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Dialética das Consciências

Ferreira da Silva (2009:27-30) – a ideia

O Andróptero

segunda-feira 26 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

As Ideias se comportam como uma realidade completa em relação à realidade incompleta do mundo, como algo expressado em relação ao infuso e embrionário, como o infinito em relação ao finito.

Encontramos aqui uma verdadeira doutrina da liberdade e da libertação para a alma oprimida do homem. É a doutrina das Ideias que desempenha essa função desopressiva e arejante, comovendo as muralhas da finitude e dilatando o espaço de nosso exercício espiritual. Essas Ideias, historicamente tão famosas, não devem ser compreendidas como noções abstraídas das realidades sensíveis, da maneira pela qual entendemos comumente as nossas noções e conceitos, pois dessa forma não seriam “originais”, mas sim “cópias”; seriam realidades mais singelas, por esquemáticas, e não mais ricas que as coisas sensíveis como o são as “Ideias” platônicas. O conceito é sempre mais deficiente e pobre do que a coisa que conceitua, pois reproduz uma forma sensível, sendo portanto uma simples cópia ou imitação  , enquanto as Ideias não são naturezas derivadas, mas sim Ser original, matrizes absolutas. A Ideia é justamente o contrário de um conceito, que está sempre aquém do sensível, tendo virtudes e propriedades completamente distintas. Enquanto o conceito nos encerra no determinado e no finito, pondo-nos em relação com um dado insuperável, as Ideias nos lançam num processo infinito de perfeição e de plenitude, fazendo-nos ultrapassar todo o imediato. A presença das Ideias é assinalada pela irrupção da possibilidade. Como diz Fuller: “No sentido mais profundo da palavra, todas as Formas continuam a ser princípios morais e a revestir o halo socrático. As Ideias platônicas são ideais e sendo ideais são objetos de adoração. Nada têm de uma produção friamente científica e post mortem   da natureza e do conteúdo da beleza, da santidade e da verdade. Não são um mapa, mas sim um panorama idealizado do universo, pintado com todas as cores dos desejos da alma.”

As Ideias se comportam como uma realidade completa em relação à realidade incompleta do mundo, como algo expressado em relação ao infuso e embrionário, como o infinito em relação ao finito. Exercem, portanto, um papel distensivo e libertador, pois nos facultam a evasão da pura constatação fática e do confinamento dos sentidos e dos conceitos. Apesar de realizadas, imóveis e estáticas, são o princípio de todo o movimento no mundo sensível, estando esse em constante radiação para esses paradigmas insuperáveis do Ser. É essa tensão, essa marcha rumo às constelações infinitas do mundo eidético, esse Eros   cosmogônico, que mantém o universo em existência.

Salvando-nos do extravio dos dados sensíveis, as Ideias nos elevam a um outro domínio já dado e completo. Se o pensamento imediato nos paralisava pela sua insuficiência e incompletude, o pensamento eidético inflige também ao nosso ser um duro sacrifício: o da entrega a uma perfeição que não solicita o nosso consentimento para a sua constituição, exigindo a genuflexão de nossa vontade. O “ser-para-si” das Ideias desdenha qualquer adição do nosso esforço criador e em sua magnificência não necessita de nada ulterior para a sua existência e plenitude. Quando entramos em cena, o drama   do ser já se cumpriu, pois está realizado desde todo o sempre e o nosso único papel seria o de reconhecer, ou não, a legitimidade de sua soberania. O real é uma declaração taxativa, um verbo eterno, do qual o nosso verbo transitório só poderia ser um eco ocioso e inessencial. Fora de sua complexão íntima, tudo é mimese, cópia, mera reprodução. Nessa linha de considerações, o processo criador da história é inteiramente estranho e desconhecido, e a liberdade conferida de início ao homem lhe é sorrateiramente sonegada. A liberdade colide assim com uma nova necessidade, tão imperiosa como a anterior; se a primeira nos alienava, atando-nos à multiplicidade, essa nos põe sob a tutela inexorável de um fatum legal. O real se nos apresenta, dessa maneira, como uma pressuposto e não como uma posição de Ser, como uma instância a ser reconhecida e não como autoposição de sua realidade, como pensamento pensado e não como pensamento pensante. Dessa concepção metafísica derivam as dificuldades que enleiam Platão, quando esse se defronta na República com o problema de explicar por que devem voltar a esse mundo, para desempenhar o seu papel de mentores e governantes, aqueles que fixaram sua morada no templo das Ideias. Compreende-se, pois, perfeitamente a pergunta de Glaucon a Sócrates: “Por que condená-los a uma vida miserável, se eles podem desfrutar de uma vida mais feliz?”. Se a felicidade e o objetivo da vida estão além da história, se o tempo e o curso das coisas humanas não constituem um fator substancial da realidade, por que exigir de quem se elevou a uma ordem superior de existência que se ocupe e se responsabilize pela gestão das sombras? Por que condenar novamente ao cativeiro do solo uma alma que possui asas e que deseja voar? Nesse ponto a argumentação da República não é nada convincente e não pode sê-lo dentro das premissas do platonismo. Toynbee, em seu livro Civilization on trial, classifica o platonismo entre aquelas concepções filosóficas que destituem a história de todo valor próprio, colocando toda tarefa da alma além do mundo fenomênico: On this view, this world is wholly meaningless and evil. The task of the soul in this world is to endure it, to detach itself from it, to get out of it.

Há diversos planos e residências para o espírito, diversas formas de ser que ele pode revestir, mas todos esses invólucros ontológicos se impõem à sua consideração e não fluem de seu poder formativo interno. A alma, nessa peregrinação pelo mundo, apesar de sempre surpresa e arrebatada, nunca sentiria em si o poderoso apelo de suas faculdades de plasmação e livre criação.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva