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Gadamer (VM): Celan

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mas a coisa se modifica quando se trata de um texto literário, e justamente por essa razão. A função do jogo de palavras não compactua com a ambiguidade polivalente da palavra poética. E verdade que as conotações que acompanham um significado principal emprestam à linguagem sua magnitude (Volumen) literária. Mas, pelo fato de subordinarem-se à unidade de sentido do discurso e evocar outros significados como meras ressonâncias, os jogos de palavras não são simples jogos de ambiguidade ou de polivalência que dão origem ao discurso poético. Neles confrontam-se unidades de sentido autônomas. O jogo de palavras rompe assim a unidade do discurso e exige ser compreendido numa relação de sentido reflexiva e superior. O uso reiterado de jogos de palavras e trocadilhos nos irrita, porque rompem a unidade do discurso. O princípio desarticulador do jogo de palavras dificilmente será eficaz numa canção ou num poema lírico, ou seja, sempre que prevaleça a figuração melódica da linguagem. Muito diferente é, obviamente, o caso do discurso dramático, onde a contraposição domina a cena. Basta lembrarmos a Stichomythia ou a autodestruição do herói que se anuncia no jogo de palavras com o nome próprio herói”. Também é diferente o caso em que o discurso poético não origina o fluxo da narração, a desenvoltura do canto nem a representação dramática, mas se move conscientemente no jogo da reflexão, de cujos jogos especulativos faz parte a desarticulação de expectativas do discurso. O jogo de palavras pode exercer assim uma função fecunda numa lírica muito reflexiva. É o que ocorre na lírica hermética de PAUL CELAN. Mas há que se perguntar também aqui se o caminho dessa sobrecarga reflexiva de palavras não acaba se perdendo no descaminho. Surpreende com efeito que Mallarmé utilize jogos de palavras em ensaios de prosa, como em Igitur. Onde se trata, porém, de conjuntos sonoros de figuras poéticas, ele quase não joga com as palavras. Os versos de Salut parecem estratificados e preenchem uma expectativa de sentido em planos tão diversos como o de um brinde à saúde e de um balanço de vida, oscilando entre a espuma do champanhe na taça e o rastro ondulado que o barco da vida deixa para trás. Mas ambas as dimensões de sentido podem se realizar na mesma unidade de discurso como o mesmo gesto melódico da linguagem. VERDADE E METODO II OUTROS 24

Isso fica claro sobretudo quando estudamos os diversos modos da fala e suas peculiaridades. Não é só a palavra poética que exibe uma rica gama de diferenciações, como, por exemplo, o épico, o dramático, o lírico. Existem outros modos de linguagem nos quais a relação hermenêutica básica de pergunta e resposta se modifica significativamente. Refiro-me às diversas formas de linguagem religiosa, como a proclamação, a oração, o sermão, a bênção. Cito a “lenda” mítica, o texto jurídico e até a linguagem mais ou menos balbuciante da filosofia. Essas modalidades formam uma problemática da hermenêutica aplicada, à qual dediquei-me cada vez mais desde a aparição de Verdade e método I. Penso ter-me aproximado ao tema a partir de dois ângulos: meus estudos sobre Hegel  , nos quais abordei o papel do elemento da linguagem na sua relação com o elemento lógico, e poesia hermética moderna, que analisei em um comentário ao Atemkristall de PAUL CELAN. A relação entre filosofia e poesia ocupa o centro dessas investigações. A reflexão sobre esse tema me serve e pode servir-nos a todos para recordar constantemente que Platão   não foi platônico nem a filosofia é escolástica. VERDADE E METODO II ANEXOS 30