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Gadamer (VM): acontecimento hermenêutico

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

É nessas distinções que se pode esclarecer a questão que, num outro contexto, tenho sempre de novo colocado, qual seja, de saber que função desempenha no acontecimento hermenêutico a intenção do autor. Isto aparece claramente no uso cotidiano do discurso, onde não está em questão penetrar na rigidez da escrita. Precisamos compreender o outro; precisamos compreendê-lo, compreender o que ele tinha em mente ao falar. Ele, por assim dizer, não se separou de si próprio, não se fiou nem se expôs, através de um discurso fixado por escrito ou de algum outro modo, a um estranho, que pudesse desvirtuar, querendo ou não, através de mal-entendidos, aquilo que ele deveria compreender. E mais ainda: Ele não se separou do outro, para quem ele está falando e que o está escutando. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

A ingenuidade do que chamamos de historicismo consiste em que, evitando esse tipo de reflexão e confiando em sua metodologia, acaba por esquecer sua própria historicidade. O que cabe reivindicar aqui é a passagem de um pensamento histórico mal compreendido a um pensamento histórico melhor compreendido. Um pensar verdadeiramente histórico deve pensar também sua própria historicidade. Somente assim deixará de perseguir a quimera de um objeto histórico, que é o tema de uma investigação progressiva, mas para aprender a reconhecer no objeto o outro de si próprio e com isso tanto um quanto o outro. O verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um e outro, uma relação que [65] compreende tanto a realidade da história quanto a realidade da compreensão histórica. Uma hermenêutica adequada e correta teria de demonstrar na compreensão essa realidade própria da história. Chamo de "história efeitual" o que corresponde a essa exigência. Compreender é um processo histórico-efeitual, e se poderia demonstrar que é na linguagem própria a toda compreensão que o acontecimento hermenêutico traça seu caminho. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

Isso coincidiu com a guinada empreendida pela crítica anglo-saxã da linguagem, que partia de uma reflexão sobre o ideal   de uma linguagem lógica artificial, plenamente unívoca. No lugar do [429] cálculo lógico degradado em simples disciplina técnica auxiliar e da axiomatização da linguagem, apareceu a análise da linguagem realmente falada (ordinary language). De princípio, a intenção da crítica à metafísica permaneceu intocada, mas vinha associada à expectativa positiva de que a nova orientação rumo à linguagem viva, falada, não apenas ensinava a desmascarar problemas aparentes, como a resolvê-los. Essa guinada teve ampla repercussão, sobretudo com a publicação da obra póstuma de Wittgenstein   Investigações filosóficas (1953). Esse escrito continha uma crítica expressa aos próprios pressupostos nominalistas presentes em seu Tractatus (1921) e à orientação da Escola de Viena, sobretudo de Carnap. A ideia de uma normatização da linguagem presidida pelo ideal da univocidade foi substituída pela teoria dos jogos de linguagem. Cada jogo de linguagem é uma unidade funcional que representa como tal uma forma de vida. A filosofia continua sendo crítica da metafísica e da linguagem, mas sob a base de um acontecimento hermenêutico levado a cabo por uma historicidade interna interior. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.