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Fogel (2015:185-187) – entre homem e realidade há uma relação

segunda-feira 4 de março de 2024, por Cardoso de Castro

2. Dissemos que entre homem e realidade há uma relação. Uma relação de implicação, antes, de co-implicação de modo tal que, ao pé da letra, isso é uma com-plicação. Dissemos que o homem é o lugar e a hora de todo e qualquer real possível. Com isso, isto é, dizendo ser ele lugar e hora de todo e qualquer real possível, dizíamos que todo real se dá no homem, melhor, desde ele ou a partir dele. Então, todo e qualquer real, de algum modo, é o homem. A questão é esclarecer este modo, este algum modo, segundo o qual o homem é o real e o real é o homem. A medida que se esclarece este modo, há de se esclarecer como e em que medida o homem é, necessariamente, lugar e hora de todo e qualquer real. Este modo, segundo o qual o homem é o real e o real é o homem, começa a se esclarecer se perguntamos: O que é o homem? Como o homem?

“O homem é o vivente político”, diz Aristóteles, sintetizando toda a experiência e toda a compreensão gregas. Isso quer dizer: o homem é o vivente que se dá, que acontece sempre já numa pólis  , ou seja, sempre já num mundo de sentidos, de significações, de valores, de tradição (herdar e legar), enfim, sempre já nisso e desde isso que, de modo muito geral, chamamos cultura e história. Que o homem seja o vivente político quer, pois, dizer que esta polis, este modo de inserção, é inseparável do homem, isto é, é sua constituição própria, e não se pode pensá-lo, quer dizer, imaginá-lo, representá-lo, compreendê-lo fora, ou seja, antes ou depois desta pólis – da cultura, da história. Assim sendo, não há, não pode haver o primeiro homem. Isso, parece, dificulta muito a pesquisa, pois derruba a expectativa [185] de um certo modo habitual de representar a vida e o que nela acontece (a cultura, a história), qual seja, a maneira sucessivo-linear, o indefinidamente para frente ou para trás, buscando sempre um ponto definido e fixo e que seria o primeiro (ou o último) e que se configura ou se configuraria como a causa, o princípio, o fundamento, a origem ou o destino, a finalidade, o propósito. O estranho é que, pensando o homem como radical ou essencialmente político (i.é, na, da pólis), verifica-se que toda pesquisa (busca, investigação) desta índole é tardia, epígona, pois quando ela começa ou chega, no seu ponto de partida ou de chegada (e, aqui, o ponto de chegada será sempre o da partida, coincidirá com ele), o homem, melhor, a pólis já se deu, já aconteceu, de modo que ele (o homem) e ela (a pólis) são sempre antes da pesquisa e de seu resultado.

A fala do homem como vivente político traz à luz a ideia, a compreensão grega de começo, de todo e qualquer começo (arche  ), como inserção ou círculo, quer dizer, o começo que só é e só pode ser começo porque absolutamente não começa, não pode começar. Então, dizendo que o homem é o vivente político, estamos co- e sub-dizendo que, quando o homem acontece, pólis sempre já aconteceu. Ao invés de pólis, pode-se dizer mundo, à medida que não se entenda sob mundo nenhuma determinação de cunho cósmico, cosmológico, astronômico ou astro-físico. Mundo, aqui, fala tão só de uma certa unidade de sentido (um logos  !), que é forma, isto é, gênese ontológica, de tudo quanto aparece e se dá ao dar-se e aparecer. Mundo fala, portanto, de um sentido, no qual sempre já se está inserido ou jogado. Esta forma ou gênese ontológica se mostra, p. ex., quando se fala do mundo da arte, do mundo religioso, do mundo desportivo, onde arte, religião e desporto, p.ex., definem esta forma ou esta gênese ontológica.

Então, quando homem acontece ou se dá, mundo (sentido, sentido-mundo, forma ou gênese ontológica) sempre já aconteceu, sempre já se deu. Este “sempre já” é importante, decisivo, pois ele mostra a dimensão de instantidade, de subitaneidade, portanto, de salto, deste acontecimento-mundo, melhor, deste acontecimento ou irrupção súbita mundo-homem, mundo-vida-existência humana. E esta natureza ou dimensão de subitaneidade ou instantaneidade (o salto) [186] fala de círculo, quer dizer, de inserção. Nisso, a saber, numa pólis, num mundo, num sentido (lógos), sempre já se está, sempre já se é. Se o “sempre já” (o salto) fala de inserção, ele também, ao mesmo tempo e graças a isso, traz à tona a decisiva noção de afeto, de páthos  , ou seja, viver, existir, ser homem é, de repente (subitamente, num salto), ver-se sempre já tocado, tomado ou afetado por um sentido, por um mundo que, em se fazendo ou se dando, vai fazendo (possibilitando) com que o homem venha a ser homem ou faça-se homem. E isso porque o homem é um ente, antes, ente ou coisa nenhuma, mas tão só um modo de ser, que é ser tocável, afetável, ou seja, um ou o modo de ser que pode ser tocado, afetado e, então, pode ser apoderado ou apropriado por um sentido (lógos), por um mundo, que, assim, se mostra, se faz visível, à medida que se realiza, se concretiza ou se expõe no homem, desde ou a partir do homem, do animal ou do vivente político, mundano.

É preciso enfatizar que o próprio de um tal sentido-afeto ou mundo é ex-por-se, auto-ex-por-se ou aparecer (fazer-se visível), pois tal sentido é a própria vida se fazendo vida ou aparecendo, e vida, em seu sentido primeiro e elementar, é movimento que, desde si mesmo, move a si mesmo (= Psyché  ). Assim e por isso, vida, a vida que se faz ou se dá no e como mundo (lógos), é essencial ou constitutivamente ex-posição, melhor, auto-ex-posição. Neste movimento, apoderado ou apropriado por este modo de ser, a saber, vida, o homem vem a ser homem – este, aquele ou aqueloutro homem determinadamente, singularmente.


Ver online : Gilvan Fogel


FOGEL, Gilvan. Homem, Realidade, Interpretação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015