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Gadamer (VM): congenialidade

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Para nós é um pouco estranho o fato de que, desse modo reúne-se a poesia com a arte do discurso. Pois, parece-nos que o que caracteriza e dá dignidade à arte é justamente que, nela, a linguagem não é discurso, isto é, o fato de que possui uma unidade de sentido e de forma que é independente de toda relação de falar e de ser interpelado e persuadido. O conceito de Schleiermacher   sobre "pensar artístico", sob o qual ele reúne a arte da poesia e a arte do discurso, considera, pelo contrário, não o produto mas o modo de comportamento do sujeito. Assim, também o falar é concebido aqui puramente como arte, isto é, abstraindo de toda relação a objetivos e à coisa em causa, como expressão de uma produtividade plástica. [193] E não obstante, a passagem entre o artístico e o carente de arte é, então, fluente — como é fluente também a passagem da compreensão sem arte (imediata) para um procedimento cheio de arte. Enquanto que essa produção ocorre mecanicamente, segundo leis e regras, e não de uma maneira inconsciente-genial, o intérprete realiza a composição conscientemente; mas enquanto ela é uma produção individual do gênio, produção criadora em sentido autêntico, já não pode dar-se essa pós-facção através de regras. O próprio gênio é o que forma os padrões e dá as regras: cria novas formas de uso linguístico, da composição literária etc. Schleiermacher leva muito em consideração essa diferença. Pelo lado da hermenêutica, a essa produção genial corresponde o fato de que ele necessita da adivinhação, do adivinhar de imediato que, em última análise, pressupõe uma espécie de congenialidade. Se agora, porém, os limites entre a produção sem arte e com arte, mecânica e genial, são movediços, na medida em que o que se expressa é sempre uma individualidade, e nela sempre opera um momento da genialidade livre de regras — como ocorre com as crianças que crescem em um idioma — segue-se que o fundamento último de toda compreensão terá que ser sempre um ato divinatório da congenialidade, cuja possibilidade repousa sobre uma vinculação prévia de todas as individualidades. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

E se isso é correto, então se coloca a tarefa de voltar a determinar a hermenêutica espiritual-científica a partir da jurídica e da teológica. Para isso faz-se necessária a ideia recém-alcançada, de que a hermenêutica romântica e sua coroação na interpretação psicológica, isto é, no deciframento e fundamentação da individualidade do outro, aborda o problema da compreensão de um modo excessivamente parcial. Nossas considerações não nos permitem dividir a colocação do problema hermenêutico na subjetividade do intérprete e na objetividade de sentido que se trata de compreender. Esse procedimento partiria de uma falsa contraposição que tampouco pode ser superada pelo reconhecimento da dialética do subjetivo e do objetivo. A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir, definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de compreender textos na pressuposição da "congenialidade" que uniria o criador e o intérprete de uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história, não é um "saber dominador", isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações, que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo o fornecimento da aplicação, pois também ela serve à validez de sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

O certo é que tanto a hermenêutica de Schleiermacher não está totalmente livre do ar escolástico, um tanto empoeirado, da literatura hermenêutica anterior, como sua obra propriamente filosófica se encontra um pouco à sombra dos outros grandes pensadores idealistas. Ele não tem a força impositiva da dedução fichtiana, nem a elegância especulativa de Scheling e nem a obstinação seminal da arte conceptual de Hegel  . Foi um orador, mesmo quando filosofava. Seus livros são antes de tudo anotações de um orador. Suas contribuições à hermenêutica são, em particular, muito fragmentárias e o que tem mais interesse   do ponto de vista hermenêutico, ou seja, suas observações sobre pensar e falar não se encontram na "hermenêutica" mas nas preleções sobre dialética. Ainda aguardamos uma edição crítica da Dialética, que seja utilizável. O sentido normativo básico dos textos, aquilo que originariamente confere sentido ao esforço hermenêutico, em Schleiermacher encontra-se em segundo plano. Compreender é a repetição da produção originária de ideias, com base na congenialidade dos espíritos. O ensinamento de Schleiermacher tem como pano de fundo sua concepção metafísica da individualização da vida universal. Desse modo, destaca-se o papel da linguagem, e isso numa forma que superou radicalmente a limitação erudita ao escrito. A fundamentação da compreensão feita por Schleiermacher sobre a base do diálogo e do entendimento inter-humano significou no seu conjunto um aprofundamento dos fundamentos da hermenêutica, que no entanto acabou permitindo a edificação de um sistema científico com base hermenêutica. A hermenêutica tornou-se a base de todas as ciências históricas do espírito e não só da teologia. Desaparece então o pressuposto dogmático do caráter "paradigmático" do texto, sob o qual a atividade hermenêutica, tanto a do teólogo como a do filólogo humanista [99] (para não falar do jurista), tinha a função originária de mediação. Com isso liberou-se o caminho para o historicismo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido e da interpretação de acontecimentos históricos? A consciência dos contemporâneos é de tal natureza [105] que aqueles que "vivenciam" a história não sabem como esta lhes acontece. Dilthey  , pelo contrário, mantém-se até o fim fiel às consequências sistemáticas de seu conceito de vivência, como reza o modelo de biografia e autobiografia para a teoria formulada por Dilthey, acerca do contexto da história dos efeitos. Também a acirrada crítica feita por R.G. Collingwood à consciência metodológica positivista permanece presa à estreiteza subjetivista do problema, à medida que, lançando mão do instrumental dialético do hegelianismo de Croce com sua teoria do reenactment, fundamenta como caso modelar para a compreensão histórica a execução posterior de planos elaborados. Nesse ponto, Hegel foi mais consequente. Sua pretensão de se conhecer a razão na história fundamentava-se num conceito do "espírito", cujo traço essencial é dar-se "no tempo" e a determinação do conteúdo dar-se apenas por sua história. Decerto, também para Hegel, havia os "indivíduos que participam da história do mundo", por ele caracterizados como "encarregados do negócio do espírito universal", e cujas decisões e paixões coincidiam com o que "se dava no tempo". Esses casos excepcionais, porém, não definem para ele o sentido da compreensão histórica, sendo definidos como exceções a partir da concepção do filósofo acerca do que é o historicamente necessário. A saída que pretende atribuir ao historiador uma congenialidade com seu objeto, já tentada por Schleiermacher, certamente não traz resultado algum. Isso transformaria a história universal num espetáculo   estético. Seria, por um lado, exigir demais do historiador e, por outro, subestimar sua tarefa de confrontar o próprio horizonte com o do passado. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

E o que dizer do sentido querigmático da Sagrada Escritura? Aqui o conceito da congenialidade chega ao absurdo completo, à medida que suscita a péssima imagem da teoria da inspiração. A exegese histórica da Bíblia também encontra aqui seus limites, sobretudo no que diz respeito ao conceito central de "autocompreen-são" do escritor da Sagrada Escritura. O significado salvífico da Escritura não será necessariamente diferente do que o resultado da mera soma das intuições teológicas dos escritores do Novo Testamento? Dessa forma, a hermenêutica pietista (A. Francke, Rambach) foi se destacando pelo fato de, em sua teoria da interpretação, acrescentar a aplicação à compreensão e à explicação, destacando com isso a relação da "Escritura" com a atualidade. Nisso reside a razão central de uma hermenêutica que leva realmente a sério a historicidade do homem. É claro que também a hermenêutica idealista leva isto em conta, especialmente a de E. Betti com seu "cânon da correspondência do sentido". Parece, no entanto, que foi só com o reconhecimento decisivo do conceito da compreensão prévia e do princípio da história dos efeitos ou o desenvolvimento da consciência da mesma, que se conquistou uma base metodológica suficiente. O conceito de cânon da teologia neotestamentária encontra ali sua legitimação, como um caso especial. O grande e positivo trabalho de G. von Rad demonstrou, ademais, que o significado teológico do Antigo Testamento torna-se difícil de justificar ao se adotar a mens   auctoris como cânon. Com esse trabalho pode-se superar a estreiteza dessa perspectiva. Os debates mais recentes sobre a hermenêutica contagiaram também a teologia católica (Stachel, Biser, Corth). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A escola histórica, porém, sobretudo na forma decisiva que Droysen, seu metodologista mais arguto, reivindica para a tarefa [124] do historiador, não aceitou de modo algum essa total alienação objetivista do objeto da história. Pelo contrário, Droysen perseguiu essa "objetividade eunuca" com um sarcasmo mordente, e caracterizou a pertença às grandes forças morais, que regem a história, como a condição prévia de toda compreensão histórica. Sua célebre fórmula, segundo a qual a tarefa do historiador consiste em compreender pela via da investigação, contém um aspecto teológico. Os planos da Providência estão ocultos para o homem. Contudo, mediante a investigação das estruturas da história do mundo, o espírito histórico pode adquirir uma ideia do sentido oculto da totalidade. Compreender, aqui, é mais do que um método universal apoiado ocasionalmente na afinidade ou congenialidade do historiador com seu objeto histórico. Não é só uma questão de casual simpatia pessoal. Na escolha dos objetos e dos pontos de vista sob os quais se apresenta um objeto como um problema histórico, já está atuando um elemento da própria historicidade da compreensão. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.