Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): ornamento

Gadamer (VM): ornamento

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Kant   discute aqui a diferença entre o juízo de gosto "puro" e "intelectualizado", que corresponde ao contraste da beleza "livre" e "dependente" (com relação a um conceito). Para a compreensão da arte, essa é uma doutrina altamente fatal, enquanto surgem, como a genuína beleza do juízo de gosto puro, a beleza natural livre e — no terreno da arte — o ornamento, porque são belos "para si" ("für sich"). Por toda parte onde o conceito é "acionado junto com" — e isso ocorre não somente no campo da poesia, mas também em toda a arte representativa — a situação parece a mesma dos exemplos apresentados por Kant para a beleza "dependente". Os exemplos de Kant — homem, animal, prédios — designam as coisas da natureza, tal qual ocorrem no mundo dominado pelos fins humanos, ou coisas que foram produzidas para fins humanos. Em todos esses casos, a determinação do fim significa uma limitação para o prazer estético. Assim, segundo Kant, a tatuagem, ou seja, a ornamentação do corpo humano causa repugnância, embora "de imediato" pudesse agradar. Certamente que Kant não fala aqui da arte como tal (não simplesmente, da "bela representação de uma coisa"), mas também não, da mesma forma, das belas coisas (da natureza, ou da arte da construção). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Todavia, se se olhar mais exatamente, uma tal concepção não confere nem com as palavras de Kant nem com a questão que ele examina. O suposto deslocamento do ponto de vista de Kant, do gosto para o gênio, dessa forma não resiste; é só preciso aprender a reconhecer, já no princípio, a preparação secreta do desenvolvimento posterior. É indubitável que aquelas limitações, que impedem a tatuagem a uma pessoa ou um certo ornamento a uma igreja, não sejam lamentadas por Kant, mas ao contrário, fomentadas, que Kant, portanto, do ponto de vista moral  , julgue como um ganho, aquela ruptura que com isso acontece ao prazer estético. Os exemplos da beleza livre devem representar, evidentemente, não a própria beleza, mas tão-somente assegurar que, o agradar, como tal, não representa um julgamento da perfeição da coisa. E quando Kant, ao final do parágrafo, através da diferenciação daquelas duas espécies de beleza, essa possibilidade de apaziguamento de uma divergência com relação ao gosto é, afinal, apenas um efeito colateral, que tem como base a cooperação de dois modos de consideração, e de tal maneira que o caso mais freqüente será a unanimidade de ambos os modos de consideração. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

E isso pode-se afirmar para toda a gama do decorativo, desde a construção das cidades até os ornamentos individuais. Uma obra arquitetônica deve ser, certamente, a solução de uma tarefa artística e, enquanto tal, deve atrair a admiração maravilhada do observador. Ao mesmo tempo deve submeter-se a uma postura de vida e não pretender ser um fim em si. Ela pretende corresponder a essa postura de vida como adorno, como fundo de humor, como moldura que integra e mantém. O mesmo vale também para cada uma das configurações que empreende o arquiteto, inclusive até para ornamento que não deve atrair a atenção para si, mas deve desaparecer por completo no empenho em sua função decorativa e que o acompanha. Mas até o caso extremo do ornamento conserva em si algo da duplicidade da mediação decorativa. É verdade que não deve convidar a que nos demoremos nele, e que, como motivo decorativo, não deve mesmo ser observado, mas há de ter um efeito de mero acompanhamento. Por isso não terá, em geral, nenhum conteúdo objetivo, e, se o tiver, nivela-lo-á pela estilização ou pela repetição tão amplamente, que o olhar passará por ele sem se deter. Não se intenciona o "reconhecimento" das formas naturais empregadas num ornamento. E se o modelo reiterado é observado como aquilo que ele é objetivamente, sua repetição se converte em penosa monotonia. Porém, por outro lado, não deve atuar de modo monótono e morto, já que, em sua tarefa de acompanhamento, deve ter um efeito vivaz; deve, portanto, até certo ponto atrair o olhar sobre si. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

Na realidade, o conceito da decoração tem de ser liberado dessa oposição ao conceito da arte vivencial e encontrar seu fundamento na estrutura ontológica da representação, que já elaboramos como modo de ser da obra de arte. Bastará recordar que o adorno, o decorativo são, por seu sentido originário, o belo como tal. Vale a pena reconstruir esse antigo conhecimento. Tudo o que é adorno, e adorna, está determinado pela sua relação com o que ele adorna, com aquilo em que ele é, com aquilo que é seu portador. Não possui um conteúdo estético próprio, o qual somente a posteriori receberia um condicionamento restritivo através da relação para com seu portador. Inclusive Kant, que pode ter alentado essa opinião  , leva em conta, na sua conhecida assertiva contra as tatuagens, que um adorno só é tal, quando é conveniente ao portador e lhe cai bem. Forma parte do gosto, não somente que se saiba apreciar que algo é bonito em si, mas também que se saiba o âmbito onde ele pertence e onde não. O adorno não é primeiramente uma coisa para si, que mais tarde se acrescenta a uma outra, mas pertence ao representar-se de seu portador. Do adorno tem-se de dizer também, que pertence à representação; a representação, porém, é um acontecimento ôntico, é re-presentação. Um adorno, um ornamento, uma plástica colocada num local preferencial são re-presentativos no mesmo sentido em que o é, por exemplo, a própria igreja em que foram feitos. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.