Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): opinião pública

Gadamer (VM): opinião pública

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Para as ciências do espírito não é nada fácil encontrar junto à opinião   pública a reta compreensão de seu modo de trabalho. E difícil de tornar visível o que nelas é verdade, o que nelas vem à tona. É sempre mais fácil compreender aqueles âmbitos das ciências do espírito, cujos objetos têm o modo de ser do sensível. Se um administrador público tivesse que falar hoje do significado de seu trabalho para o bem-estar público, seria certamente compreendido por todos. O mesmo aconteceria se um especialista em arte nos apresentasse algo belo, mesmo que oriundo da escavação de algo muito antigo. Também o muito antigo desperta um curioso tipo de interesse   comum. Mas ao filósofo, em lugar de resultados manifestos ou convincentes a todos, cabe trazer à fala o que no trabalho das ciências do espírito dá ao pensador o que pensar e ponderar. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Nas ciências do espírito, porém, essa pressão se exerce como que a partir de dentro. Elas até correm o risco de considerar como verdadeiro aquilo que corresponde aos interesses desses poderes. Uma vez que o seu trabalho carrega em si sempre um momento de incerteza, a confirmação dos outros é de especial importância para elas. Estes serão, como sempre, os especialistas, quando forem "autoridades". Visto, porém, que seu trabalho interessa a todos, a intenção do investigador já busca adequar-se à opinião pública e ir de encontro à repercussão que a própria investigação nela encontra. Assim, por exemplo, o interesse nacional está particularmente presente quando se vai escrever uma história política. É sabido por todos o quanto pode ser diferente o mesmo acontecimento histórico, quando descrito por investigadores de nacionalidades diversas, [42] mesmo sendo sérios. Isso não acontece porque eles calculam os efeitos, mas por causa de uma co-pertença interna que determina previamente seu ponto de vista. Esse processo, porém, pode reverter-se com muita facilidade e levar a pessoa a buscar assumir o ponto de vista favorável à influência do público. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Agora, porém, precisamos reconhecer que não se trata de uma degeneração qualquer, devida à debilidade humana, mas que o nosso tempo se caracteriza precisamente por ter desenvolvido um sistema de exercício de poder e domínio, a partir dessa debilidade comum. Quem domina os recursos técnicos do serviço de notícias não decide apenas o que deve ser publicado. Com o controle da publicidade pode manipular também a opinião pública para seus próprios fins. É justamente porque somos muito mais dependentes em nossa formação de opinião do que aquilo que corresponde à nossa auto-avaliação, fundada no Iluminismo, que esses instrumentos de poder têm uma força tão demoníaca. Quem não reconhece sua dependência e acredita ser livre, quando na realidade não o é, está vigiando suas próprias algemas. O próprio terror repousa no fato de que os aterrorizados aterrorizam a si mesmos. A experiência mais funesta que a humanidade fez neste século foi a de que a própria razão é corrupta. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

As ciências do espírito, que fazem esta experiência em si mesmas, têm assim a possibilidade especial de evitar as seduções do poder e a corrupção da sua razão. Isto porque o seu autoconhecimento desilude-as de querer empregar mais ciência a fim de alcançar o que elas ainda não podem gerar. O ideal   de um iluminismo pleno   acabou contradizendo a si próprio, e foi justamente isso que forneceu às ciências do espírito sua tarefa específica: tanto ter o pensamento sempre voltado para a elaboração científica da própria finitude e do condicionamento histórico quanto resistir à auto-apoteose do Iluminismo. Não podem desincumbir-se da responsabilidade da influência que exercem. Frente à manipulação da opinião pública pela publicidade imposta pelo mundo moderno, elas exercem, através da família e da escola, uma influência sobre o universo dos adolescentes. Onde elas se pautam pela verdade, imprimem um vestígio indelével de liberdade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Seria uma ilusão acreditar que este problema não existe mais no estado moderno, porque esse estado reconhece, de princípio, a liberdade da ciência. A evocação dessa liberdade continua sendo sempre uma abstração perigosa. Ela não isenta o pesquisador de sua responsabilidade política, tão logo ele saia do silêncio de seu quarto de estudos e do laboratório — protegido do acesso de pessoas impertinentes — e comunica seus conhecimentos ao público. Embora a idéia da verdade presida a vida do investigador de maneira incondicional e inequívoca, sua franqueza para falar é limitada e polivalente. Ele deve saber da repercussão de sua palavra e responder por isso. O reverso diabólico desse contexto é porém que, em vista dessa repercussão, ele vê-se tentado a proclamar aos outros e até a persuadir a si próprio de que a verdade é na realidade aquilo que lhe dita a opinião pública ou os interesses do poder do Estado. Há aqui uma pertença íntima entre a limitação de expor a opinião e a falta de liberdade do próprio pensamento. Não podemos tergiversar o fato de que a questão "O que é verdade?", no sentido apresentado por Pilatos, continua determinando ainda hoje a nossa vida. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Cabe então perguntar se essa relação entre o conformismo natural da sociedade e as forças críticas que o desfazem não se modificou qualitativamente numa civilização técnica e altamente industrializada. Sempre houve mudanças imperceptíveis no uso e na vida da linguagem. Modismos e gírias sempre surgem e desaparecem. Observando-se as mudanças ocorridas na linguagem é possível retratar épocas muito críticas, em seu processo de decadência. Foi o que mostrou Tucídides, na famosa narrativa das conseqüências da peste na cidade sitiada de Atenas. Mas nas circunstâncias atuais, é bem possível que se trate de algo qualitativamente novo e diverso, algo que ainda não se deu. Refiro-me ao que se chama de versão oficial. Parece uma realidade criada apenas pela civilização técnica. O que chamamos de versão oficial já não significa mais o regulamento espontâneo do mestre escolar ou dos órgãos de opinião pública, mas um instrumento político conscientemente manejado. Com os recursos de um sistema de comunicação cujo controle é centralizado, é possível sugerir conteúdos e situações, impondo versões oficiais por vias técnicas. Um exemplo de nossa atualidade onde nos deparamos com um movimento de linguagem em transformação foi a denominação da outra metade da Alemanha como DDR. Sabemos que essa denominação foi proibida por décadas pela versão oficial da burocracia e a sugestão de chamá-la de Mitteldeutschland possuía uma conotação acentuadamente política que não deve ser esquecida. Nesse caso, devemos deixar de lado todas as questões de conteúdo e considerar apenas o acontecimento como tal. A forma técnica em que hoje se forma a opinião confere à versão oficial estabelecida por uma central de controle uma influência que desfigura de forma particular o conformismo natural da sociedade. Um dos problemas da atualidade é harmonizar a política de formação de opinião, submetida a um controle centralizado, com as exigências racionais de co-determinar a vida da sociedade a partir de uma visão livre e de um juízo crítico. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

Para solucionar esse problema deve-se ter em mente que a ciência se caracteriza justamente por possibilitar a independência com respeito à formação de opinião pública e à política e por ensinar a formação do juízo a partir de uma visão livre. Em seu âmbito mais próprio, essa pode ser a característica mais apropriada de ciência. Mas será que a ciência tem influência sobre o âmbito público por sua própria força? Por mais que a ciência se empenhe intencionalmente em evitar todas as manipulações, a enorme estima [191] pública de que goza se lhe contrapõe. Essa estima limita constantemente a liberdade crítica que ela admira no investigador, invocando a autoridade da ciência, quando na verdade se trata de lutas políticas de poder. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.

Mas isso não tem muita importância para as ciências da natureza, como tais. O pesquisador da natureza sabe perfeitamente quão particular é o âmbito de conhecimento de sua ciência no todo da realidade humana. Não partilha do endeusamento que a opinião pública lhe atribui. E assim que, tanto a opinião pública quanto o pesquisador que recorre a ela precisam da reflexão hermenêutica sobre as pressuposições e limites da ciência. Na suposição de que ainda consigam exercê-la, as assim chamadas humaniora dispõem de uma boa comunicação com a consciência geral, porque seus objetos pertencem imediatamente à tradição cultural e ao corpo formativo tradicional. Mas as ciências sociais mantêm uma relação especialmente [249] tensa com seu objeto, a realidade social, necessitando assim da reflexão hermenêutica. O estranhamento metodológico, a que elas devem seu progresso, refere-se aqui ao todo do mundo humano-social. Por causa desse estranhamento, o mundo vê-se colocado à disposição da ciência, no que se refere à planificação, direção, organização, desenvolvimento, enfim, numa infinidade de funções que determinam por assim dizer a partir de fora a vida de cada indivíduo e de cada grupo. O engenheiro social que cuida do funcionamento da máquina social parece dissociado da sociedade a que pertence. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Preciso reconhecer assim o fato de que esse é o terreno que a hermenêutica tem em comum com a retórica: o terreno dos argumentos persuasivos (e não dos argumentos logicamente concludentes). Torna-se difícil defender a retórica na cultura científica moderna (o próprio Giegel, quando lança mão de Vico como ilustração, desconhece o caráter racional presente na retórica, ao pensar que algo tão abominável como o in utramque partem disputare deva ser deixado apenas aos demagogos de plantão, considerando Carneades como um desses). Quando a retórica, como se sabe desde antigamente, apela aos afetos, isso não significa que ela [274] abandona o âmbito do racional, e Vico reivindica com razão seu valor próprio: a copia, a riqueza dos pontos de vista. Por outro lado, uma afirmação como a de Habermas, segundo a qual a retórica conteria um caráter coercitivo, devendo ser deixada de lado em nome do diálogo racional livre de coerções, apresenta uma irrealidade espantosa. Se a retórica contém um momento coercitivo, o certo é que a práxis social — e também a práxis revolucionária — seria impensável sem esse momento. Parece-me muito significativo que a cultura científica de nossa época não tenha rebaixado o significado da retórica, mas antes o tenha incrementado, como vemos no caso dos meios de comunicação (ou também na análise acertada que faz Habermas da "opinião pública"). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

O conceito de manipulação torna-se ambíguo nesse contexto. Toda influência emocional produzida pelo discurso representa esse tipo de manipulação. E no entanto isso que, sob a designação de retórica, constitui um momento integral da vida social desde antigamente não é uma mera técnica social. O próprio Aristóteles já chamava a retórica de dynamis   e não techne  , tal a sua pertença ao zoon logon echon  . Mesmo as formas tecnifiçadas da formação de opinião desenvolvidas por nossa sociedade industrial implicam sempre um determinado momento de consentimento, seja por parte do consumidor, que pode também negar seu consentimento, seja no fato de — e isso é o decisivo — que nossos meios de comunicação não representam apenas o prolongamento de uma vontade política unitária, mas tornam-se palco de debates políticos que em parte refletem, em parte determinam os acontecimentos políticos na sociedade. Uma teoria da hermenêutica profunda, ao contrário, deve justificar uma reflexão emancipatória baseada na crítica social. Ela deve esperar que uma teoria geral da linguagem natural permita "derivar o princípio do discurso racional como o regulador necessário de todo discurso real, por mais distorcido que este seja". Essa teoria da hermenêutica implica, contra sua vontade — sobretudo face à organização do estado social moderno e de seus modos de formação de opinião — , a função do engenheiro social que empreende sem espaço para a liberdade. Este, enquanto possuidor dos meios publicitários e da verdade por ele pretendida, deveria estar investido do poder de um monopólio da opinião pública. Não é uma hipótese fictícia. A retórica não pode ser relegada, como se não precisássemos dela ou se nada dependesse dela. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Esses textos aparecem, por exemplo, na formação de opinião pública, denunciando a influência ideológica. O conceito de ideologia quer dizer precisamente que aqui não se dá uma verdadeira comunicação, mas serve para encobrir interesses escusos. Por isso a crítica da ideologia trata de refutar o que foi dito com interesses escusos, por exemplo os interesses da classe burguesa na luta por interesses capitalistas. Seria possível igualmente criticar a própria atitude da crítica à ideologia como uma atitude ideológica, uma vez que defende interesses antiburgueses ou de outro tipo, mascarando assim seus próprios pré-textos. Talvez possamos considerar como motivo comum da recaída em interesses ocultos a ruptura do consenso, o que Habermas chama distorção da comunicação. A comunicação distorcida aparece igualmente como uma perturbação da possibilidade de consenso e entendimento, motivando assim a recuperação do sentido verdadeiro. É como uma decodificação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Considerar a retórica como uma mera técnica e até mesmo como um mero instrumento de manipulação social não passa de uma miopia que não quer ver seu verdadeiro sentido. Na verdade, ela constitui um aspecto essencial de todo comportamento racional. O próprio Aristóteles não considerava a retórica como uma techne mas como uma dinamis, tal a sua participação na determinação geral do homem como um ser racional. A institucionalização da formação de opinião pública, desenvolvida por nossa sociedade industrial, por maior que seja seu âmbito de atuação e por mais que mereça ser designada como manipulação, não esgota, em absoluto, o âmbito da argumentação racional e da reflexão crítica que domina a práxis social. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.