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Fuchs (2018:83-87) – Dialética da identidade pessoal

terça-feira 6 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

A autovivência primária, foi o que vimos, não surge nem de uma autorreflexão nem de uma atribuição social; ela também não é nenhuma autoconsciência. Somente a partir do 2o ano de vida desenvolve-se gradativamente o si mesmo reflexivo ou pessoal, identificável a partir da capacidade de reconhecer a si mesmo no espelho, de se designar com “eu” e de se demarcar em relação aos outros. A diferença entre si mesmo e os outros, que estava dada antes apenas de maneira implícita, se torna, então, consciente para a criança enquanto tal, e ela reconhece a si mesma como uma pessoa entre outras. Um passo central neste caminho é formado a partir do 9o mês de vida por situações de atenção conjunta (joint attention) a objetos exteriores, intermediada pelos gestos de indicar e pela troca de olhares entre mãe e criança. Com isto, ela começa a apreender a mãe como um ser com uma perspectiva, que é diversa da [83] sua própria; ela aprende a ver o mundo com os olhos da mãe (Fuchs   2013).

À perspectiva primária, centrada no corpo, própria do 1o ano de vida se acrescenta a consciência das perspectivas dos outros, que também está dirigida em muitos aspectos para a criança. Ela internaliza, então, essa perspectiva exterior cada vez mais, transformando-a em autoconsciência reflexiva: ela não considera mais apenas objetos externos, mas também a si mesmo com os olhos dos outros. Esta não é certamente apenas uma realização cognitiva, mas encerra uma série de “emoções autorreflexivas” como vergonha, impasse, orgulho ou sentimento de culpa, que se baseiam no “olhar” internalizado, avaliador “dos outros”. Ser visto, julgado, avaliado pelos outros, tal como acontece paradigmaticamente no sentimento da vergonha, representa, segundo Sartre   (1962), precisamente o nascimento da autoconsciência. Essa consciência reflexiva significa naturalmente em seu cerne uma alienação, a saber, a perda da espontaneidade, do desprendimento e da inocência da vida infantil; ela equivale à “queda” bíblica “do paraíso”. Assim como Adão e Eva reconhecem aí cheios de vergonha a sua nudez, o corpo da criança obtém, então, um lado exterior, que se precisa esconder sob roupas. O corpo vivo transforma-se no “corpo-para-outros” (Sartre), em objeto de sua avaliação e, com isto, cada vez mais em portador de posturas, maneiras e papéis, que a criança assume dos outros. Ela aprende a se apresentar com seu corpo, mas também a desempenhar um papel e a travar a expressão espontânea.

As mais antigas estruturas da identidade social ainda não são formadas pelas atribuições linguísticas, mas por meio da imitação   corporal e da identificação com padrões de papéis: “o bravo”, “o original”, “a pequena princesa” ou “o suave”, “o cavalheiro”, “o pequeno adulto” etc. Todos eles não são naturalmente crianças desde o início. A identidade desenvolve-se a partir da incessante ação recíproca entre o ser si mesmo espontâneo, corporal, e as posturas e os papéis atribuídos pelos outros ou assumidos dos outros. Pode-se expressar essa dialética da identidade juntamente com George Herbert Mead nos conceitos do “I” e do “me”, [84] ou seja, do “eu” e do “mim”: o eu tem em vista o si mesmo primário como fonte da espontaneidade, enquanto o me, em contrapartida, é “o grupo organizado de posturas dos outros, que se assume por si mesmo” (Mead 1973, p. 216).

Toda e qualquer identidade social definida exige que nós equiparemos nossa autoimagem à imagem, que nos é oferecida ou atribuída de fora. Isto, porém, entra com frequência em conflito com o ser-si-mesmo primário, espontâneo. Nisto consiste o dilema fundamental da identidade humana: o que está em questão é sempre o fato de que a autoimagem ou o eu de papéis criados por meio das atribuições de si mesmo e do alheio sempre se tomam uma vez mais estranhos para o si mesmo espontâneo, deveniente — a roupa própria ao papel por assim dizer não se adequa mais e precisa ser novamente talhada. Esta contraditoriedade interior também ganha voz no conceito de “pessoa”, que é derivado originariamente da persona   latina, isto é, da máscara ou papel, mas que também designava, então, porém, o portador de tais papéis mesmos, justamente a pessoa (Fuchs 2002). Já no conceito, portanto, estranho e próprio são inseparáveis e estão ao mesmo tempo ligados de maneira ambivalente.

Em toda e qualquer identificação, algo originariamente exterior, estranho se transforma em próprio, seja ele uma oferta de papéis, um padrão de comportamento ou uma postura fundamental. Isto se estende até a identificação com o agressor, na qual até o ameaçador ou violento é imitado e reinterpretado como próprio. Em toda e qualquer identificação, contudo, algo próprio é também excluído e transformado em estranho. Pois toda identidade afasta outras possibilidades do si mesmo. Ser um rapaz significa justamente também não ser uma moça, e, por isto, o rapaz precisa alijar em si mesmo o ser moça potencial. Se tomar alguém obediente, um súdito fiel das normas e das leis, significa reprimir em si o teimoso, desobediente e rebelde. Esta é também a raiz de identificações neuróticas: assim, por exemplo, perturbações narcisistas ou histrionicas podem ser compreendidas como assunção de posturas e autoimagens, que reprimem o si mesmo corporal autêntico em favor de um si mesmo ideal   ou também de um “falso si mesmo”. [85] Esquece-se de como alguém de fato se sente, que necessidades de amor e reconhecimento permanecem sem ser preenchidas, e compensa-se isso por meio de uma imagem excepcional e fabulosa de si mesmo.

Não obstante, o alijado permanece sempre um desafio latente; nunca conseguimos nos separar completamente dele. Quem reprime o próprio permanece tanto mais ligado a ele na negação. Isto se mostra na violência, com a qual o reprimido é atacado nos outros. Na projeção, o outro representa aquilo que originariamente precisava ser encontrado no próprio interior, e o que permaneceu como o secretamente buscado ou cobiçado. Tanto mais inflexivelmente, o adversário precisa ser combatido, a fim de se silenciar o próprio latente no alheio (Gruen 2000, p. 10eseg.). Isto leva ao paradoxo de que a defesa antes ainda aumenta com a semelhança ou a proximidade social do outro. Nada é tão violentamente combatido quanto um membro da mesma classe social ou da mesma nação; nenhuma guerra é tão cruel e implacável quanto a guerra civil. O estranho atua tanto mais ameaçadoramente, quanto mais próximo e mais semelhante ele é, em verdade, de nós mesmos.

Resumindo o que foi dito até aqui. A própria identidade não é presenteada ao homem, mas busca-la se torna para ele tarefa, não raramente também um peso. É a autoconsciência que insere uma contradição na existência humana, a saber, a contradição entre o ser si mesmo corporal primário e o eu refletido. Na reflexão, nós nos encontramos diante de nós mesmos, nós vemos e avaliamos a nós mesmos de fora, e isto significa a partir do ponto de vista dos outros. A identidade social forma-se, então, na medida em que posturas, expectativas e projetos de papéis dos outros são assumidos e internalizados. Com isto, a identidade transforma-se em um constructo contraditório: ela liga a experiência do si mesmo próprio, primário, com a percepção e o reconhecimento do si mesmo pelos outros. Os dois polos da identidade nunca conseguem se recobrir completamente. Próprio e estranho estão neste caso entrelaçados de uma maneira complexa: algo estranho é assumido em identificações e é transformado em algo próprio, mas, inversamente, algo próprio também é [86] alienado e é transformado naquilo que é repelido ou reprimido, que encontra uma vez mais o sujeito no outro alheio. Identidade constitui-se em uma ação recíproca constante de identificação e desidentificação, “pertencer” e “afastar”. Minhas identificações, minhas posturas assumidas, meus papéis e autoatribuições, minha aparência, minha imagem: tudo isto sou eu, e, ao mesmo tempo, tudo isto não sou eu. Eu não me tenho, mas estou sempre a caminho de mim. O caráter contraditório desse ser si mesmo nos impele para frente, para a via do tempo. A dialética do si mesmo transforma-se na dinâmica do desenvolvimento, no qual estamos durante toda a nossa vida à procura de nós mesmos. Com certeza, são também os níveis biológico e social do caminho da vida, que nos requisitam desenvolvimento. Em última instância, porém, trata-se da tensão indissolúvel no cerne de nosso ser si mesmo, que mantém em curso um desenvolvimento potencialmente duradouro a vida inteira. Manter essa tensão, e alcançar aí mais do que uma congruência entre si mesmo primário e atualizado, constitui a personalidade amadurecida.


Ver online : Thomas Fuchs


FUCHS, Thomas. Para uma psiquiatria fenomenológica: Ensaios e conferências sobre as bases antropológicas da doença psíquica, memória corporal e si mesmo ecológico. Tr. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2018