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Gadamer (VM): capacidade de conhecimento

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mas o preço que ele paga, por essa justificação da crítica no terreno do gosto, reside em que nega ao gosto qualquer significado cognocitivo. E um princípio subjetivo, ao qual ele reduz o senso comum. Nele nada se reconhece dos objetos que vêm a ser julgados de belos, apenas se afirma, porém, que a eles corresponde a priori   um sentimento de prazer no sujeito. É conhecido que esse sentimento é fundamentado por Kant  , na conveniência que a representação do objeto possui, como tal, para a nossa capacidade de conhecimento. É o jogo livre de força de imaginação e compreensão, uma relação conveniente e subjetiva para com o conhecimento, que apresenta o fundamento do prazer no objeto. Essa relação conveniente-subjetiva é, de fato, de acordo com a ideia, igual para todos, é pois passível de ser transmitida universalmente e fundamenta assim a reivindicação do juízo de gosto na sua validade universal. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Isso é, em si, correto. Mas, por mais impressionante que seja a inteireza dessa sequência de ideias de Kant — ele não coloca o fenômeno da arte sob um padrão a ela adequado. Pode-se fazer o cálculo ao contrário. A vantagem do belo natural com relação ao belo artístico é apenas o reverso da carência do belo natural quanto a uma certa força de expressão. Assim pode-se ver, ao contrário, a vantagem da arte com relação ao belo natural no fato de que a linguagem da arte é uma linguagem exigente, que não se oferece livre e indeterminada à interpretação que vem da disposição de ânimo, porém, nos fala de uma forma determinada significativamente. E o que há de maravilhoso e misterioso na arte é que essa determinada reivindicação não é, apesar disso, nenhum grilhão para a nossa índole, mas justamente abre o espaço de jogo da liberdade lúdica de nossa capacidade de conhecimento. Kant faz justiça absoluta a isso ao dizer que a arte deveria "ser vista como natureza", ou seja, agradar, sem trair a coerção das regras. Nós não damos atenção à coincidência intencional daquilo que é representado com uma realidade já conhecida. Nem lançamos um olhar quando há semelhança. Não medimos seu sentido de exigência segundo uma medida já bem conhecida, mas, ao contrário, essa medida, o "conceito", será "esteticamente ampliado" de uma forma ilimitada. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

Uma coisa é certa: para Kant, o conceito de gênio significa realmente apenas uma complementação daquilo que o faz interessar-se pelo juízo estético, "na intenção transcendental  ". Não se deve esquecer, que a crítica do juízo, na sua segunda parte, tem a ver absolutamente só com a natureza (e seu julgamento segundo conceitos de finalidade), não tendo nada a ver com a arte. Para a intenção sistemática do todo, a aplicação do juízo estético com relação ao belo e ao sublime na natureza é mais importante do que a fundamentação transcendental da arte. A "adequação da natureza à nossa capacidade de conhecimento", que, como vimos, só pode ocorrer no belo natural (e não nas belas artes), tem, como princípio transcendental do juízo estético, a importância de preparar igualmente o entendimento para aplicar o conceito de uma finalidade à natureza. Desse ponto de vista, a crítica do gosto, isto é, a estética, é uma preparação para a teleologia. Esta, cuja reivindicação constitutiva para o conhecimento da natureza foi destruída pela crítica da razão pura, no sentido de legitimar um princípio da capacidade de julgamento, é a intenção filosófica de Kant, que só a partir daí conduz a uma conclusão sistemática o todo de sua filosofia. O juízo lança a ponte entre entendimento e razão. O inteligível, a que faz alusão o gosto, o substrato supra-sensorial da humanidade, contém ao mesmo tempo a intermediação entre os conceitos de natureza e os conceitos de liberdade. Essa é a importância sistemática que tem para Kant o problema da beleza natural: Ela fundamenta a posição central da teleologia. Só ela, não a arte, pode ser de proveito na legitimação do conceito de finalidade com relação para o julgamento da natureza. Já a partir desse fundamento sistemático o juízo de gosto "puro" torna-se a base imprescindível da terceira crítica. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O que o conceito do gênio produz é pois apenas comparar esteticamente os produtos das belas artes com a beleza da natureza. Também a arte é vista esteticamente, isto é, também ela é um caso para o juízo reflexo. O que é trazido à tona intencionalmente — e, nesse sentido, plenamente adequado ao fim — não deve ser relacionado a um conceito, mas pretende agradar, com relação ao mero julgamento — tal qual o belo natural. "As belas artes são arte do gênio", não significa nada mais do que o seguinte: também para o belo, não existe na arte nenhum outro princípio de julgamento, nenhuma medida de conceito ou de conhecimento, a não ser o da conveniência (Zweckmässigkeit) para o sentimento da liberdade no jogo de nossa capacidade de conhecimento. O belo na natureza ou na arte possui um e mesmo princípio apriorístico, que reside totalmente na subjetividade. A autonomia do juízo estético não fundamenta, de forma alguma, nenhum campo de validade autônoma para belos objetos. A reflexão transcendental de Kant sobre um a priori do juízo, justifica a reivindicação do julgamento estético, mas, no fundo, não admite uma estética filosófica no sentido de uma filosofia da arte (o próprio Kant diz que aqui a crítica não corresponde a nenhuma doutrina ou metafísica). VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

É verdade que nisso ele próprio pôde apoiar-se em Kant, na medida em que esteja tinha atribuído ao gosto o significado de uma transição do prazer dos sentidos ao sentimento ético . Quando, porém, Schiller   proclamou a arte um exercício da liberdade, reportou-se ele mais a Fichte   do que a Kant. O jogo livre da capacidade de conhecimento, sobre o qual Kant fundamentara o a priori do gosto e do gênio, entendia Schiller antropológicamente, com base na doutrina dos instintos de Fichte, no qual o instinto lúdico devia produzir a harmonia entre o instinto da forma e o instinto da matéria. O cultivo desse instinto é a meta da educação estética. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.

O conceito básico da estética, do qual Hamann parte, é a "significância própria da percepção". É manifesto que, com esse conceito, se está dizendo a mesma coisa que a doutrina de Kant sobre a concordância adequada com o estado da nossa capacidade de conhecimento como tal. Tal como para Kant, também para Hamann ter-se-á, com isso, de suspender o padrão do conceito ou do significado, essencial para o conhecimento. Visto linguisticamente a "significância" é uma formação secundária com relação ao significado, que desloca a relação a um determinado significado significativamente para algo incerto. O que é "significativo" tem um significado (não manifestado ou) não reconhecido. A "significância própria" vai ainda além disso. O que é significativamente próprio, em vez de significativamente estranho, quer extirpar a relação àquilo, a partir donde deixaria determinar seu significado. Será que um tal conceito pode constituir um fundamento resistente para estética? Pode-se, afinal, utilizar o conceito "significância própria", sobretudo no que diz respeito a uma percepção? Não se terá de conceder ao conceito da "vivência" estética o que se credita à percepção, ou seja, que percebe o verdadeiro, isto é, que continua relacionado ao conhecimento? VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.