito do pensamento ocidental", a ponto de abranger a escala gigantesca da historia da linguagem tanto para frente quanto para trás. Para trás, rastreando a "procedência do ’conceito’ como o veículo intelectual da ’subsunção’ atual dos objetos dados sob uma forma pensada" (714), reconhecendo a forma gramatical do conceito no tipo radical-flexivo do antigo indo-germânico, que encontra sua expressão mais clara na cópula — assim surge a possibilidade da teoria como a criação mais própria do Ocidente. Para frente, explicitando novamente a história do pensamento ocidental pelo desenvolvimento das formas de linguagem; essa história do pensamento ocidental é o que torna possível a ciência moderna no sentido de disponibilizar o mundo pela passagem da tipologia de linguagem radical-flexiva para a tipologia verbal-flexiva. VERDADE E METODO II OUTROS 18.

Para a reflexão hermenêutica, o conceito de reflexão e conscientização utilizado por Habermas aparece carregado de dogmatismos, e é nesse particular que gostaria de ver os efeitos da reflexão hermenêutica que eu proponho. Através de Husserl (em sua teoria das intencionalidades anônimas) e de Heidegger (na demonstração da redução ontológica presente no conceito subjetivo e objetivo do idealismo) aprendemos a desmascarar a falsa objetivação que pesa sobre o conceito de reflexão. Há sem dúvida uma regressão interna da intencionalidade que jamais tematiza o conotado (Mitgemeinte) como objeto. Brentano   já percebera esse ponto ao retomar as idéias aristotélicas. Não saberia como conceber a enigmática figura ôntica da linguagem, se não a partir dessa idéia. Devemos distinguir (para falar com as palavras de J. Lohmann) entre a reflexão "efetiva", que acontece no desenvolvimento da linguagem, e a reflexão expressa e temática, formada na história do pensamento ocidental, ao converter tudo em objeto temático, quando a ciência criou os pressupostos da civilização planetária do futuro. VERDADE E METODO II OUTROS 18.