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Gadamer (VM): neutralidade

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

[44] Compreendida imediatamente a partir do sentido da situação histórica, a pergunta de Pilatos, "O que é a verdade?" (Jo 18,38), engloba em si o problema da neutralidade. O modo em que o Procurador Pôncio Pilatos, na situação política da Palestina de então, proferiu essa frase indica que aquilo que um homem como Jesus afirma como verdade não tem relação alguma com o Estado. O posicionamento liberal e tolerante que assume, assim, o governo do Estado diante da situação tem algo muito peculiar. Procuraríamos em vão, se quiséssemos encontrar algo parecido na Antiguidade ou mesmo no universo do estado moderno, até a época do liberalismo. O que possibilitou essa atitude de tolerância assim entendida foi a situação política peculiar de um governo de Estado oscilando entre um "rei" judeu e um procurador romano  . Talvez o aspecto político da tolerância seja sempre semelhante a esta situação; sendo assim, a tarefa política que impõe o ideal   da tolerância consistirá justamente em proporcionar tais situações de equilíbrio ao poder do Estado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: "Conceber aquilo que nos toca" (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio  . Isso não deixa de ter consequências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma "aplicação" posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit  ) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida "de maneira puramente teórica", a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A pergunta pelas formas de ordenamento de nosso mundo, tanto o de hoje como o futuro, coloca-se como uma pergunta puramente científica: Que podemos fazer? Como podemos organizar as coisas? Como se apresentam as bases sobre as quais podemos [160] planejar? Que devemos modificar e observar para que a administração de nosso mundo se torne cada vez melhor e menos conflituosa? A ideia de um mundo dotado de uma administração perfeita parece ser o ideal negado justamente aos países mais avançados, em virtude de sua concepção de vida e de suas convicções políticas. É interessante notar que esse ideal se apresenta como o ideal da administração perfeita e não como um ideal de futuro com um conteúdo definido, como por exemplo o estado da justiça, base para a utopia do Estado platônico, ou como o Estado mundial, formado pelo predomínio de um determinado sistema político, de um povo ou uma raça sobre outros sistemas, povos e raças. A base do ideal de administração é uma ideia de ordem que não comporta nenhum conteúdo específico. O objetivo declarado de toda administração não é o saber sobre que tipo de ordem deve dominar, mas saber que tudo deve ter sua ordem. Por isso, o ideal da neutralidade pertence essencialmente à ideia de administração. O que se busca é o bom funcionamento como um valor em si. É bem provável que o fato de os grandes impérios mundiais de hoje poderem se encontrar e alcançar um equilíbrio no terreno neutro de um tal ideal administrativo não chegue a representar nem sequer uma esperança utópica. A partir disso, torna-se óbvio considerar a ideia de uma administração mundial como a forma de ordem do futuro. Nela a objetivação da política encontraria sua verdadeira perfeição. Será então que o ideal formal   da administração mundial representa a realização da ideia de ordem mundial? VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 12.

O fato de ter condensado em uma ampla obra meu compromisso apaixonado como professor devo à necessidade óbvia de refletir sobre o modo como se poderia trazer a uma real atualidade os diversos caminhos filosóficos que se tinha que seguir no ensino, partindo da situação filosófica do presente. O esquema de um processo histórico construído a priori   (Hegel  ) pareceu-me tão insatisfatório como a neutralidade relativista do historicismo. Acontecia-me como acontecia a Leibniz   que assegurava estar de acordo com quase tudo que lia. Mas diferentemente do grande pensador, nessa experiência não me senti estimulado a esboçar uma ampla síntese. Perguntava, antes, se a filosofia tinha o direito de pleitear essa tarefa sintética e se não deveria, antes, manter-se aberta de modo radical ao progresso da experiência hermenêutica, acolhendo tudo que fosse esclarecedor e opondo-me na medida do possível a que aquilo que houvesse ganhado clareza voltasse ao obscurecimento… A filosofia é esclarecimento, mas esclarecimento inclusive contra o dogmatismo de si mesma. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.