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Gadamer (VM): Organon

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

É verdade, porém, que na época da nova ciência e do racionalismo, desenvolvido durante os séculos XVII e XVIII, o vínculo entre retórica e hermenêutica se afrouxa. H. Jaeger chamou a atenção ultimamente para o papel que desempenhou Dannhauer com sua idéia do boni interpretis. Esse autor parece ter sido o primeiro a utilizar a palavra "hermenêutica" em sentido terminológico, em estreita conexão com o escrito correspondente do Organon   de Aristóteles. Isso mostra que a intenção de Dannhauer é continuar e acabar o que Aristóteles havia iniciado com seu escrito Peri hermeneias. Como ele mesmo afirmou: "os limites do Organon de Aristóteles se ampliam com a anexação de uma nova cidade". A sua orientação é, pois, a lógica, à qual ele quer justapor como uma parte a mais, [288] como outra ciência filosófica, a ciência da interpretação, e isto de um modo tão universal que ela preceda a hermenêutica teológica e a hermenêutica jurídica, como a lógica e a gramática precedem toda aplicação específica. Dannhauer deixa de lado o que ele chama de exposição retórica, ou seja, o uso e a utilidade que se busca com um texto e que se costuma chamar de accomodatio textus, para tentar alcançar pela sua hermenêutica uma infalibilidade humana e racional equiparável à lógica, na compreensão geral dos textos. É essa tendência a uma espécie de nova lógica o que a leva a um paralelismo com a lógica analítica e a uma distinção explícita desta. Ambas as partes da lógica, a analítica e a hermenêutica, se relacionam com a verdade e ambas ensinam a refutar o erro. Mas diferem no fato de que a hermenêutica ensina a investigar o verdadeiro sentido de uma frase errônea, enquanto que a analítica deriva a verdade da conclusão de princípios verdadeiros. Aquela se refere, pois, unicamente ao "sentido" das frases, não à retidão objetiva. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

Parece-me um erro considerar essa orientação lógica da hermenêutica como a verdadeira realização da idéia de hermenêutica, como faz H. Haeger. O próprio Dannhauer, um teólogo de Estrasburgo dos inícios do século XVII, professa-se seguidor do Organon de Aristóteles, que o teria libertado das confusões da dialética de sua época. Mas, desconsiderando essa orientação teórico-científica e examinando o conteúdo, vemos que compartilha quase plenamente com a hermenêutica protestante. E, se esquece sua relação com a retórica, ele o faz por referência imediata a Flacius, que teria dedicado suficiente atenção a esse aspecto. Mas, enquanto teólogo protestante, compartilha expressamente do reconhecimento da relevância da retórica. Em sua Hermenêutica sacrae scripturae cita largamente Agostinho   para demonstrar que na Sagrada Escritura não existe uma mera ausência de arte (como poderia parecer desde o ideal   ciceroniano da retórica), mas um gênero especial de eloqüência próprio [289] a homens de autoridade suprema e a homens quase divinos. Vê-se como o cânon estilístico da retórica humanista continuava vigente no século XVII, uma vez que o teólogo cristão só podia precaver-se apelando para o fato de que ele, com Agostinho, defendia o aspecto retórico da Bíblia. A novidade de sua reorientação racionalista em relação à proposta metodológica da hermenêutica, quanto ao conteúdo, não atinge a substância desta, tal como havia sido inaugurado pelo princípio bíblico da Reforma. O próprio Dannhauer refere-se constantemente às questões teológicas controversas e insiste, como todos os outros luteranos, que a capacidade hermenêutica e a possibilidade de compreender a Sagrada Escritura é comum a todos os homens. Ele também considera a formação hermenêutica um bom instrumento para rebater os papistas. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.

A apresentação de Dannhauer feita por Jaeger (47-59) permite compreender tanto seu conceito de teoría da ciência como a denominação de "hermenêutica". Redescobriu por si mesmo o Organon de Aristóteles e essa descoberta representou para ele o inicio de toda sua existência espiritual. É evidente que o retorno ao verdadeiro Aristóteles o imuniza contra a lógica ramista (60) e permite-lhe encontrar uma confirmação no aristotelismo de Altorfer. Junto à lógica do enunciado, desenvolvida no escrito Peri hermeneias de Aristóteles, Dannhauer coloca a hermenêutica generalis como uma "nova cidade" (50). A temática do Organon aristotélico estende-se assim à interpretação das palavras e escritos de outros. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.