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Gadamer (VM): objetividade da ciência

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Com isso, o conde Yorck eleva à categoria de um princípio metódico o que Husserl  , mais tarde, irá desenvolver amplamente na sua fenomenologia. Compreende-se, dessa maneira, como foi possível que se encontrassem, no geral, dois pensadores tão diversos como Husserl e Dilthey  . O retorno a posições anteriores à abstração do neokantismo torna-se comum a ambos. Yorck concorda com ambos, e no entanto, ele oferece ainda mais que isso. Pois não retrocede até a vida apenas com intenção epistemológica, senão que retém também a relação metafísica de vida e autoconsciência, da forma como Hegel   a havia elaborado. E é nisso que Yorck se mostra superior a Husserl e a Dilthey. As reflexões epistemológicas de Dilthey, como vimos, acabaram errando o alvo no momento em que derivou a objetividade da ciência, num raciocínio excessivamente curto, a partir do comportamento vital e sua busca do estável. A Husserl faltou, de modo absoluto, uma determinação mais próxima do que é a vida, embora o núcleo da fenomenologia, a investigação das correlações acompanhem, segundo a coisa em causa, o modelo estrutural da relação vital. O conde Yorck, porém, estende a ponte que sempre fazia falta entre a Fenomenologia do espírito de Hegel e a Fenomenologia da subjetividade transcendental   de Husserl. Não obstante, os fragmentos que nos legou não mostram como pensava evitar a metafisização dialética da vida, que ele mesmo reprova em Hegel. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como "conceber a partir da vida", tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma "hermenêutica da facticidade" Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro "cogito  ", como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma idéia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O esforço de Dilthey para tornar compreensíveis as ciências do espírito a partir da vida e para tomar como ponto de partida a experiência vital, não havia chegado nunca a equiparar-se realmente com o conceito cartesiano da ciência, a que se mantinha apegado. Por mais que ele acentuasse a tendência contemplativa da vida e o "impulso à estabilidade" que lhe é inerente, a objetividade da ciência, ao modo como ele a entendia, como uma objetividade dos resultados, provinha de uma origem diferente. Foi por isso que Dilthey não conseguiu superar as tarefas que ele mesmo havia escolhido e que consistiam em justificar epistemologicamente a peculiaridade metódica das ciências do espírito, equiparando-se assim em dignidade com as da natureza. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Em face disso, Heidegger pôde empreender um caminho completamente diferente, porquanto Husserl, como já se viu, já tinha convertido o recurso à vida num tema de trabalho praticamente universal, deixando para trás, com isso, a redução à questão do método das ciências do espírito. Sua análise do mundo da vida e da fundação anônima de sentido, que constitui o terreno de toda experiência, proporcionou um contexto completamente novo ao problema da objetividade da ciência como um caso especial. A ciência pode ser tudo, menos um factum de que se tivesse de partir. Antes, a constituição do mundo científico propõe uma tarefa própria, ou seja, a tarefa de esclarecer a idealização que se dá junto com a ciência. Mas essa não é a primeira tarefa. Com o recurso à "vida produtiva" a oposição entre natureza e espírito não se mostra como a única que vale. Tanto as ciências do espírito como as da natureza deverão derivar-se dos desempenhos da intencionalidade da vida universal, portanto, de uma historicidade absoluta. Essa é a única forma de compreender, através da qual a auto-reflexão da filosofia faz justiça a si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Heidegger somente entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com a finalidade ontológica de desenvolver, a partir delas, a pré-estrutura da compreensão. Já nós, pelo contrário, perseguimos a questão de como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão. A autocompreensão tradicional da hermenêutica repousava sobre seu caráter de teoria da arte. Isso vale inclusive para a extensão diltheyana da hermenêutica como organon   das ciências do espírito. Pode até parecer duvidoso que exista uma tal teoria da arte da compreensão; sobre isso voltaremos mais tarde. Em todo caso, cabe indagar pelas conseqüências que tem para a hermenêutica das ciências do espírito o fato de Heidegger derivar fundamentalmente a estrutura circular da compreensão a partir da temporalidade da pre-sença. Essas conseqüências não necessitam ser tais, como se aplicasse uma nova teoria à práxis e esta fosse exercida por fim, de uma maneira diferente, de acordo com sua arte. Poderiam também consistir em que a autocompreensão da compreensão exercida constantemente fosse corrigida e depurada de adaptações inadequadas; um processo que mormente se optimalizaria por meio da arte do compreender. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A base psicológica da hermenêutica idealista mostrou seu lado problemático: Será que o sentido de um texto realmente se esgota no sentido que o autor "tem em mente" (mens   auctoris)? Será a compreensão nada mais do que a reprodução de um produto original? Está claro que esse questionamento não pode ser aplicado a uma hermenêutica jurídica, que exerce uma evidente função de criação do direito. Costuma-se relegá-lo à esfera de uma tarefa normativa, considerando-o como uma aplicação prática que nada tem a ver com "ciência". O conceito da objetividade da ciência exige ater-se ao cânon determinado pela mens   auctoris. Mas será esse cânon realmente suficiente? O que se dá, por exemplo, na interpretação de obras de arte (que no diretor de teatro  , no regente e no próprio tradutor apresentam também a forma de uma produção prática)? Pode-se, por acaso, negar que o artista executor "interpreta" a criação original, não se limitando a fazer dela uma nova criação? Costumamos distinguir com muita clareza entre interpretações adequadas e interpretações "inadmissíveis" ou "fora de estilo" de peças musicais ou dramáticas. Com que direito podemos excluir da ciência esse sentido reprodutivo de interpretação? Será que essa reprodução pode dar-se em estado de sonambulismo e desconhecimento? O conteúdo semântico da reprodução não pode restringir-se ao sentido que o autor presta conscientemente à obra. Sabe-se que a auto-interpretação do artista tem um valor questionável. O sentido de sua criação impõe uma tarefa de aproximação inequívoca, mesmo para a interpretação prática. Assim como a interpretação feita pela ciência, tampouco a reprodução pode, de modo algum, estar exposta à arbitrariedade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.