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Gadamer (VM): hermenêutica jurídica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica filológica com a jurídica repousava sobre o reconhecimento da aplicação como momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto — da lei ou da revelação — por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na prédica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele deve ser entendido de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender é sempre também aplicar. 1709 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da "congenialidade" que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um "saber dominador", isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. 1717 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Pelo contrário, todo aquele que "aplica" o direito se encontra em uma posição bem diferente. Na situação concreta ver-se-á obrigado, seguramente, a fazer concessões com respeito à lei num sentido estrito, mas não porque não seja justo. Fazendo concessões em face da lei não faz reduções à justiça, mas, pelo contrário, encontra um direito melhor. Em sua análise da epieikeia, a "equidade", Aristóteles   dá a isso uma expressão muito precisa: epieikeia é a correção da lei. Aristóteles mostra que toda lei se encontra numa tensão necessária com respeito à correção do atuar, porque é geral e não pode conter em si a realidade prática em toda a sua concreção. Já assinalamos essa problemática no princípio, a propósito da análise do juízo. É claro que o problema da hermenêutica jurídica encontra aqui seu verdadeiro lugar. A lei é sempre deficiente, não porque o seja por si mesma, mas porque frente ao ordenamento a que intencionam as leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas. 1749 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

[330] 2.2.3. O significado paradigmático da hermenêutica jurídica 1771 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

E se isso é assim, então a distância entre a hermenêutica espiritual-científica e a hermenêutica jurídica não é tão grande como se costuma supor. Em geral se tende a supor que foi somente a consciência histórica que elevou a compreensão a ser um método da ciência objetiva, e que a hermenêutica alcançou sua verdadeira determinação somente quando se desenvolveu como teoria geral da compreensão e da interpretação dos textos. A hermenêutica jurídica não teria a ver com esse nexo, pois não procura compreender textos dados, já que é uma medida auxiliar da práxis jurídica e inclina-se a sanar certas deficiências e casos excepcionais no sistema da dogmática jurídica. Por consequência não teria a menor relação com a tarefa de compreender a tradição, que é o que caracteriza a hermenêutica espiritual-científica. 1773 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Hoje em dia parece uma tese paradoxal tentar renovar a velha verdade e a velha unidade das disciplinas hermenêuticas ao nível da ciência moderna. O passo que levou à moderna metodologia espiritual-científica supõe-se que era precisamente sua desvinculação com respeito a qualquer liame dogmático. A hermenêutica jurídica tinha se separado do conjunto de uma teoria da compreensão, porque tinha um objetivo dogmático, enquanto que, na direção inversa, a hermenêutica teológica se integrou na unidade do método histórico-filológico, precisamente ao se desfazer de sua vinculação dogmática. 1777 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Sendo assim, é razoável que nos interessemos agora em particular pela divergência entre hermenêutica jurídica e hermenêutica histórica, estudando os casos em que uma e outra se ocupam do mesmo objeto, isto é, os casos em que textos jurídicos devem ser interpretados juridicamente e compreendidos historicamente. Trata-se de investigar o comportamento do historiador jurídico e do jurista, comportamento que assumem com respeito a um mesmo texto jurídico, dado e vigente. Para isso podemos tomar como base os excelentes trabalhos de E. Betti, acrescentando nossas considerações às suas. Nossa pergunta vai no sentido de saber se a diferença entre o [331] interesse   dogmático e o interesse histórico é uma diferença unívoca. 1779 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O problema é agora saber se o comportamento do historiador foi visto e descrito suficientemente. No nosso exemplo, como se produz a mudança rumo ao histórico? Ante a lei vigente, vivemos já de antemão com a ideia natural de que seu sentido jurídico é unívoco e que a praxis   jurídica do presente se limita a seguir simplesmente o seu sentido original. Se isso fosse sempre assim não haveria razão para distinguir entre sentido jurídico e sentido histórico de uma lei. O mesmo jurista [332] nao tena outra tarefa hermenêutica senão a de comprovar o sentido original da lei e aplicá-lo como correto. Savigny, em 1840, descreveu a tarefa da hermenêutica jurídica como puramente histórica (no System   des romischen Rechts). Assim como Schleiermacher   não via problema algum em que o intérprete tenha de se equiparar ao leitor originário, também Savigny ignora a tensão entre sentido jurídico originário e atual. 1785 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Naturalmente, teríamos de nos perguntar se o caso que acabamos de analisar como modelo caracteriza realmente a problemática geral da compreensão histórica. O modelo de que partíamos era a compreensão de uma lei ainda em vigor. O historiador e o dogmático estavam voltados, pois, a um mesmo objetivo. Mas não será que este é um caso especial? O historiador do direito, que tem de enfrentar culturas jurídicas passadas, da mesma maneira que qualquer outro historiador que procura conhecer o passado e cuja continuidade com o presente não é imediata, seguramente não ficará meio perdido no caso apresentado da sobrevivência da valia de uma lei. Dirá que a hermenêutica jurídica possui uma tarefa dogmática especial que é completamente alheia ao nexo da hermenêutica histórica. 1793 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na realidade acredito que é exatamente o contrário. A hermenêutica jurídica recorda em si mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito. Nela temos o modelo de relação entre passado e presente que estávamos procurando. Quando o juiz adequa a lei transmitida às necessidades do presente, quer certamente resolver uma tarefa prática. O que de modo algum quer dizer que sua interpretação da lei seja uma tradução arbitrária. Também em seu caso, compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido vigente. O juiz procura corresponder à "ideia jurídica" da lei, intermediando-a com o presente. É evidente, ali, uma mediação jurídica. O que tenta reconhecer é o significado jurídico da lei, não o significado histórico de sua promulgação ou certos casos quaisquer de sua aplicação. Assim, não se comporta como historiador, mas se ocupa de sua própria história, que é seu próprio presente. Por consequência, pode, a cada momento, assumir a posição do historiador, face às questões que implicitamente já o ocuparam como juiz. 1795 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Inversamente, o historiador, que não tem diante de si nenhuma tarefa jurídica, mas que pretende simplesmente averiguar o significado histórico da lei — como o faria o conteúdo de qualquer outra tradição histórica — não pode ignorar que [334] seu objeto é uma criação do direito, que tem que ser entendida juridicamente. Ele tem de poder pensar também juridicamente e não apenas historicamente. É verdade que a consideração de um texto jurídico ainda vigente é para o historiador um caso especial. Porém esse caso especial serve para deixar claro o que é que determina nossa relação com qualquer tradição. O historiador que pretende compreender a lei a partir de sua situação histórica original não pode ignorar sua sobrevivência jurídica: ela lhe fornece as questões que ele coloca à tradição histórica. E isso não vale, na realidade, para qualquer texto, que tenha de ser compreendido precisamente no que diz? Não implica isso que sempre é necessária uma tradução? E não se dá esta tradução, sempre e em qualquer caso, nos moldes de uma mediação com o presente? Na medida em que o verdadeiro objeto da compreensão histórica não são eventos, mas sim seu "significado", esta compreensão não estará descrita corretamente, se se fala de um objeto em si e de uma aproximação do sujeito a ele. Em toda compreensão histórica sempre já está implícito que a tradição que nos chega fala sempre ao presente e tem de ser compreendida nessa mediação — mais ainda: como essa mediação. O caso da hermenêutica jurídica não é portanto um caso especial, mas está capacitado para devolver à hermenêutica histórica todo o alcance de seus problemas e reproduzir assim a velha unidade do problema hermenêutico, na qual o jurista e o teólogo se encontram com o filólogo. 1797 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Já assinalamos antes que a pertença à tradição é uma das condições da compreensão espiritual-científica. Agora podemos tirar a prova, examinando como aparece esse momento estrutural da compreensão no caso da hermenêutica teológica e da hermenêutica jurídica. Evidentemente não se trata de uma condição restritiva da compreensão, mas, antes, de uma das condições que a tornam possível. A pertença do intérprete ao seu texto é como a do ponto de vista na perspectiva que se dá num quadro. Tampouco se trata de que esse ponto de vista tenha de ser procurado como um determinado lugar para nele se colocar, mas que aquele que compreende não elege arbitrariamente um ponto de vista, mas que seu lugar lhe é dado com anterioridade. Assimfpara a possibilidade de uma hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade jurídica. Quando não é este o caso, como no caso do absolutismo, onde a vontade do senhor absoluto está acima da lei, já não é possível hermenêutica alguma, "pois um senhor superior pode explicar suas próprias palavras, até contra as regras da interpretação comum". Neste caso nem sequer se coloca a tarefa de interpretar a lei, de modo que o caso concreto se decida com justiça dentro do sentido jurídico da lei. A vontade do monarca, não sujeito à lei, pode sempre impor o que lhe parece justo, sem atender à lei, isto é, sem o esforço da interpretação. A tarefa de compreender e de interpretar só ocorre onde se põe algo de tal modo que, como tal, é vinculante e não abolível. 1799 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A tarefa da interpretação consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação. A complementação produtiva do direito, que ocorre com isso, está obviamente reservada ao juiz, mas este encontra-se por sua vez sujeito à lei, exatamente como qualquer outro membro da comunidade jurídica. Na ideia de uma ordem judicial supõe-se o fato de que a sentença do juiz não surja de arbitrariedades imprevisíveis, mas de uma ponderação justa do conjunto. A pessoa que se tenha aprofundado em toda a concreção da situação estará em condições de realizar essa ponderação justa. Justamente por isso existe segurança jurídica em um estado de direito, ou seja, podemos ter uma ideia daquilo a que nos atemos. Qualquer advogado ou conselheiro está em princípio capacitado para aconselhar corretamente, ou seja, para predizer corretamente a decisão do juiz com base nas leis vigentes. Claro que esta tarefa da concreção não consiste unicamente num conhecimento dos parágrafos correspondentes. Temos de conhecer também a judicatura e todos os momentos que a determinam, se quisermos julgar juridicamente um caso determinado. Não obstante, a única pertença à lei que se exige aqui é que a ordem judicial seja reconhecida como válida para todos e que, por conseguinte, não existam exceções quanto a ele. Por isso sempre é possível, por princípio, conceber a ordem judicial vigente como tal, o que significa reelaborar dogmaticamente qualquer complementação jurídica realizada. Entre a hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe pois uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém uma posição predominante. Pois não é sustentável a ideia de uma dogmática jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção. 1801 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Vejamos agora o caso da hermenêutica teológica tal como [336] foi desenvolvido pela teologia protestante, na perspectiva de nosso problema. Aqui se pode apreciar claramente uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que também aqui a dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. A verdadeira concreção da proclamação tem lugar na prédica, assim como a do ordenamento legal tem lugar no juízo. Mas aqui há uma importante diferença. Ao inverso do que ocorre no juízo jurídico, a prédica não é uma complementação produtiva do texto que interpreta. A mensagem da salvação não experimenta, em virtude da prédica, nenhum incremento de conteúdo que se possa comparar com a capacidade complementadora do direito que convém à sentença do juiz. Nem sequer se pode dizer que a mensagem de salvação só obtenha uma determinação precisa a partir da ideia do pregador. Ao contrário do que ocorre com o juiz, o pregador não fala ante a comunidade com autoridade dogmática. É verdade que na prédica se trata de interpretar uma verdade vigente. Mas esta verdade é anúncio, e o que se consegue não depende da ideia do pregador, mas da força da própria palavra, que pode chamar à conversão inclusive através de uma má prédica. O anúncio não pode ser separado de sua realização. Toda fixação dogmática da doutrina pura é secundária. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus e isso significa que a Escritura mantém uma primazia absoluta face à doutrina dos que a interpretam. 1803 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Do ponto de vista da teoria da ciência moderna teríamos de argumentar mais ou menos assim. Poderíamos apelar também ao valor paradigmático dos casos nos quais não é possível uma substituição imediata do destinatário original pelo intérprete, p. ex., quando um texto se dirige a uma pessoa determinada, ou parceiro de contrato, ou quem recebe uma conta ou um comando. Para entender plenamente o sentido de um texto desse tipo poderíamos nos pôr no lugar desse destinatário, e na medida em que esse deslocamento lograsse dar ao texto toda a sua concreção, poderíamos reconhecê-lo como um verdadeiro logro da interpretação. Mas esse deslocar-se ao lugar do leitor original (Schleiermacher) é coisa muito diferente da aplicação. Representa saltar por cima da tarefa de mediar o outrora e o hoje, o tu e o eu, que é o que queremos dizer com a palavra aplicação e que também a hermenêutica jurídica reconhece como sua tarefa. 1819 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Mas, se reconhecemos isso, então a melhor maneira de [344] levar a filologia à sua verdadeira dignidade e a uma adequada compreensão de si mesma seria libertando-a da historiografia. Só que isso me parece só meia verdade. Temos de nos questionar, antes, se também a imagem do comportamento histórico, que foi orientadora aqui, não: estaria deformada. Talvez não somente o filólogo, mas também o historiador, deva orientar seu comportamento, menos segundo o ideal   metodológico das ciências da natureza, que segundo o modelo que nos oferecem a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica. Pode ser certo que o tratamento que o historiador confere aos textos seja especificamente diverso da vinculação original do filólogo com seus textos. Pode ser certo também que o historiador procure ir até atrás de seus textos com o fim de obrigá-los a uma conclusão que eles não querem dar e que por si mesmos tampouco poderiam fazê-lo. Se se mede segundo o padrão que apresenta um só texto, as coisas parecem ser efetivamente assim. O historiador se comporta com os seus textos como o juiz de instrução no interrogatório das testemunhas. Entretanto, a mera constatação de fatos que este consegue extrair a partir das atitudes preconcebidas de uma testemunha não esgota a tarefa do historiador; esta só chega ao seu final quando se compreendeu o significado dessas constatações. Com os testemunhos históricos ocorre algo parecido ao que se passa com as declarações das testemunhas num julgamento. O fato de que se use o mesmo não é uma casualidade. Em ambos os casos o testemunho é um meio para estabelecer fatos. Todavia, tampouco estes são o verdadeiro objeto, mas unicamente o material para a verdadeira tarefa: no juiz, encontrar o direito; no historiador, determinar o significado histórico de um acontecimento no conjunto de sua autoconsciência histórica. 1841 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O modelo da hermenêutica jurídica mostrou-se, pois, efetivamente fecundo. Quando o jurista se sabe legitimado a realizar a complementação do direito, dentro da função judicial e face ao sentido original de um texto legal, o que faz é o que, seja como for, tem lugar em qualquer forma de compreensão. A velha unidade das disciplinas hermenêuticas recupera seu direito se se reconhece a consciência da história efeitual em todo afazer hermenêutico, tanto no do filólogo como no do historiador. 1855 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O primeiro registro da palavra "hermenêutica" como título de livro data do ano de 1654, em Dannhauer. Desde então distinguimos entre uma hermenêutica teológico-filológica e uma hermenêutica jurídica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A base psicológica da hermenêutica idealista mostrou seu lado problemático: Será que o sentido de um texto realmente se esgota no sentido que o autor "tem em mente" (mens   auctoris)? Será a compreensão nada mais do que a reprodução de um produto original? Está claro que esse questionamento não pode ser aplicado a uma hermenêutica jurídica, que exerce uma evidente função de criação do direito. Costuma-se relegá-lo à esfera de uma tarefa normativa, considerando-o como uma aplicação prática que nada tem a ver com "ciência". O conceito da objetividade da ciência exige ater-se ao cânon determinado pela mens   auctoris. Mas será esse cânon realmente suficiente? O que se dá, por exemplo, na interpretação de obras de arte (que no diretor de teatro  , no regente e no próprio tradutor apresentam também a forma de uma produção prática)? Pode-se, por acaso, negar que o artista executor "interpreta" a criação original, não se limitando a fazer dela uma nova criação? Costumamos distinguir com muita clareza entre interpretações adequadas e interpretações "inadmissíveis" ou "fora de estilo" de peças musicais ou dramáticas. Com que direito podemos excluir da ciência esse sentido reprodutivo de interpretação? Será que essa reprodução pode dar-se em estado de sonambulismo e desconhecimento? O conteúdo semântico da reprodução não pode restringir-se ao sentido que o autor presta conscientemente à obra. Sabe-se que a auto-interpretação do artista tem um valor questionável. O sentido de sua criação impõe uma tarefa de aproximação inequívoca, mesmo para a interpretação prática. Assim como a interpretação feita pela ciência, tampouco a reprodução pode, de modo algum, estar exposta à arbitrariedade. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

À luz dessa questão, a venerada tradição da hermenêutica jurídica ganha nova vida. No seio da dogmática jurídica moderna, esse questionamento exerceu um papel insignificante, mesmo que uma dogmática só possa aperfeiçoar-se a si mesma quando conta com inevitáveis manchas vergonhosas. De qualquer modo, não se pode negar que a hermenêutica seja uma disciplina normativa e que exerça a função dogmática de complemento jurídico. Como tal, desempenha uma função indispensável, visto que precisa superar o hiato insuperável entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual. Nesse sentido, Aristóteles havia delimitado, na Ética a Nicômaco, o espaço hermenêutico relativo à teoria do direito, ao discutir o problema do direito natural e do conceito da epieikeia. Mesmo a reflexão sobre a história da hermenêutica jurídica mostra que o problema da interpretação compreensiva está indissoluvelmente ligado ao problema da aplicação. Essa era a dupla tarefa da ciência jurídica, sobretudo desde a recepção do direito romano  . A questão não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno. Com isso, uma ligação tão estreita como a que se impôs na teologia, surgiu também entre a tarefa hermenêutica e a tarefa dogmática. Uma teoria da interpretação do direito romano não poderia abandonar-se a uma alienação histórica, pelo menos enquanto o direito romano detivesse sua vigência legal. Isso explica por que a interpretação do direito romano considera óbvio que a teoria da interpretação empreendida por Thibaut (1806) não possa se apoiar apenas na intenção do legislador, tendo que elevar o "fundamento da lei" ao nível de um verdadeiro cânon hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Com a criação dos modernos códigos de lei, a tarefa clássica principal, a saber, a interpretação do direito romano, acabou perdendo-se seu interesse dogmático para adquirir um sentido prático, tornando-se elemento de uma problemática da história do direito. Como história do direito, pode encaixar-se sem reservas no pensamento metodológico das ciências históricas. A hermenêutica jurídica, ao contrário, como uma disciplina subsidiária da dogmática jurídica de um novo estilo, foi relegada à margem da jurisprudência. Mas a questão fundamental da "concretização no direito" permanece, e a relação da história do direito com a ciência normativa é por demais complicada para que a história do direito possa substituir a hermenêutica. O esclarecimento histórico sobre as circunstâncias históricas e as reais ponderações do legislador antes ou na promulgação de um texto legal podem ter ainda influência hermenêutica — a ratio legis, porém, não entra nessa problemática e continua sendo uma instância hermenêutica indispensável para toda jurisdição. Assim, o problema hermenêutico continua legitimado em toda ciência jurídica, como se dá com a teologia e sua constante tarefa de "aplicação". VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: "Conceber aquilo que nos toca" (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio  . Isso não deixa de ter consequências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma "aplicação" posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit  ) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida "de maneira puramente teórica", a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Outro exemplo da influência da compreensão prévia na investigação da história da hermenêutica é a distinção introduzida por L. Geldsetzer entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética. Com a ajuda dessa distinção entre uma interpretação ligada aos dogmas e apoiada pelas instituições e sua autoridade, que busca sempre a defesa consequente das normas dogmáticas, e uma interpretação de textos adogmática, aberta, heurística, que leva às vezes a um non liquet, a história da hermenêutica adota uma figura que denuncia a compreensão prévia cunhada pela teoria da ciência moderna. Nessa perspectiva aparece a hermenêutica recente, na medida em que apoia interesses teológico-dogmáticos, numa inquietante proximidade com uma hermenêutica jurídica que se compreende, de forma muito dogmática, como imposição da ordem estabelecida pelas leis. Quando no trabalho de busca jurídica ignoramos o elemento cético na exposição da lei e consideramos a essência da hermenêutica jurídica como uma mera subsunção do caso particular sob a lei geral dada, devemos perguntar se não estamos deformando o conhecimento da hermenêutica jurídica. As ideias mais recentes sobre a relação dialética entre lei e caso particular, com os recursos decisivos que oferece Hegel  , parecem modificar nossa compreensão prévia da hermenêutica jurídica. O papel da jurisprudência sempre restringiu o modelo da subsunção. Na verdade, a jurisprudência está a serviço da interpretação correta da lei (e não somente de sua aplicação correta). Algo parecido vale, e com mais razão ainda, para a interpretação da Bíblia, à margem de toda tarefa prática, ou, mutatis mutandis, para a interpretação dos clássicos. Se nesse caso a "analogia   da fé" não representa nenhum dado dogmático fixo para a interpretação da Bíblia, a linguagem que permite o acesso do leitor a um texto clássico tampouco pode ser concebida adequadamente se nos orientarmos pelo conceito [279] científico da objetividade e mantivermos o caráter de exemplaridade desse texto para um estreitamento dogmático da compreensão. Creio que a própria distinção entre hermenêutica dogmática e hermenêutica cética é dogmática e deveria desaparecer na análise hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua ideia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra "hermenêutica" em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon   de Aristóteles. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que Aristóteles havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: "os limites do Organon de Aristóteles se ampliam com a anexação de uma nova cidade". A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, [288] como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao "sentido" das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Em sua argumentação, Flacius reservou prudentemente a leitura da Bíblia aos periti. Trata-se sem dúvida de um hábito herdado do humanismo. Mas isso não impede que o postulado da Reforma, que busca possibilitar a todos a leitura da Bíblia, tenha sido o mesmo que estava na base do desenvolvimento da hermenêutica (a hermenêutica jurídica, por outro lado, nunca passou de uma disciplina profissional). É precisamente isso o que coloca em destaque sua afinidade com a retórica. Também a retórica é mais do que um assunto reservado aos especialistas. Embora se utilize de recursos técnicos especiais, passíveis de serem aprendidos, no fundo a arte de falar não deixa de ser uma capacidade natural do ser humano, assim como a arte de compreender. O uso da palavra "hermenêutica" que se faz na linguagem, como no caso da retórica, é uma confirmação disso. No século XVIII e inclusive no século XIX dizia-se que quem é capaz de compreender e abordar os outros — o pastor de almas, por exemplo — , domina a "hermenêutica", quer dizer, a arte de compreender as outras pessoas e de se fazer compreender por elas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Os campos em que o problema da interpretação do texto escrito se encontrou com essa arte antiga, gerando uma nova e maior consciência teórica, foram sobretudo dois: a interpretação de [310] textos jurídicos, que sobretudo desde a codificação justiniana do direito romano constituem a profissão do jurista, e a exegese da Sagrada Escritura no sentido da tradição magisterial da Igreja dentro da doutrina cristã. A hermenêutica jurídica e teológica da época moderna pôde estabelecer uma ponte com esses dois campos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Independentemente de toda codificação, a tarefa de busca do direito e do juízo correto implica uma inevitável tensão, já analisada por Aristóteles: a tensão entre a universalidade da legislação vigente — codificada ou não — e a particularidade do caso concreto. É evidente que o caso concreto numa questão jurídica não é um enunciado teórico, mas um "resolver coisas com palavras". A aplicação da lei pressupõe sempre uma interpretação correta. Cabe afirmar, nesse sentido, que toda aplicação de uma lei ultrapassa a mera compreensão de seu sentido jurídico e cria uma nova realidade. Acontece o mesmo com as artes reprodutivas, nas quais se transcende a obra dada, sejam notas musicais ou um texto dramático, à medida que a interpretação cria e estabelece novas realidades. Mas nas artes reprodutivas podemos afirmar que cada representação se baseia numa determinada interpretação da obra dada. Faz sentido distinguir e afirmar o grau de adequação que oferecem essas representações entre as numerosas interpretações possíveis. Isso implica que, ao menos no teatro literário e no caso da música, a própria representação em sua definição ideal não é uma mera representação, mas interpretação. É por isso que, especialmente no caso da música, falamos de interpretação de uma obra pelo executante. Creio que a aplicação da lei num caso particular implica, de modo análogo, um ato interpretativo. Mas isso significa que toda aplicação de disposições legais que aparece como correta concretiza e aprimora o sentido de uma lei. Parece-me que Max Weber tem razão quando diz: "Só os profetas adotaram uma atitude criativa, isto é, geradora de um novo direito frente ao direito vigente. No mais, não se trata de um elemento especificamente moderno, mas justamente o que caracteriza as práxis jurídicas maximamente ’criativas’, do ponto de vista objetivo, é o fato de se apresentarem subjetivamente como meros fragmentos orais — mesmo que eventualmente latentes — de normas já vigentes; de se apresentarem como seus intérpretes e aplicadores e não como seus criadores". Isso corresponde à antiga sabedoria aristotélica segundo a qual a busca do direito precisa da constante ponderação complementar da equidade. Essa sabedoria reza que a perspectiva da equidade não se opõe ao direito, mas contribui para a plenitude do sentido legal, [311] mediante a atenuação da literalidade do direito. O fato de esses velhos problemas de busca de direito no princípio da era moderna se agudizarem com a recepção do direito romano, ao questionarem-se certas formas tradicionais de jurisprudência com o novo direito de jurisconsultos, deu uma relevância especial à hermenêutica jurídica como teoria da interpretação. A defesa da aequitas ocupa um amplo espaço no debate do primeiro período da época moderna desde Budeus até Vico. Pode-se afirmar inclusive que o conhecimento do direito pelo jurista continua a chamar-se com boas razões de "jurisprudência", literalmente "prudência jurídica". Essa palavra recorda ainda o legado da filosofia prática, que considerava a prudentia como a virtude suprema de uma racionalidade prática. O fato de a expressão "ciência do direito" ter prevalecido no final do século XIX indica a perda da ideia de uma peculiaridade metodológica desse saber jurídico e de sua determinação prática. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

Esse fenômeno geral pode ser ilustrado com especial clareza pela codificação jurídica e correspondentemente pela hermenêutica jurídica. Não é por acaso que a hermenêutica jurídica exerce uma espécie de função paradigmática. Aqui, a remissão à forma escrita e o constante apelo ao texto aparece como algo óbvio e natural. O que é instituído como direito serve de antemão para dirimir ou evitar discussões. Nesse sentido o recurso ao texto está sempre justificado tanto para quem busca o direito, as partes, como para quem encontra e dita o direito: o tribunal. Por isso, a formulação de leis, de contratos ou de decisões legais deve ser especialmente rigorosa, e tanto mais sua fixação escrita. No escrito, a resolução ou o acordo deve formular-se de forma que seu sentido jurídico se desprenda claramente do texto, evitando assim o perigo de abuso ou tergiversação. Uma exigência da "documentação" é precisamente que ela possibilite uma interpretação autêntica, mesmo que seus autores, os legisladores ou as partes contratantes não estejam acessíveis. Isso implica que a formulação escrita preveja o espaço de jogo da interpretação. Esse espaço de jogo surge sempre que o "leitor" precisa aplicar o texto. Trata-se de evitar a controvérsia na "proclamação" ou na "codificação", descartar os mal-entendidos e o abuso e possibilitar uma compreensão inequívoca. Frente à mera [346] proclamação da lei ou ao real fechamento do contrato, a fixação escrita pretende simplesmente estabelecer um seguro adicional. Mas também isso implica reservar um espaço de jogo para uma concretização razoável, concretização que a interpretação deve proporcionar para uma aplicação prática. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant   justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey  , que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia "descritiva e analítica", purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

É evidente que uma hermenêutica jurídica séria não pode contentar-se em utilizar como cânon de interpretação o princípio subjetivo da opinião   e a intenção originária do legislador. Em muitos casos não pode deixar de aplicar conceitos objetivos, como, por exemplo, o conceito do pensamento jurídico que se expressa numa lei. Pensar que se pode aplicar uma lei a um caso concreto como o processo lógico da subsunção do particular sob o universal parece ser o caso de uma representação tipicamente laica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

E não me atreveria a decidir se isso vale também para a hermenêutica jurídica, no sentido de que uma ordenação jurídica, que precisa de interpretação porque as coisas mudaram (por exemplo, com a ajuda do princípio da analogia), pode inclusive colaborar com o universal em vista de uma aplicação mais justa do direito, ou seja, no sentido de afinar o senso jurídico que guia a interpretação. Em outros âmbitos, porém, a coisa está mais clara. Não há dúvidas de que a distância criada pelo tempo confere maior visibilidade ao "significado" dos acontecimentos históricos ou ao nível de graduação das obras de arte. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Creio que a discussão atual sobre o problema hermenêutico em parte alguma é tão acirrada quanto no âmbito da teologia protestante. Em certo sentido, também aqui, como ocorre na hermenêutica jurídica, estão em questão interesses que ultrapassam a ciência. O que significa dizer, interesses de fé e de sua correta proclamação. Como consequência temos que a discussão hermenêutica se vê envolta em questões exegéticas e dogmáticas, frente às quais o leigo não pode tomar posição. Mas como ocorre na hermenêutica jurídica, também aqui mostra-se claramente a primazia dessa situação: O "sentido" dos textos a serem compreendidos não pode ser restrito à opinião imaginativa de seu autor. Em toda a grandiosa e monumental obra de Karl Barth, sua Kirchliche Dogmatik (Dogmática eclesial), encontramos contribuições implícitas ao problema hermenêutico, mesmo que nunca apareçam de forma expressa. Com Rudolf Bultmann  , as coisas se dão de maneira um pouco diferente, visto que demonstra grande interesse pelas considerações metodológicas e em suas obras completas tomou posição expressa, por diversas vezes, frente ao problema da hermenêutica. Mas, mesmo no caso de Bultmann, o centro de gravidade de todo questionamento conserva um cunho eminentemente teológico, não somente no sentido de que seu trabalho exegético representa o solo experimental e o âmbito de aplicação de seus princípios hermenêuticos, mas também e sobretudo no sentido de que a grande discussão teológica atual, a questão da desmitologização do Novo Testamento, contém muito mais tensões dogmáticas do que o que seria conveniente a reflexões metodológicas. Estou convencido de que o princípio da desmitologização contém um aspecto puramente hermenêutico. Segundo Bultmann, esse esquema não serve para se decidir previamente sobre questões dogmáticas, por exemplo, sobre quantos conteúdos dos escritos bíblicos são essenciais para o anúncio cristão e com isso para a fé, e o que, por exemplo, poderia ser eliminado. Trata-se, porém, do problema da compreensão do próprio anúncio cristão, do sentido em que este deve ser compreendido, se é que deve ser "compreendido". Talvez, e até certamente, seja possível compreender no Novo Testamento "mais" do que o compreendeu Bultmann. O que só poderá [404] acontecer se compreendermos esse "rnais" corretamente, i. é, realmente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a "manifestações vitais fixadas por escrito" (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam "interpretação" e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

É claro que não basta distinguir entre a fundamentação teórica da interpretação e uma dimensão de sua aplicação prática. A hermenêutica como "arte" pertence ao âmbito da scientia practica, e a questão é saber se scientia practica significa a mera aplicação da ciência à praxis, como pressupõe Husserl   quando refuta a tradução das leis lógicas a normas artificiais do reto pensar, mostrando seu sentido teórico fundamental. Tanto a ciência que busca o ente perene e o ente que é a partir de si mesmo quanto a arte cujo saber trata do elemento produtivo e criador têm o caráter específico do saber que é decisivo para a scientia practica e seus representantes modernos, a "razão prática", e cujo caráter normativo não é de natureza teórica nem técnica. Isso fica claro no plano da hermenêutica jurídica, onde a busca da sentença justa não é uma mera subsunção do caso particular no caso geral (as cláusulas da lei). A busca das "cláusulas" corretas repousa, antes, numa decisão própria criativa, complementaria ou aperfeiçoadora do direito. Algo parecido pode-se dizer da missão querigmática do pastor de almas: a bagagem teológica não lhe basta para exercer o ministério. Seria um erro, no entanto, crer que essas decisões, que a ciência teórica não pode arrebatar ao juiz ou ao pastor de almas, estejam à mercê de determinações irracionais. É preciso definir mais exatamente o que significa a razão em tais decisões. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

O diálogo sobre a hermenêutica estendeu-se sobretudo em quatro áreas da ciência: a hermenêutica jurídica, a hermenêutica teológica, a teoria da literatura e a lógica das ciências sociais. Dentre uma literatura que em seu conjunto torna-se cada vez mais inabarcável, gostaria de destacar apenas alguns trabalhos que têm referência expressa com meus próprios trabalhos. E o caso da hermenêutica jurídica: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.