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Gadamer (VM): palavra natural

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

O fato de que o latim medieval não dedique sua atenção a esse aspecto do problema da linguagem, apesar do significado que se empresta na Bíblia à confusão das línguas humanas, pode ser explicado sobretudo como consequência do domínio natural e evidente do latim erudito, assim como da persistência da doutrina grega do logos  . Somente no Renascimento, quando os leigos ganham importância e as línguas nacionais abrem passo na formação erudita, chegam a desenvolver-se ideias fecundas sobre a relação entre aquelas e a palavra interior, ou os vocábulos "naturais". Seja como for, temos de nos precaver de pressupor nisso diretamente o questionamento da moderna filosofia da linguagem e seu conceito instrumental desta. O significado da primeira erupção do problema linguístico no Renascimento se estriba, antes, em que nesse momento, continua sendo válida, de maneira impensada e normal, toda a herança greco-cristã. Isso torna-se muito claro em Nicolau de Cusa. Os conceitos que se subordinam às palavras mantêm, como desenvolvimento da unidade do espírito, uma referência com a palavra natural (vocabulum naturale), cujo reflexo aparece em todos eles (relucet), por mais que cada denominação individual seja arbitrária (impositio nominis fit ad beneplacitum). Podemos nos perguntar que classe de relação é esta e em que consiste essa palavra natural. No entanto, a ideia de que cada palavra de uma língua possui, em última análise, uma coincidência com as de outras línguas, na medida em que todas as línguas são desenvolvimentos da unidade única do espírito, tem um sentido metodologicamente correto. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Nem mesmo Nicolau de Cusa se refere com sua palavra natural à de uma linguagem originária, anterior à confusão das línguas. Uma tal linguagem de Adão, no sentido de uma doutrina do estado originário, lhe é completamente alheia. Ao contrário, seu ponto de partida é a imprecisão fundamental de todo saber humano. Nisso consiste, reconhecidamente, sua teoria do conhecimento, na qual se cruzam motivos platônicos e nominalistas: todo conhecimento é pura conjectura e opinião   (coniectura, opinio). É essa doutrina que ele aplica à linguagem. Isso lhe permite reconhecer a diversidade das línguas nacionais e a aparente arbitrariedade de seu vocabulário, sem ter que cair necessariamente numa teoria convencionalista e num conceito instrumental da linguagem. Assim como o conhecimento humano é essencialmente "impreciso", isto é, admite um mais e um menos, o mesmo ocorre com a linguagem humana. O que, numa língua, possui sua expressão autêntica (própria vocabula) pode ter, noutra, uma expressão mais bárbara e distanciada (magis barbara et remotiora vocabula). E-xistem pois expressões mais autênticas ou menos autênticas (própria vocabula). Todas as denominações fácticas são, de um certo modo, arbitrárias, e, no entanto, têm uma relação necessária com a expressão natural (nomen naturale), que corresponde à própria coisa (forma). Toda expressão é congruente (congruum), mas nem todas são precisas (precisum). VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.