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Gadamer (VM): compreensão do texto

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

De fato, a fórmula entendida desse modo pode ser considerada como um princípio para toda filologia, na medida em que esta é entendida como a compreensão do discurso artístico. Essa melhor compreensão, que caracteriza o intérprete face ao autor, não se refere, por exemplo, à compreensão das coisas de que fala o texto, mas meramente à compreensão do texto, isto é, do que o autor teve em mente e ao que deu expressão. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um procedimento que na realidade exercemos sempre que compreendemos algo. Face a qualquer texto, nossa tarefa é não introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos linguísticos — ou, no caso de uma língua estrangeira, aquele que nos é familiar através dos autores ou do exercício cotidiano. Pelo contrário, reconhecemos como nossa tarefa o alcançar a compreensão do texto somente a partir do hábito linguístico epocal e de seu autor. Naturalmente, o problema é saber como se pode satisfazer essa exigência geral. Principalmente no campo da teoria do significado, o caráter inconsciente dos próprios hábitos linguísticos opõe-se a isso. Como é possível conscientizar-se das diferenças entre o uso linguístico costumeiro e o do texto? VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal   entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher   culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Isso se conhece no trabalho filológico como a tarefa de gerar [342] um texto legível. Mas é evidente que essa tarefa somente se impõe partindo de uma certa compreensão do texto. É só quando um texto já está decifrado e resiste à compreensão que indagamos pelo seu verdadeiro conteúdo, perguntando se a leitura tradicional ou a variante eleita era correta. O tratamento que o filólogo dá a um texto, que gera um texto legível, corresponde, pois, perfeitamente, à percepção não meramente acústica que tem lugar numa transmissão auditiva direta. Dizemos que alguém ouviu quando pôde compreender. Correspondentemente, a insegurança na percepção acústica de uma mensagem oral é parecida com a insegurança de um modo de ler. Em ambos os casos, produz-se um acoplamento com o anterior. A compreensão prévia, a expectativa de sentido e circunstâncias de todo gênero que não se encontram no texto como tal influem na apreensão do texto. Isso fica patente quando se trata de tradução a partir de uma língua estrangeira. O domínio do idioma estrangeiro é uma mera condição prévia para a tradução. Quando se fala de "texto" nesses casos significa que não se trata somente de compreendê-lo, mas de vertê-lo a outra língua. Desse modo, converte-se em "texto", pois o que é dito nele não somente é compreendido, mas passa a ser o "objeto" que está aí frente a uma infinidade de possibilidades de traduzir o dito na "língua-meta". Isso implica por sua vez uma relação hermenêutica. Toda tradução, mesmo a simples reprodução literal, é sempre um gênero de interpretação. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Não foi um determinado cânon temático do classicismo o que me motivou a caracterizar o clássico como a categoria da história dos efeitos, por excelência. Com essa categoria, queria destacar muito mais a singularidade da obra de arte e sobretudo todo e qualquer texto eminente frente a outras formas de tradição compreensíveis e necessitadas de interpretação. Aqui, a dialética de pergunta e resposta por mim desenvolvida não perde sua validez, mas modifica-se: a pergunta originária, em relação à qual um texto deve ser compreendido como uma resposta, como dissemos acima, caracteriza-se, aqui, a partir de seu próprio princípio, por sua superioridade e liberdade com relação ao texto. Mas isso não significa que a "obra clássica" só seria acessível ainda em uma convencionalidade sem esperanças. Tampouco significa que exija um conceito harmonioso e inconteste do "humano comum". A obra só "fala" quando fala "originariamente", ou seja, "como se o dissesse para mim próprio". Isso não significa, em absoluto, que aquilo que assim fala deve ser medido em um conceito normativo extra-histórico. Trata-se, antes, do caso oposto. O que fala desse modo impõe, com isso, uma medida. E aqui está o problema. A pergunta originária, cuja resposta constitui a compreensão do texto, apela, nesse caso, para uma identidade de sentido que já intermediou desde o princípio a distância entre origem e presente. Em uma conferência realizada em Zurique, em 1969, intitulada "Das Sein   des Gedichteten", indiquei as diferenciações hermenêuticas que se fazem necessárias para tais textos. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.