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Gadamer (VM): auto-esquecimento

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Nosso ponto de partida foi que o verdadeiro ser do espectador, que faz parte do jogo da arte, do ângulo da subjetividade, não pode ser adequadamente compreendido como uma forma de comportamento da consciência estética. Mas isso não deve significar que também não se possa descrever a natureza do espectador a partir daquele tomar-parte (Dabeisein  ), a que demos relevo. Tomar-parte, como um desempenho subjetivo do comportamento humano, tem o caráter do estar-fora-de-si. No seu Fedro Platão   já assinalou a incompreensão com que se costuma ignorar, com base na sensatez racional, a estética do estar-fora-de-si (Aussersichsein  ), quando nisso se vê uma mera negação do estar-em-si (Beisichsein), portanto, uma espécie de loucura. Na verdade, o estar-fora-de-si é a possibilidade positiva de se tomar parte inteiramente em alguma coisa. Um tal tomar-parte tem o caráter de um auto-esquecimento. Perfaz a natureza do espectador, o fato de estar entregue a uma visão, totalmente esquecido de si. O auto-esquecimento é, aqui, tudo, menos um estado privativo, pois procede da dedicação à causa, o que o espectador realiza como sendo seu desempenho positivo e próprio. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

O que está sendo representado diante de cada um é para eles tão destacado dos moldes usuais de mundo e tão concentrado num núcleo de sentido independente, que não motiva ninguém a sair daí para qualquer outro futuro ou realidade. O receptor é remetido a uma distância absoluta, que lhe veda qualquer participação que tenha uma finalidade de cunho prático. No seu verdadeiro sentido, essa distância para o olhar, que possibilita a participação genuína e sob todos os ângulos, daquilo que está sendo representado diante dele. Ao auto-esquecimento estático do espectador corresponde, por isso, a sua continuidade consigo mesmo. Justamente a partir daquilo em que ele, como espectador, se perde, é que lhe é exigida a continuidade do sentido. É a verdade do seu próprio mundo, do mundo religioso e do ético, no qual vive, que está sendo representada diante dele e na qual se reconhece. Tal qual a parusia, o absoluto presente caracterizou o modo de ser do ser estético e, não obstante, uma obra de arte continua sendo a mesma, por toda parte onde quer que ocorra um tal presente, assim também o momento absoluto, em que se encontra o espectador é, ao mesmo tempo, auto-esquecimento e intermediação consigo mesmo. O que arranca de tudo, devolve-lhe, concomitantemente, o todo do seu ser. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 2.

A essa imagem da história corresponde também a posição do conhecimento histórico. Também esse não pode ser compreendido como o fez Ranke, como um auto-esquecimento estético e um auto-apagamento à maneira da grande poesia épica. O traço panteísta de Ranke propiciou aqui a pretensão de uma participação ao mesmo tempo universal e imediata, de uma "co-ciência" do todo. Ao contrário, Droysen pensa as mediações em que a compreensão se movimenta. Os poderes morais não são somente a autêntica realidade da história a que se eleva o indivíduo quando atua. Eles são ao mesmo tempo aquilo a que, também aquele que pergunta e investiga historicamente se eleva para além de sua própria particularidade. O historiador está determinado e limitado por pertencer a determinadas esferas morais, como a sua pátria, as suas convicções políticas e religiosas. Todavia, sua participação repousa precisamente sobre essa unilateralidade inamovível. Sob as condições concretas de sua existência histórica própria — e não flutuando por sobre as coisas — a justiça se coloca como a sua tarefa. "Sua justiça é o fato de que ele tenta compreender" (§ 91). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Naturalmente a aplicação desse esquema pressupõe que seja possível superar a vinculação a um ponto de vista verdadeiramente histórico para tudo. É nisso que vê a sua perfeição. Por isso concentra os seus esforços em desenvolver o "sentido histórico", a fim de aprender a elevar-se para além dos preconceitos do próprio presente. E assim que Dilthey   se considerou o autêntico realizador da concepção histórica do mundo, porque procurou legitimar a elevação da consciência à consciência [236] histórica. O que a sua reflexão epistemológica pretendia justificar não era, no fundo, mais do que o grandioso auto-esquecimento épico de um Ranke. Somente que em lugar do auto-conhecimento estético aparece aqui a soberania de uma compreensão holifacetária e infinita. A fundamentação da historiografia em uma psicologia da compreensão, tal como Dilthey a tinha em mente, desloca o historiador justamente a essa simultaneidade ideal   com seu objeto, que chamamos de estética e da qual nos admiramos em Ranke. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Assim, também nós reconhecemos uma unidade de filologia e historiografia, mas esta unidade não se estribaria nem na universalidade do método histórico nem na substituição objetivadora do intérprete pelo leitor original, nem na crítica histórica da tradição como tal, pois que, pelo contrário, a unidade consiste em que ambas as disciplinas levam a cabo uma tarefa de aplicação que somente difere quanto ao seu padrão. Se o filólogo compreende um texto dado, e isto significa, se se compreende a si mesmo no texto, no sentido mencionado, o historiador compreende também o próprio grande texto da história do mundo, que ele adivinha, texto no qual cada texto transmitido é só um fragmento, uma letra; e também ele se compreende a si mesmo neste grande texto. Tanto o filólogo como o historiador retornam assim do auto-esquecimento, no qual um pensamento mantinha-os exilados. O único padrão desse pensamento era a consciência metodológica da ciência moderna. É na consciência da história efeitual onde ambos se encontram, como em seu verdadeiro fundamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Não seguimos o grandioso auto-esquecimento desse pensamento, e ainda teremos que nos perguntar até que ponto podemos seguir sua renovação, sobre a base do conceito moderno da subjetividade, que o idealismo absoluto de Hegel   representa. Pois a nós, nos guia o fenômeno hermenêutico, e seu fundamento mais determinante é precisamente a finitude de nossa experiência histórica. Para fazer justiça a isso, seguimos o rastro da linguagem; nesse, não se copia a estrutura do ser, simplesmente, mas é no seu envio que se forma, primeiramente e em constante mudança, a ordenação e a estrutura de nossa própria experiência. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Sob o ponto de vista dessa questão, passa a despertar interesse   a pertença interna de palavra e coisa, tal como foi problematizada no começo da reflexão sobre a linguagem. De certo, a questão pela justeza dos nomes, abordada pelos gregos, constitui um último eco daquela magia da palavra, que a compreende como a coisa (Sache  ) ela mesma, ou como o seu ser representante. Também o filosofar dos gregos começa com a dissolução dessa magia da palavra, dando seus primeiros passos como crítica da linguagem. Apesar disso, conserva em si tanto daquele auto-esquecimento ingênuo que constitui a experiência originária de mundo que a essência das coisas que se manifestam no logos   parece-lhe ser a auto-apresentação dos próprios entes. Trata-se de uma clara ironia, quando Platão, no Fédon, caracteriza a fuga para os logoi como uma "viagem de segunda", porque aqui se considera o ente apenas numa imagem refletida do logos, ao invés de considerá-lo em sua realidade corpórea. No fim, o verdadeiro ser das coisas torna-se acessível justamente em sua manifestação pela linguagem, quer dizer, na idealidade de um ter em mente, desprovido de pensamento, e se fecha de tal modo para o olhar da experiência que o próprio ter em mente e o caráter de linguagem da manifestação das coisas acabam não sendo experimentados como tais. À medida que compreende o verdadeiro ser das coisas como as essências acessíveis ao "espírito", a metafísica encobre o caráter próprio de linguagem dessa experiência do ser. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 6.

A esta pergunta, gostaria de apresentar uma resposta restritiva: Enquanto a vida da linguagem conviver com conceitos, o esclarecimento histórico-conceitual é significativo — mas isso também significa que o ideal de um saber consciente total (Bewusstheit) é absurdo. Isto porque linguagem é auto-esquecimento, sendo apenas por um esforço crítico "antinatural" que interrompe o fluxo da fala e paralisa de repente algo deste fluxo, que se dá conscientização e esclarecimento temático de uma palavra e de seu significado conceitual. Pude observar essas coisas quando minha filha era pequena: Quando ela estava aprendendo a escrever, um dia, ao fazer a tarefa de escola, ela perguntou: "Como se escreve morangos?" Disse-lhe como era; ela ficou um instante pensativa e respondeu: "Que estranho, quando ouço assim, não entendo mais a palavra. Só quando volto a esqueçê-la é que estou novamente nela". Estar dentro da palavra é, na verdade, o modo como falamos. E se nesse momento pudesse realmente bloquear o fluxo de minha necessidade de comunicação e começar a refletir sobre as palavras que estou pronunciando, fixando-as na reflexão, a continuação da conversa estaria totalmente impedida. Isso mostra o quanto o auto-esquecimento pertence à essência da linguagem. É justamente esse o motivo por que o esclarecimento conceptual — e história do conceito é esclarecimento conceitual — só pode dar-se parcialmente. Só pode ser útil e importante onde se denuncia por meio dele o encobrimento que se dá pela alienação e enrijecimento da linguagem, ou onde se deve partilhar a carência de linguagem para se alcançar a envergadura total da reflexão. Isto porque a carência de linguagem deve alcançar a consciência de quem está refletindo. Só pode pensar filosoficamente aquele que sente uma insatisfação frente às possibilidades de expressão disponíveis na linguagem. E só se pensa em conjunto quando se partilha realmente a indigência daquele que ousa   formular enunciados conceituais a serem confirmados por si mesmos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 7.

É sob essa perspectiva que gostaria de considerar a relação entre fé e compreensão. A autocompreensão da fé determina-se pelo fato de que, vista teologicamente, a fé não constitui uma possibilidade do homem, mas um ato da misericórdia de Deus que sobrevêm ao crente. É difícil, contudo, manter essa visão teológica e essa experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver sob o domínio da ciência moderna e de sua metodologia. O conceito de saber que se fundamenta nessa metodologia não tolera nenhuma restrição em sua pretensão de universalidade. Baseada nessa pretensão, toda autocompreensão apresenta-se como uma espécie de autopossessão que exclui com veemência tudo que possa se lhe contrapor e que a separe de si própria. O conceito de jogo pode tornar-se aqui importante, uma vez que o mergulhar no jogo, em seu auto-esquecimento extático, não é experimentado como uma perda da posse de si, mas positivamente como a leve liberdade de elevar-se sobre si mesmo. Isso não se deixa apreender, de maneira unitária, como a subjetividade de um auto-esquecimento. Como formulou certa vez o historiador holandês Huizinga, a consciência daquele que está jogando encontra-se num equilíbrio indistinguível entre fé e falta de fé. "O selvagem não conhece a diferença conceitual entre ser e jogar." VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

Se concebermos o fenômeno da linguagem não a partir do enunciado isolado, mas a partir da totalidade de nosso comportamento no mundo, o qual é por sua vez também uma vida em diálogo, poderemos compreender melhor por que o fenômeno da linguagem é tão enigmático, atrativo e fugidio. O dizer é a ação de auto-esquecimento mais radical que podemos realizar como seres racionais. Todo mundo já fez a experiência de estar conversando e de repente estacar, sentindo que as palavras fogem no momento em que nelas se fixa a atenção. Isso pode ser ilustrado por um pequeno acontecimento que vivenciei com minha filha pequena: Ela tinha que escrever a palavra "morango" e perguntou como se escreve. Quando lhe disse como fazer, ela observou: "Engraçado, quando a escuto desse modo, já não consigo mais compreender a palavra. É só quando a esqueço que estou de novo nela". Estar na palavra de modo a não estar diante dela como se estivesse diante de um objeto é por natureza o modo fundamental de todo comportamento na linguagem. A linguagem tem uma força de proteção e ocultamento de si mesma. O que acontece na linguagem é protegido contra o ataque da reflexão, mantendo-se resguardado no inconsciente. Quando percebemos essa essência ocultadora e protetora da linguagem, vemo-nos obrigados a ultrapassar as dimensões da lógica enunciativa e alcançar horizontes mais amplos. Dentro da unidade vital da linguagem, a linguagem da ciência é apenas um momento integrado. O que mais ocorre são as palavras que encontramos na linguagem filosófica, religiosa e poética. Nelas todas, a palavra é algo bem diferente do que o comércio com o mundo promovido pelas estruturas de auto-esquecimento. Somente aqui estamos em casa. E como ter um fiador do que se diz. Isso aparece claramente sobretudo no uso poético da linguagem. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 14.