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Gadamer (VM): acontecimento histórico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Nas ciências do espírito, porém, essa pressão se exerce como que a partir de dentro. Elas até correm o risco de considerar como verdadeiro aquilo que corresponde aos interesses desses poderes. Uma vez que o seu trabalho carrega em si sempre um momento de incerteza, a confirmação dos outros é de especial importância para elas. Estes serão, como sempre, os especialistas, quando forem "autoridades". Visto, porém, que seu trabalho interessa a todos, a intenção do investigador já busca adequar-se à opinião   pública e ir de encontro à repercussão que a própria investigação nela encontra. Assim, por exemplo, o interesse   nacional está particularmente presente quando se vai escrever uma história política. É sabido por todos o quanto pode ser diferente o mesmo acontecimento histórico, quando descrito por investigadores de nacionalidades diversas, [42] mesmo sendo sérios. Isso não acontece porque eles calculam os efeitos, mas por causa de uma co-pertença interna que determina previamente seu ponto de vista. Esse processo, porém, pode reverter-se com muita facilidade e levar a pessoa a buscar assumir o ponto de vista favorável à influência do público. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 3.

Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel   e de Schleiermacher  , administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey   em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto "cultura", convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da "facticidade" do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.

Na minha opinião, foi isso que marcou a orientação do debate hermenêutico mais recente. A própria fé nessa história deve ser compreendida como um acontecimento histórico, como um apelo [406] da palavra de Deus. Isso vale já para a relação do Antigo com o Novo Testamento. Também pode ser compreendido (segundo Hofmann, por exemplo) como a relação existente entre a profecia e sua realização, de modo que a própria profecia que fracassa historicamente só pode ser determinada em seu sentido a partir de sua realização. A compreensão histórica das profecias vétero-testamentárias não prejudica em nada o sentido do anúncio que elas recebem a partir do Novo Testamento. Ao contrário, o acontecimento salvífico anunciado no Novo Testamento só pode ser compreendido como um acontecimento verdadeiro quando sua profecia não é uma mera "reprodução do fato futuro". É importante salientar sobretudo que o conceito de autocompreensão da fé, o conceito fundamental da teologia bultmanniana, possui um sentido histórico (e não idealístico). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.