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TRANSCENDÊNCIA DO MUNDO

Ferreira da Silva (2010:82-85) — corporalidade e animalitas

Para uma etnogonia filosófica

segunda-feira 11 de outubro de 2021

[FERREIRA DA SILVA  , Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 82-85]

“Para uma Etnogonia Filosófica”, Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. 4, fasc. 16, out./dez. 1954, p. 524-527.

O ponto de partida de nossas reflexões encontramo-lo em determinados enunciados da Carta sobre Humanismo de Heidegger. Aí vem dito que a animalitas   do homem, a representação corpórea do nosso ser, é totalmente distinta das unidades biológicas dos seres: “O corpo do homem é algo de essencialmente diverso de um organismo animal”.

Em que consiste essa estranha diferença entre entidades que manifestam analogias tão profundas? O domínio da corporalidade ou da animalitas humana é algo do pro-jetado, de des-ocultado, à semelhança do que ocorre com o ente intramundano. Portanto, esse domínio se funda na ek-sistência como dimensão original projetante-transcendente que permite a patenteação de todo o ente. A esfera sensorial da corporalidade se revela dessa [82] ou daquela maneira, segundo autognosias somáticas divergentes, de acordo com a desocultação ou tipo de abertura a que estamos sujeitos. O ser-assim (so Sein  ) do oferecido corpóreo depende, portanto, do que foi oferecido pelo oferecer original, ou, na linguagem heideggeriana  , da Lichtung   das Seins. [1] É já um dado irrefutável do conhecimento psicossomático, além das variações e divergências raciais.

Para o prosseguimento de nossas reflexões, seria interessante referirmo-nos às Ideias concernentes à metafísica dos organismos vivos, que encontramos no pensamento de Schopenhauer  . Apesar de não aceitarmos a totalidade de sua visão filosófica, consideramos sugestivas certas passagens referentes à objetivação da Vontade. Como sabemos, para Schopenhauer, o corpo animal em geral e o corpo humano, em particular, são estereogramas de centros pulsionais ou ainda a transcrição no mundo da representação da vida da Vontade. Não há dúvidas que sentimos e percebemos o nosso corpo e o corpo do outro como a expressão de um nisus, de uma onda vital que se manifesta nos membros, nos órgãos, e em toda a orografia somática. Entretanto, Schopenhauer procura o fundamento dessa objetivação da vontade em termos de um organismo determinado, uma primeira objetivação pré-corporal do corpo, um corpo em estado fluído, uma Urflussigkeit [2], encontrando-a no sangue (Blut). O sangue seria o símbolo da vida primigenia, do pré-corpo, da Urwille [3], que não só conservaria a vida, através de seu poder nutritivo e vitalizador, como produziría a partir de si os órgãos, sistemas e aparelhos do corpo humano. Portanto, o corpo humano, tal como se manifesta à consciência desperta do homem e ao conhecimento intelectual, é um croquis superficial, uma representação desautorizada do caudaloso “Deus-Rio do [83] sangue” (Rilke  ), da vida pulsional inconsciente que se expressa de maneira parcial no organismo visível.

O que é vivo e o que é morto na concepção schopenhaueriana da objetivação da Vontade? A parte caduca desse pensamento consiste na hipostasiação do ente Vontade, com o correlativo esquecimento do poder desocultante do Ser. Escapou a Schopenhauer que a Vontade é algo de fundado, algo de instituído por um poder patético transcendental  . A parte perdurável de sua instituição está na tradução da experiência do corpo em termos de uma visão simbólico-imaginativa, que transcende o ponto de vista meramente intelectualista e periférico da realidade corporal.

Admitindo-se que a animalitas do homem é um domínio projetado ou iluminado, devemos modificar e completar a concepção heideggeriana   do Ser, para um maior aprofundamento nos fenômenos da ontogenia da corporalidade racial. Referimo-nos a uma possível experiência trópica do Ser, ou do Ser como poder essencialmente trópico. A linguagem do pensamento essencial de Heidegger apoia-se preferencialmente em metáforas de luz e de conhecimento, que não possibilitam um mergulho na zona transcendental pulsional da consciência. Compreendendo, pelo contrário, o fenômeno da abertura projetiva como “fascinação”, como irrupção de um espaço de apetecibilidade, como o ser arrebatado por um campo de forças atrativas, estaremos em condições de elucidar, não só a estrutura ontológica do nosso ser, como também de penetrar nos arcanos do processo mitológico. A desocultação do Ser como fascinação traduz-se, nesse caso, na instituição polimórfica de centros pulsionais, em correspondência com a epifania da presença fascinante-numinosa dos deuses. Os deuses não devem ser pensados como representações teoréticas, como espetáculos de uma fruição intelectual, mas como ocorrências trópicas, como suscitação de marés passionais, cuja essência se esgota nessas aberturas fascinantes. O estatuto humano seria, portanto, o reverso, o Gegenwurf [4], o negativo desse positivo que é a potência passional dos deuses, em suas manifestações epocais variáveis. Endossando a concepção de Frobenius, que vê na estrutura do homem uma capacidade vazia de recepção de atuações, isto é, que considera o homem como um “receptor de realidade”, deveriamos entender a realidade recebida como um ciclo pulsional. A emissão desse complexo de impulsos é obra do Fascinator ou do poder aórgico dos deuses. Vemos, portanto, como se poderia determinar uma relação entre a mitologia e as raças históricas. O processo religioso é algo que cala mais fundo do que poderíamos supor dentro de uma concepção teorético-intelectualista das atividades míticas do homem. O processo religioso é, em sua essência, um propositor de raças, a eclosão de um novo sabor da vida, condicionado por uma nova modalidade do sangue e da expressividade da vida corpórea. Sobre o fundo pré-humano das unidades biológicas erige-se o edifício das culturas históricas, através de uma nova “abertura” pulsional, ou ainda: sobre o em-si das formações biológicas pré-humanas configura-se o ciclo projetivo das culturas etnogênicas. Heidegger tinha razão ao considerar a animalitas do homem fundada na força desocultante do ser, ou na ek-sistência. O peculiar da nossa posição, entretanto, em relação à doutrina da Carta sobre o Humanismo é a determinação do domínio entitativo da animalitas como Vontade, como nexo passional variável segundo o oferecido pela determinação mitológica.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva


[1Clareira, iluminação do ser. Todas as traduções dos termos em alemão deste volume foram feitas por Karleno Bocarro, a quem agradeço muito a colaboração. Isto posto, daqui em diante continuarei agregando Nota do Organizador (N. O.), pois às vezes pode haver necessidade de comentários sobre o termo traduzido e também para deixar marcado que a tradução e a nota não são do próprio VFS. (N. O.).

[2Liquidez primordial. (N. O.)

[3Vontade primeira, primordial. (N. O.)

[4Contrapartida. (N. O.)