Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): ousia

Gadamer (VM): ousia

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Se a partir desse pano de fundo nos aproximamos agora da disputa "sobre a correctura dos nomes", tal como se desenvolve no Crátilo, as teorias que entram em debate nele geram, de imediato, um interesse   que vai muito mais além de Platão ou de sua própria intenção. Pois as duas teorias que o Sócrates   platônico reduz ao fracasso não aparecem sopesadas com todo o peso de sua verdade. A teoria convencionalista reconduz a "correctura" das palavras a um dar nome, que é como batizar as coisas com um nome. Para essa teoria o nome não traz a menor intenção de conhecimento objetivo. Mas Sócrates chama a depor o defensor dessa sóbria perspectiva, na medida em que, partindo da diferença entre logos   verdadeiro e logos falso, lhe faz admitir que também os componentes de logos, as palavras (onomata), são verdadeiros ou falsos, e que, portanto, também o nomear, como uma parte do falar, se refere à revelação do ser (ousia  ) que se produz no falar. Essa é uma [413] afirmação incompatível com a tese convencionalista que já não é difícil deduzir, a partir daqui e inversamente, uma "natureza" que servisse de padrão, tanto para os nomes verdadeiros como para o correto dar nome. O próprio Sócrates reconhecerá que essa compreensão da correção dos nomes conduz a uma embriaguez etimológica e às conseqüências mais absurdas. Não é menos peculiar o tratamento de que se faz objeto a tese contrária, a de que as palavras são por natureza (physei). Se esperássemos que essa contrateoria fosse refutada, por sua vez, pelo descobrimento da incoerência da conclusão sobre a verdade das palavras a partir da do discurso, da qual derivava essa posição (no "Sofista" aparece uma correção desse defeito), sentir-nos-íamos decepcionados. Ao contrário, todo o desenvolvimento se mantém dentro dos pressupostos de princípio da teoria "natural, isto é, no princípio da similitude, e somente o resolve através de uma restrição progressiva: se a "correctura" dos nomes deve repousar no fato de se encontrarem os nomes corretos e adequados às coisas, e estágios de correção, propriamente ali, como ocorre também como qualquer adaptação dessa natureza. E se só o um pouco correto consegue ainda reproduzir em si os contornos (tupos) da coisa, isso pode bastar para que seja utilizável. Tem que ser, todavia, um pouco mais generoso: uma palavra pode ser entendida por hábito ou convenção, ainda que contenha sons que não possuem a menor similitude com a coisa, com o que, todo o princípio da similitude começa a balançar e acaba se refutando com exemplos como o das palavras que designam números. Nessas, não pode ter lugar a menor similitude, porque os números não pertencem ao mundo sensível e móvel, de maneira que para eles só seria plausível o princípio da convenção. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

[414] Não obstante isso, a argumentação socrática contra Crátilo, na medida em que se mantém fiel ao esquema do encontrar e impor nomes, contém uma série de perspectivas que não conseguem se impor. O fato de que a palavra seja um instrumento que se erige para o trato docente e diferenciador das coisas, portanto, que seja um ente que pode adequar-se e corresponder mais ou menos a seu próprio ser, fixa a questão da essência das palavras de uma maneira que não carece de problemas. O trato com as coisas de que se fala aqui é a revelação da coisa intencionada. A palavra é correta quando representa a coisa, isto é, quando é uma representação (mimesis  ). Não se trata, naturalmente, de uma representação imitadora, no sentido de uma cópia direta, de modo que se reproduzisse o fenômeno audível e visível, mas é o ser (ousia), aquilo que se honra com a designação de "ser" (einai  ), que tem de ser revelado pela palavra. Mas então, temos que indagar se os conceitos que são empregados na conversação, os conceitos da mimema, ou os da deloma, compreendidos como mimema são corretos para isso. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Se quisermos atribuir um sentido à linguagem da metafísica, devemos pensar aqui mais detalhadamente. Não me refiro à linguagem em que se desenvolveu antigamente a metafísica, a linguagem filosófica dos gregos. Quero dizer, antes, que as línguas vivas das comunidades de linguagem atuais contêm certos caracteres conceituais que procedem dessa linguagem originária da metafísica. No âmbito científico e filosófico, dizemos que esse é um papel atribuído à terminologia. Mas se nas ciências naturais matemáticas — sobretudo nas experimentais — a adoção de denominações é um ato convencional que serve para designar todos os fenômenos acessíveis e não estabelece nenhuma relação semântica entre o termo adotado internacionalmente e os usos de linguagem dos idiomas nacionais (quem se lembra do grande investigador Volta quando ouve a palavra "volts"?), no caso da filosofia não ocorre o mesmo. Aqui não há uma região de experiência acessível a todos, controlável, designada por termos acordados. Os termos conceituais cunhados no campo da filosofia articulam-se sempre na língua falada da qual procedem. Também nesse caso, a conceituação supõe a restrição da possível multiplicidade de significados de uma palavra, para poder dar-lhe um significado preciso; mas essas palavras conceituais nunca se desligam totalmente do campo semântico no qual possuem todo seu significado. Desligar totalmente uma palavra de seu contexto para inseri-la (horismos  ) num conteúdo preciso, que a converte em palavra conceitual, corre o risco de esvaziar de sentido seu uso. Assim, a formação de um conceito metafísico fundamental como o de ousia nunca é plenamente realizável sem [366] ter presente também o sentido da palavra grega em sua plena acepção. Por isso, o fato de sabermos que a palavra ousia significou primariamente o sítio rural, e que daí deriva o sentido conceitual de "ser" como presença ou o presente, contribuiu sobremaneira para a compreensão do conceito grego de ser. Esse exemplo mostra que não existe uma linguagem da metafísica. Existe apenas a cunhagem de termos conceituais pensados metafisicamente e extraídos da linguagem viva. Essa cunhagem conceitual pode criar uma forte tradição, como é o caso da lógica e da ontologia de Aristóteles, gerando conseqüentemente uma alienação que já começa cedo com a cultura escolar helenística e progride na transposição para o latim. Mais tarde acaba formando novamente uma linguagem escolar com a acolhida da versão latina nos idiomas nacionais modernos. Trata-se de uma linguagem em que o conceito vai perdendo cada vez mais o sentido original derivado da experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.