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Da religiosidade

Flusser (R:49-51) – intelecto e dúvida

I – Do intelecto.

sexta-feira 15 de outubro de 2021

FLUSSER  , Vilém. Da religiosidade: a literatura e o senso de realidade. São Paulo: Escrituras Editora, 2002, p. 49-51

Certos exercícios do Ioga ultrapassam, em radicalidade, as meditações cartesianas. Revelam vivencialmente, não que penso, mas que tenho pensamentos. Posso, nesses exercícios, eliminar os pensamentos, mas continuarei sendo. Com efeito, o método cartesiano prova a existência de pensamentos, não do eu que pensa. Há uma fé humanista no “eu” que se infiltra, sub-repticiamente, no argumento cartesiano, sem jamais ser duvidada. Os exercícios do Ioga interessam, neste contexto, apenas enquanto proporcionam um ponto de vista sobre os pensamentos. É o ponto de vista de dentro para fora. Os pensamentos se apresentam como tecido entreposto entre o “eu” e o mundo dos fenômenos externos. Esse tecido tapa, apresenta e representa (“vorstellt” na palavra de Schopenhauer  ) o mundo externo. Chamemos esse tecido de “intelecto”. Podemos definir o intelecto como o campo no qual ocorrem pensamentos. Esse campo está ligado, de certa forma, com o “eu” que tem pensamentos, e com o mundo a quem os pensamentos representam. Pelo menos essa é nossa fé ingênua, sem a qual o intelecto não teria significado. Essas ligações são justamente o significado do intelecto. Mas essas ligações não podem ser pensamentos, dada a nossa definição do intelecto. Do contrário, “eu” e “mundo externo” seriam parte do intelecto. As ligações que unem o intelecto ao “eu” e ao “mundo externo” não são, portanto, pensamentos. “Eu” e “mundo externo” são impensáveis. Sendo [49] impensáveis são, paradoxalmente, indubitáveis. Serão, em consequência, eliminados do presente argumento.

O intelecto definido como campo no qual ocorrem pensamentos é uma visão que resultou de um ponto de vista. É um ponto de vista externo ao intelecto. O intelecto é, deste ponto de vista, objeto. Pode ser investigado “objetivamente”. Tornou-se despsicologizado. Os pensamentos que compõem o intelecto não são vivências, mas objetos de conhecimento. Uma dificuldade ontológica se esconde neste ponto de vista. Pensamentos se tornam objetos de pensamentos. Essa dificuldade é consequência da dúvida da dúvida que fundamenta o ponto de vista.

Passemos, relutantes, por cima dessa dificuldade.

O intelecto como campo no qual ocorrem pensamentos torna a pergunta “o que é intelecto?” pergunta sem significado. Um campo não é um algo. E um como algo se dá. O campo gravitacional da Terra é como se comportam corpos na vizinhança da Terra. O intelecto é como pensamentos ocorrem. Para ocorrerem, os pensamentos devem ocorrer de uma forma ou outra. O intelecto é essa “forma ou outra”. Tendo negado dignidade ontológica ao intelecto, dedicaremos a nossa atenção aos pensamentos.

Os pensamentos como objetos são formações complexas. Consistem de elementos chamados “conceitos” ligados entre si por elos chamados “regras”. Pelo menos é assim que pensamentos ocorrem em campos chamados “intelectos do nosso tipo”.

Outros tipos de intelectos podem ser imaginados. Por exemplo: intelectos do tipo chinês ou kwakiutl. Nesses intelectos os pensamentos talvez não consistam de conceitos. Restringiremos o argumento ao nosso tipo de intelecto.

Os pensamentos como conceitos ligados por regras são processos. Discorrem. Dirigem-se para uma meta. A meta é chamada “significado”. Um pensamento significativo é um pensamento que alcançou sua meta. Pensamentos [50] incompletos são insignificativos. Alcançado o significado, surge pensamento novo. Pensamentos significativos são produtores de pensamentos novos. O significado do pensamento é outro pensamento. Pensamentos sem significado não produzem pensamentos novos. O critério do significado é a capacidade para a produção de pensamentos. Um pensamento significativo pode produzir mais que um pensamento novo.

Quanto mais significativo o pensamento, tanto maior o número de pensamentos novos por ele produzidos. Formam-se, assim, cadeias de pensamentos, chamadas “argumentos”. Estes discorrem, por sua vez, em busca de significado, do qual o significado do pensamento individual é apenas um aspecto subalterno. A soma dos argumentos forma a totalidade do discurso. Este flui, por sua vez, em direção de um significado. Pelo próprio caráter do processo, esse significado é inalcançável. Está ele naquele “eu” e “mundo externo” que eliminamos do nosso argumento. Pelo seu próprio caráter, portanto, é o discurso um processo frustrado. Carece de ulterior significado. Isto não invalida, no entanto, os significados parciais dos pensamentos e dos argumentos. O seu significado está no discurso, e não no além dele. Somente aqueles que não se conformam com essa limitação imposta pelo campo que é o intelecto decaem no antiintelectualismo. No silêncio wittgensteiniano.

A procura de significado é sinônimo de “dúvida”, e a dúvida é portanto o declive do discurso. É a força que propele o discurso. O significado parcial é a superação parcial da dúvida, e o significado total inalcançável é a garantia de ser a dúvida inesgotável. É a garantia da continuidade do discurso. Ao discorrer, propelido pela dúvida, o discurso se ramifica e amplia. O número dos significados parciais alcançados cresce. Podemos portanto resumir o resultado até aqui alcançado: O intelecto é o campo crescente da dúvida em discurso.


Ver online : Vilém Flusser