Página inicial > Hermenêutica > Gadamer, Hans-Georg (1900-2002) > Gadamer (VM): cânon hermenêutico

Gadamer (VM): cânon hermenêutico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

À primeira vista, o fato de que não se deva introduzir num texto nada que não pudesse ter tido em mente o autor e o leitor, soa como um cânon hermenêutico da razão, que, enquanto tal, também é reconhecido geralmente. E, no entanto, somente nos casos mais extremos pode-se realmente aplicá-lo. Os textos não querem ser entendidos como expressão vital da [399] subjetividade de seu autor. Por consequência, não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido. Todavia, o duvidoso não é somente a limitação do sentido de um texto às verdadeiras ideias do autor. Ainda quando se procura determinar objetivamente o sentido de um texto, entendendo-o como alocução contemporânea e referindo-o a seu leitor original, como fazia a premissa básica de Schleiermacher  , tampouco se conseguirá ir mais além de uma delimitação casual. O próprio conceito do destinatário contemporâneo não pode ter mais que uma validez crítica limitada. Pois, o que quer dizer contemporaneidade? Os ouvintes de anteontem, tal como os de depois de amanhã, continuam pertencendo aos que nós falaríamos como contemporâneos. Onde se poderia traçar a fronteira daquele depois de amanhã que exclua a um leitor como possível interlocutor? O que são os contemporâneos, e o que é a pretensão de verdade de um texto, face a esta múltipla confusão de ontem e amanhã? O conceito do leitor originário encontra-se envolto em uma idealização completa e opaca. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.

À luz dessa questão, a venerada tradição da hermenêutica jurídica ganha nova vida. No seio da dogmática jurídica moderna, esse questionamento exerceu um papel insignificante, mesmo que uma dogmática só possa aperfeiçoar-se a si mesma quando conta com inevitáveis manchas vergonhosas. De qualquer modo, não se pode negar que a hermenêutica seja uma disciplina normativa e que exerça a função dogmática de complemento jurídico. Como tal, desempenha uma função indispensável, visto que precisa superar o hiato insuperável entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual. Nesse sentido, Aristóteles havia delimitado, na Ética a Nicômaco, o espaço hermenêutico relativo à teoria do direito, ao discutir o problema do direito natural e do conceito da epieikeia. Mesmo a reflexão sobre a história da hermenêutica jurídica mostra que o problema da interpretação compreensiva está indissoluvelmente ligado ao problema da aplicação. Essa era a dupla tarefa da ciência jurídica, sobretudo desde a recepção do direito romano  . A questão não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno. Com isso, uma ligação tão estreita como a que se impôs na teologia, surgiu também entre a tarefa hermenêutica e a tarefa dogmática. Uma teoria da interpretação do direito romano não poderia abandonar-se a uma alienação histórica, pelo menos enquanto o direito romano detivesse sua vigência legal. Isso explica por que a interpretação do direito romano considera óbvio que a teoria da interpretação empreendida por Thibaut (1806) não possa se apoiar apenas na intenção do legislador, tendo que elevar o "fundamento da lei" ao nível de um verdadeiro cânon hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.