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Gadamer (VM): orador

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Seguindo Schleiermacher  , também outros repetiram sua fórmula no mesmo sentido, por exemplo, August Boeckh, Steinthal e Dilthey  : "O filólogo entende melhor o orador e o poeta, do que este se entende a si mesmo, e melhor do que o entenderam os que eram simplesmente seus contemporâneos. Pois ele torna claramente consciente o que naquele somente prejazia de maneira inconsciente e fática". Através do "conhecimento das leis psicológicas" o filólogo pode aprofundar a compreensão conhecedora, até convertê-la em conceitual, na medida em que chega ao fundo da causalidade, da gênese da obra do discurso da mecânica do espírito compositor. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Seja qual for o caso, onde Platão   supera o nível de discussão do Crátilo, apontando para a sua própria dialética, tampouco encontramos outra relação com a linguagem do que a que já se discutiu a esse nível: ferramenta, cópia e produção, e julgamento da mesma a partir do modelo original, a partir das próprias coisas. Portanto, mesmo quando não reconhece ao âmbito das palavras (onomata) nenhuma função cognitiva autônoma, e precisamente quando exige a superação desse âmbito, retém o horizonte de questionamento em que se coloca a questão da "correctura" dos nomes. Inclusive quando não quer saber de uma correctura natural destes (como no contexto da sétima carta), continua mantendo, como padrão, uma relação de semelhança (omoion): cópia e modelo original continuam sendo para ele o modelo metafísico pelo qual ele pensa toda a relação com o noético. A arte do artesão tão bem quando a do demiurgo divino, a arte do orador tão bem quanto a do dialético filosófico copia no seu médium o verdadeiro ser das idéias. Sempre há uma distância (apexei). ainda que o verdadeiro dialético consiga por si mesmo superar essa distância. O elemento do verdadeiro discurso continua sendo a palavra (onoma e rema), a mesma palavra na qual a verdade se oculta até o irreconhecível e mesmo até sua completa anulação. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel  . Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse   do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na "hermenêutica" mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de idéias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter "paradigmático" do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Se prestarmos bem atenção à tendência de individualização, inerente à linguagem viva em sentido próprio, reconheceremos a perfeição dessa tendência na figura poética. E se isso estiver correto, então é preciso questionar se a teoria da substituição realmente convém ao conceito de sentido da expressão de linguagem. A intradutibilidade, caracterizada em última instância pela poesia lírica, uma vez que aí uma língua não se deixa traduzir para outra sem perder sua força de expressão poética, faz fracassar a idéia de substituição, de introdução de uma expressão em lugar de outra. Isso parece ser independente do fenômeno específico de geral independentemente do fenômeno especial de uma linguagem poética altamente individualizada e de importância universal. Parece-me que a possibilidade de substituição se opõe ao momento individualizante inerente ao ato de linguagem. Mesmo quando, no dizer, substituímos uma expressão por outra ou a justapomos a outra, seja por abundância retórica ou para ajustar a expressão, quando o orador não a encontra de imediato, o sentido do discurso se constrói no processo das expressões sucessivas, jamais saindo do acontecimento único dessa fluência. Deixamos esse acontecimento único quando introduzimos no lugar de uma palavra usual uma outra de sentido idêntico. Esse é o ponto onde a semântica supera a si mesma, [178] passando a ser outra coisa. A semântica é uma teoria de signos, sobretudo de signos de linguagem. Signos são, porém, meios. Os signos são usados aleatoriamente e deixados de lado como qualquer outro meio empregado na atividade humana. A expressão "ele domina os meios" significa: "ele emprega-os corretamente com vistas a um fim". Também dizemos que devemos dominar uma língua, se quisermos nos comunicar nessa língua. Mas o verdadeiro falar é mais que a escolha dos meios para alcançar determinados objetivos de comunicação. A língua que dominamos é onde vivemos, isto é, onde o que queremos comunicar só pode ser "conhecido" na forma da linguagem. O fato de "escolhermos" as palavras é uma ilusão ou um efeito da linguagem criado quando o dizer sofre uma inibição. O dizer "livre" flui na entrega abnegada à questão evocada através da linguagem. Isso também vale para a compreensão de discursos fixados em textos escritos, pois também os textos, quando compreendidos, são reinseridos no movimento de significação do discurso. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

Mas a oratória como tal está ligada à imediaticidade de seus efeitos. Com profunda erudição, Klaus Dockhorn mostrou em que medida o produzir efeitos se impôs como o mais importante recurso persuasivo desde Cícero e Quintiliano até a retórica política inglesa do século XVIII. Mas o produzir efeitos, enquanto a tarefa essencial do orador, tem muito pouca influência quando se trata da expressão escrita, a qual se torna objeto do esforço hermenêutico; e é justamente essa diferença que queremos destacar: o orador arrasta o ouvinte. O brilho de seus argumentos deslumbra o ouvinte. A força persuasiva do discurso não deve nem pode admitir a reflexão crítica. A leitura e interpretação do escrito, ao contrário, estão tão distanciadas e afastadas do escritor, de seus humores, de suas intenções e de suas tendências latentes que a apreensão do sentido do texto adquire o caráter de uma produção autônoma que se assemelha mais à arte do discurso do que ao comportamento de seu ouvinte. Compreende-se assim o fato de os recursos teóricos da arte da interpretação serem tomados em grande medida da retórica, como demonstrei em alguns pontos e como expôs Dockhorn numa ampla base. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

"O mais importante é a intenção primordial e o ponto de vista central, ou, como dizemos nós, a finalidade do discurso". Melanchton introduz, assim, um conceito que é determinante na hermenêutica tardia de Flacius e que ele toma emprestado da introdução metodológica à ética aristotélica. É claro que, ao afirmar que os gregos costumavam interrogar desse modo ao iniciar seus livros (sid), Melanchton não se refere ao discurso em sentido estrito. O conhecimento da intenção básica de um texto é essencial, segundo ele, para uma compreensão adequada. Esse ponto é essencial também para a principal teoria exposta por Melanchton, que é sem dúvida sua doutrina sobre os loci comunes. Introduz essa doutrina como parte da inventio, seguindo assim a antiga tradição da tópica. Ele está, porém, plenamente consciente da problemática hermenêutica que nela se aloja. Ele acentua que esses capítulos mais importantes, "que contêm as fontes e o resumo de toda a arte" , não é apenas um grande cabedal de opiniões, cujo conhecimento seria muito proveitoso para o orador e o mestre — porque na verdade uma boa compilação desses loci constituiria a totalidade do saber. Implicitamente, isso significa uma crítica hermenêutica à superficialidade de uma tópica retórica. Ao contrário, busca a justificação de seu próprio proceder. Isso porque Melanchton foi o primeiro a fundamentar a dogmática do protestantismo antigo numa escolha e compilação significativas de passagens decisivas da Sagrada Escritura; os lociprecipui editados em 1519. A crítica católica tardia ao princípio bíblico protestante não é totalmente justa quando denuncia uma inconsequência no princípio bíblico dos formadores à luz da apresentação desses enunciados dogmáticos. De certo, toda seleção de textos inclui uma interpretação, apresentando assim implicações dogmáticas, mas o postulado hermenêutico da teologia protestante primitiva consiste justamente em legitimar suas abstrações dogmáticas através da própria Escritura e a intenção desta. Uma outra questão é saber até onde os teólogos reformadores seguiram realmente o princípio da Escritura. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Poderíamos continuar detectando elementos da retórica como posterior princípio da hermenêutica, mas quem sabe baste uma reflexão geral. Trata-se de debater sobre a nova tarefa da leitura. Diferente do discurso falado, o texto escrito ou reproduzido vê-se privado dos recursos de compreensão que costuma oferecer o orador. Estes recursos podem ser resumidos no conceito de entonação [284] correta. Todos sabem da dificuldade de reproduzir frases de um texto com a correta entonação. A soma de toda compreensão se encerra no caso ideal   — nunca perfeitamente realizado — do acento correto. Dannhauer faz uma observação acertada: "A literatura quase não pode ser compreendida de outro modo que através de um professor vivo. Quem pode ler sem essa ajuda os antigos manuscritos dos monges? E a pontuação só pode ser conhecida mediante as normas dadas pelos oradores sobre os períodos, as vírgulas e os dois pontos". Essa passagem confirma que o novo recurso que a pontuação representou para a literatura se baseia na antiga arte da divisão ensinada pela retórica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Isso é apresentado de maneira muito aguda e simpática no Fedro de Platão (268s): aquele que possui todos os conhecimentos médicos e as regras de conduta, mas ainda não sabe quando e onde aplicá-los, não é um médico. O trágico ou o músico que aprendeu apenas as regras e os procedimentos gerais de sua arte, mas não criou com eles uma obra, não é um literato ou um músico (280 bs). Também o orador deve conhecer o lugar e o tempo de todas as coisas (hai eukairiai te kai akairiai, 272 a 6). Nesse ponto, Platão já sugere uma superação do modelo de ciência inspirado na techne  , ao transferir o supremo saber para a dialética. Nem o médico, nem o poeta e nem o músico conhecem "o bem". O dialético ou o filósofo verdadeiro, que não é sofista, não "possui" um saber especial, mas é em sua pessoa a materialização da dialética ou da filosofia. Nessa linha, também no diálogo sobre o estadista aparece a arte política como uma espécie de arte têxtil que permite compor com o oposto numa unidade (305 e). Essa arte aparece personificada no estadista. Também no Filebo, o saber sobre à "vida honesta" representa a arte da composição ou mescla que o indivíduo desejoso da felicidade deve realizar. Ernst   Kapo comentou essa idéia no que diz respeito ao estadista num belo trabalho, e meus próprios estudos iniciais de crítica à construção histórico-evolutiva de Werner Jaeger detectavam algo similar no Filebo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Sobre esse fundo é preciso ver a distinção entre filosofia teórica, filosofia prática e filosofia poiética, que se inicia em Aristóteles   e deve determinar o grau teórico-científico de sua filosofia prática. [308] O destaque dialético que Platão confere à retórica no Filebo é um bom indicador. A retórica é inseparável da dialética; a persuasão, que é um convencer, é inseparável do conhecimento da verdade. Assim mesmo, a compreensão deve ser concebida a partir do saber. E uma capacidade de aprendizagem, e isso o sublinha ainda Aristóteles quando trata da synesis. Pois bem, o verdadeiro orador dialético, tanto quanto o estadista e qualquer um que busque conduzir sua própria vida, persegue "o bem". Mas o bem não se apresenta como um ergon  , produzido pelo fazer, mas como praxis   e eupraxia (quer dizer, como energeia  ). Nessa linha, a política aristotélica não trata a educação como uma filosofia poiética, embora tenha de "fazer" bons cidadãos. Trata-a, antes, como teoria das formas de constituição enquanto filosofia prática. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Esse é o ensinamento inequívoco de Aristóteles no capítulo que passa da ética à política. A filosofia prática pressupõe já estarmos conformados pelas idéias normativas nas quais fomos educados e que sustentam a ordem de toda vida social. De modo algum isso significa que essas perspectivas normativas sejam imutáveis, não podendo ser criticadas. A vida social consiste num processo constante de reajuste das vigências existentes. Mas a tentativa de derivar in abstracto as idéias normativas e dar-lhes validade com o pretexto de sua retidão científica não passa de uma ilusão. Trata-se, pois, de um conceito de ciência que não preconiza o ideal do observador distante, mas que impulsiona a conscientização do elemento comum que vincula a todos. Em meus trabalhos, empreguei esse ponto às ciências hermenêuticas, sublinhando a pertença do intérprete ao interpretandum ou ao objeto a ser interpretado. Aquele que busca compreender algo já traz consigo uma antecipação que o liga com o que busca compreender, um consenso de base. Assim, o orador deve ligar-se sempre a essa antecipação se quiser ter sucesso na persuasão e convencimento sobre questões discutidas. Também a compreensão da opinião   do outro ou de um texto se realiza dentro de uma relação de consenso, apesar de todos os possíveis mal-entendidos, e busca o entendimento acima de qualquer dissenso. A praxis de uma ciência viva segue essa mesma linha. Essa praxis também não é uma mera aplicação de um saber e de métodos a um objeto qualquer. Só quem adota a perspectiva de uma ciência é que sente a premência das questões. Todo historiador das ciências sabe até que ponto os problemas pessoais, as experiências intelectuais, as necessidades e esperanças de uma época determinam a orientação e o interesse da ciência e da investigação. Mas a antiga pretensão de universalidade atribuída por Platão à retórica se prolonga sobretudo no âmbito das ciências compreensivas, cujo tema universal é o homem imerso nas tradições. Desse modo, pode-se aplicar à hermenêutica a mesma afinidade com a filosofia que representou o resultado provocativo da discussão do Fedro sobre a retórica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Chegamos assim a um conceito sumário do que está à base de [345] toda constituição de textos e permite sua inserção no contexto hermenêutico: toda volta ao texto — seja um texto real, fixado por escrito, ou uma mera reprodução do que se expressa na conversação — remete à "notícia originária", ao notificado ou anunciado originariamente que há de valer como algo idêntico dotado de sentido. A tarefa prescrita a tudo que se vai fixar por escrito é justamente que esta "notícia" deve poder ser compreendida. E o texto escrito deve fixar a informação originária de tal modo que seu sentido seja compreensível univocamente. À tarefa do escritor corresponde aqui a tarefa do leitor, do destinatário ou do intérprete, que é a tarefa de alcançar essa compreensão, ou seja, fazer com que o texto fixado por escrito fale novamente. Nesse sentido, ler e compreender significa restituir à informação sua autenticidade original. A tarefa da interpretação se apresenta quando o conteúdo do que é fixado por escrito é controverso e é preciso alcançar a reta compreensão da "informação". Mas a "informação" não é o que o orador ou o escritor disse originariamente, mas o que queria dizer se eu tivesse sido seu interlocutor originário. O problema hermenêutico na interpretação das "ordens", por exemplo, é que estas devem cumprir-se "conforme seu sentido" (e não ao pé da letra). O que se explica pela constatação de que um texto não é um objeto dado, mas uma fase na realização de um processo de entendimento. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Um texto literário não é uma mera fixação de um discurso falado. Não remete a uma palavra já pronunciada. Isso tem [352] conseqüências para a hermenêutica. A interpretação não é aqui um mero recurso para reintermediar um enunciado original. O texto literário é um texto que dispõe de um status especial, justamente porque não remete a um ato de linguagem originário, mas prescreve, antes, todas as repetições e atos de linguagem. Nenhuma linguagem falada pode cumprir totalmente a prescrição representada por um texto literário. Esse exerce uma função normativa que não se refere ao discurso originário nem à intenção do orador, mas surge nele mesmo; por exemplo, na felicidade de um poema bem-sucedido que surpreende e supera o próprio poeta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu significado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, também o texto literário — com todos os matizes que ostenta — possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso não é um "escrito", tampouco como uma conferência é uma aula, um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensível em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma repetição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma linguagem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota nas relações existentes entre os significados principais das palavras. Justamente as relações de significado anexas, que não aparecem ligadas à teleología de sentido, conferem sua magnitude (Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o conjunto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda audição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende o que ouviu como a figura de sentido de um discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

No extremo fica claro o quão complexo é o ajuste do discurso à unidade e o arranjo de seus elementos, isto é, das palavras. Por exemplo, quando a palavra em sua polivalência se vangloria como possuidora de um sentido independente. Chamamos a isso um jogo de palavras. Ora, não se pode negar que ela, muitas vezes, alcança a independência unicamente quando utiliza a linguagem como adorno, o qual realça o engenho do orador, mas permanece totalmente subordinada à intenção de sentido do discurso. A conseqüência é que o sentido do discurso como um todo perde prontamente sua univocidade. Por trás da unidade do fenômeno sonoro aparece então a unidade oculta de significados heterogêneos e até opostos entre si. Nesse contexto, Hegel falou de instinto dialético da linguagem, e no jogo de palavras Heráclito   viu um dos testemunhos mais relevantes de sua intuição básica, a saber, os contrários são na verdade um e o mesmo. Mas esse é um modo de falar filosófico. Trata-se de rupturas da relação semântica natural do discurso que são úteis para o pensamento filosófico, uma vez que assim a linguagem vê-se forçada a abandonar seu significado objetivo imediato e favorecer o surgimento das especulações do pensamento. O sentido equívoco nos jogos de palavras representa a forma mais densa de manifestação do elemento especulativo, que se explicita em juízos contraditórios. Como disse Hegel, a dialética é a representação do especulativo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Isso vale para todo tipo de audição e de leitura. No caso dos textos literários, a situação é muito mais complexa. Neles não se trata simplesmente de recolher a informação transmitida pelo texto. Não corremos, impacientes, diretamente à busca do sentido final para com ele captar a totalidade da comunicação. Também nesse caso se dá, sem dúvida, uma espécie de compreensão instantânea [358], que permite ver a unidade do conjunto. No texto poético ocorre o mesmo que na imagem artística. Conhecemos relações de sentido, embora de modo vago e fragmentário. Mas em ambos os casos a referência que retrata a realidade fica em suspenso. O texto é o único que permanece presente com sua relação de sentido. Quando lemos textos literários, em voz alta ou baixa, vemo-nos constantemente remetidos a relações de sentido e de som que articulam a estrutura da totalidade, e isso não apenas uma vez, mas sempre de novo. Voltamos páginas atrás, recomeçamos, relemos o texto, descobrimos novas relações de sentido e ao final não estamos seguros de ter finalmente compreendido a coisa, resultado que em geral nos faria abandonar o texto. Ocorre o inverso: aprofundamo-nos cada vez mais, conforme aumentem as referências de sentido e som que entram na consciência. Não abandonamos o texto, mas nos deixamos conduzir para dentro dele. Permanecemos em seu interior, como o orador se mantém no âmbito das palavras que diz e não fica à distância como ocorre com aquele que maneja ferramentas, que as toma e as deixa de lado. Nesse sentido, torna-se um grande erro falar de manejo das palavras. A expressão "manejo de palavras" não atinge a fala real. Trata-a como se lançasse mão de um léxico de uma língua estrangeira. E quando se trata de fala real, é preciso limitar radicalmente as regras e normas. Essa limitação é válida sobretudo para o texto literário. O texto literário não é correto em função de dizer o que todos e cada um diria, mas porque possui um novo e singular critério de correção, que o caracteriza como uma obra de arte. Cada palavra se "encaixa", parecendo quase insubstituível, e de certo modo o é. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.