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Gadamer (VM): ordem política

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Apesar disso, encontramos aí uma pressuposição questionável: a impossibilidade de desvincular o aspecto econômico do político. Será que assim como podemos falar de um estado de desordem econômica e ordem racional da economia mundial, também podemos determinar o estado de desordem política, cuja superação nos permitiria conceber racionalmente o conceito de ordem política? Podemos dizer que evitar a autodestruição global poderia representar um critério inequívoco para a política mundial, assim como o bem-estar geral poderia representá-lo no caso da economia mundial. Mas será um paralelo verdadeiro? Derivam-se daí realmente idéias de ordem política capazes de alcançar um consenso racional? Se afirmarmos, por exemplo, que o objetivo de toda política seria a conservação da paz, isso pode ser bem pouco esclarecedor quando se refere a guerras convencionais. Pois literalmente isso significaria que o status quo é a ordem mundial a ser conservada. Trata-se de uma conclusão que atualmente está pouco a pouco se impondo sob a pressão do equilíbrio nuclear, restringindo cada vez mais o espaço para possíveis mudanças na política mundial. Mas será que isso pode ser um critério para a política e um ideal   a ser perseguido? A política pressupõe sempre a mutabilidade da situação? Ninguém nega que existem reformulações políticas "justas", que estão a serviço de uma ordem político-mundial "justa". Com isso, porém, renova-se a questão: Qual é o padrão que mede essa justiça? Uma imagem da ordem política? Mesmo que se trate de idéias de ordem político-mundial tão racionais como a unificação européia, o critério é muito inseguro. Seria "justa" uma tal Europa  , isto é, representaria um progresso na ordem mundial, se com isso fossem destruídas relações mundiais de economia e política e fosse rompida, por exemplo, a coesão da Commonwealth? Será que isso traria mais ordem ou mais desordem? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Podemos formular a pergunta de maneira ainda mais fundamental. Será possível pensar a idéia de uma ordem política determinada que não suscite idéias contrárias? Será possível pensar idéias políticas de ordem que não favoreçam a uma ou a outra das potências políticas existentes, de tal modo que o seu favorecimento implique o desfavorecimento das outras? Será que se deve dizer que a existência desses antagônicos interesses de poder constitui uma desordem? Não serão eles a própria essência da ordem política? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Também não existe nenhum fundamento racional que justifique admitir que a ampliação das áreas em que o planejamento e a ordem racional são bem-sucedidos poderia nos aproximar de uma ordem política racional do mundo. Com o mesmo direito podemos [158] chegar à conclusão inversa e teremos que reconhecer o crescente perigo representado pela utilização de nexos racionais para fins irracionais, como expressa o ditame: "primeiro a obrigação, depois o prazer". Devemos perguntar de modo ainda mais radical se não é exatamente a cientifização de nossa economia e de nossa vida social — pense-se por exemplo nas pesquisas de opinião e nas estratégias de sua formação — que, se não fomentou, ao menos tornou consciente a incerteza com relação aos fins últimos, isto é, sobre o autêntico conteúdo da ordem mundial. A cientificização encobre a incerteza de seus critérios de ordem, logo no instante em que transforma o todo da configuração do mundo em objeto de seu planejamento elaborado e controlado cientificamente. Será que a tarefa acabou sendo mal colocada? Por mais que a atuação cientificamente racionalizada alcance uma infinidade de setores parciais, é lícito pensar a totalidade da ordem do mundo como objeto de uma tal planificação e realização racionais? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

Essa falta se evidencia no exagero quixotesco operado por Max Weber com relação à diferença entre a ciência destituída de valores e a decisão sustentada numa cosmovisão. O ideal de produção, à base do pensamento construtivista da ciência moderna, alcança aqui uma aporia. Talvez pudéssemos superar essa falta colocando em lugar do modelo do fazer o antigo modelo do governo. Governar não é fazer. Governar é, antes, um adaptar-se a circunstâncias. Dois momentos, intimamente ligados, perfazem a essência do governar: a manutenção de um equilíbrio, que oscila dentro de um espaço de jogo bem delimitado, e a condução, isto é, a determinação de um direcionamento do movimento que possibilite manter esse equilíbrio oscilante. Evidencia-se então que todo nosso planejar e fazer realiza-se dentro desse estado de equilíbrio instável, presente em todas as nossas condições de vida. Essa idéia de equilíbrio não é apenas uma das mais antigas concepções de ordem política, a partir de onde se delimita e define o grau de liberdade do sujeito ativo. Equilíbrio é uma determinação fundamental da própria vida. Nele enraízam-se todas as possibilidades indeterminadas e ainda não definidas do vivo. O homem da civilização técnica e científica está tão sujeito a ele quanto o mero vivente. No equilíbrio podemos observar a verdadeira condição da liberdade humana. O fator da vontade e do agir humanos só tem importância decisiva onde as forças mantêm o equilíbrio. Sabemos disso por causa da política. A conquista da liberdade de ação pressupõe a criação de um estado de equilíbrio. Também na ciência natural moderna ocorre algo parecido. Cada vez mais seguimos um sistema de regras, e sempre mais distantes de uma fé ingênua de poder representar esses sistemas de autocorreção do ser vivo com nossos recursos rudimentares. À medida, porém, que nossas investigações produzem conhecimentos, tornamo-nos [166] aptos a intervir, com recursos artificiais, no curso da natureza de um modo cada vez mais objetivo e adequado. Assim, em contraposição ao planejar e ao fazer, o modelo de conhecimento orientado pelo governar adquire cada vez mais importância. Mas mesmo esse modelo não pode encobrir seus pressupostos — o conhecimento das metas e da direção — , que presidem todo ato de governar. No exemplo sobre o poder dado ao piloto, Platão demarcou os limites de todo poder prático. Esse conduz seus passageiros à terra firme… mas se isso é ou não é bom para eles, ele não pode saber. Depois do assassinato de seu chefe, é possível que o piloto de Agamenão tenha sido acometido por muitas dúvidas. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.