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Gadamer (VM): linguagem natural

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A resposta a essa pergunta não é, de modo algum, evidente. Existe um grande movimento na filosofia atual, que não deve ser menosprezado em seu significado, para o qual há uma resposta segura a esta questão. Ele crê que todo o segredo e tarefa da filosofia consiste em formular o enunciado tão exato ao ponto de ele expressar inequivocamente o que se tem em mente. A filosofia deveria formular um sistema de signos que não dependesse da polissemia metafórica da linguagem natural, nem das diversas linguagens próprias das culturas dos povos modernos, e suas equivocidades e equívocos, mas que alcance univocidade e exatidão da matemática. A lógica matemática é considerada como o caminho de solução de todos os problemas que até o presente a ciência havia deixado ao encargo da filosofia. Essa corrente que parte da pátria do nominalismo e se estende por todo mundo representa uma vivificação das ideias do século XVIII. Enquanto filosofia, porém, ela sofre com uma dificuldade lógica imanente. Aos poucos ela vai se dando conta disto. É possível demonstrar que a introdução de um sistema de signos convencional jamais pode locupletar-se através do próprio sistema contido nessas convenções, e que portanto toda introdução de uma linguagem artificial pressupõe já uma outra linguagem usada no nosso falar. Aqui entra em discussão o problema lógico da metalinguagem. Atrás disso, porém, há ainda outra coisa. A linguagem que nós falamos e na qual vivemos tem um posicionamento privilegiado. E o pressuposto dos conteúdos para qualquer análise lógica posterior. E ela o é não como uma mera soma de enunciados, pois o enunciado que quer expressar a verdade deve satisfazer a condições bem diferentes do que aquelas da análise lógica. Sua pretensão à desocultação não consiste apenas em deixar e fazer estar ali aquilo que está ali. Não é suficiente que aquilo que está ali também seja proposto no enunciado. O problema é saber se tudo está ali de tal modo que pode ser exposto no discurso, e se pelo fato de se expor o que pode ser proposto não se estará afastando o reconhecimento daquilo que não obstante é e se experimenta. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 4.

Dessa forma, também a herança cristã da metafísica grega, a escolástica medieval, concebe a palavra a partir da species, como sua perfeição, sem compreender o mistério de sua encarnação. A experiência de mundo que se dá na linguagem e que orientou originariamente o pensamento metafísico acaba tornando-se algo secundário e contingente. Através de convenções próprias da linguagem, ela esquematiza o olhar pensante que se dirige às coisas, fechando-lhe o acesso à experiência originária do ser. Na verdade, porém, é ao caráter de linguagem da experiência de mundo que se esconde por trás da aparência de prioridade das coisas frente à sua manifestação na linguagem. É sobretudo a suposta possibilidade de objetivação universal de tudo e de todos que se apoia na ideia da universalidade da linguagem, e que através dessa suposição se coloca na penumbra. À medida que a linguagem — pelo menos na família das línguas indo-germânicas — dispõe da possibilidade de estender a função nominativa geral a qualquer parte da oração e transformar tudo em sujeito para outras sentenças possíveis, ela erige a aparência universal de coisificação, que acaba degradando a própria linguagem a um mero meio de entendimento. Por mais que procure descobrir os desvios verbais pela elaboração de sistemas de signos artificiais, nem mesmo a moderna analítica da linguagem é capaz de questionar o pressuposto fundamental desta objetivação. Ensina, ao contrário, e apenas pela sua [74] autolimitação, que enquanto todos esses sistemas pressuporem a linguagem natural, nenhuma liberação real pode se realizar, a partir do âmbito da linguagem, mediante a introdução de sistemas de signos artificiais. Assim como a clássica filosofia da linguagem constatou que a questão da origem da linguagem é uma questão insustentável, também a reflexão sobre a ideia de uma linguagem artificial levou à auto-suspensão dessa ideia e com isso à legitimação das linguagens naturais. Mas, via de regra, o que isso implica permanece impensado. Sabe-se, por certo, que as línguas têm sua realidade, em geral, lá onde são faladas, isto é, onde as pessoas logram entender-se entre si. Mas que tipo de ser é este que convém à linguagem? Aquele de um meio de entendimento? Parece-me que, ao desvincular o conceito da syntheke do seu sentido ingênuo de "convenção", Aristóteles já havia chamado a atenção para o verdadeiro caráter ontológico da linguagem. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

O conceito de manipulação torna-se ambíguo nesse contexto. Toda influência emocional produzida pelo discurso representa esse tipo de manipulação. E no entanto isso que, sob a designação de retórica, constitui um momento integral da vida social desde antigamente não é uma mera técnica social. O próprio Aristóteles já chamava a retórica de dynamis   e não techne  , tal a sua pertença ao zoon logon echon  . Mesmo as formas tecnifiçadas da formação de opinião   desenvolvidas por nossa sociedade industrial implicam sempre um determinado momento de consentimento, seja por parte do consumidor, que pode também negar seu consentimento, seja no fato de — e isso é o decisivo — que nossos meios de comunicação não representam apenas o prolongamento de uma vontade política unitária, mas tornam-se palco de debates políticos que em parte refletem, em parte determinam os acontecimentos políticos na sociedade. Uma teoria da hermenêutica profunda, ao contrário, deve justificar uma reflexão emancipatória baseada na crítica social. Ela deve esperar que uma teoria geral da linguagem natural permita "derivar o princípio do discurso racional como o regulador necessário de todo discurso real, por mais distorcido que este seja". Essa teoria da hermenêutica implica, contra sua vontade — sobretudo face à organização do estado social moderno e de seus modos de formação de opinião — , a função do engenheiro social que empreende sem espaço para a liberdade. Este, enquanto possuidor dos meios publicitários e da verdade por ele pretendida, deveria estar investido do poder de um monopólio da opinião pública. Não é uma hipótese fictícia. A retórica não pode ser relegada, como se não precisássemos dela ou se nada dependesse dela. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Esse deslocamento pertence ao mesmo âmbito de problemas do papel que desempenha o fenômeno da linguagem em nosso pensamento. Não se trata de um enunciado meramente tautológico. Que a linguagem tenha adquirido um posto central no pensamento filosófico, se deve à virada que a filosofia deu no curso dos últimos decênios. Se o ideal   de conhecimento científico que guia a ciência moderna se inspirou no modelo da concepção matemática da natureza, desenvolvido primeiramente na Mecânica de Galileu  , isso significa que a interpretação de mundo que se dá na linguagem, isto é, a experiência de mundo sedimentada pela linguagem no mundo da vida não constituiu o ponto de partida da investigação e da intenção de saber. O que constitui a essência da ciência, agora, é aquilo que pode ser explicado e construído a partir de leis racionais. Desse modo, embora conservando seu próprio modo de ver e de falar, a linguagem natural perdeu a primazia que lhe parece própria. Como uma prolongação lógica das implicações dessa moderna ciência natural matemática, o ideal da linguagem da lógica e da teoria da ciência moderna foi substituído pelo ideal de uma terminologia unívoca. Assim, o contexto das experiências de limite ligadas à universalidade do acesso científico ao mundo fez com que a linguagem natural passasse a ocupar de novo, como um "universal", o centro da filosofia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.