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Mitologia. História e Mito.

Eudoro de Sousa (MHM:85-86) – «eu» e Absoluto

Catábases, Teogonias e Metamorfoses

domingo 12 de dezembro de 2021

DE SOUSA, Eudoro. Mitologia História e Mito. Lisboa: Imprensa Nacional, 2004, p. 85-86

63. Eloquentíssimo na sua mudez é o facto de tão pouco como nada poder falar da minha subjetividade irredutível, quanto, por consabida necessidade, de Deus não posso falar. Por aqui, não identifico, note-se bem, «eu» e Absoluto; denuncio uma analogia  : para aquém-horizonte, eu não sou nada do que o «mim mesmo» é, pois tenho que negar dele tudo quanto afirmo de «mim». O Absoluto ou Separado é-o, por razões idênticas: Ele não é uma, não é nenhuma de todas as mensagens do além-horizonte, trazidas pelos deuses mensageiros. O Mensageante ainda não é uma, não é nenhuma de todas as mensagens, nem todas elas em conjunto. Nenhum dos deuses é Deus. Se no caminho de aquém para além-horizonte, e no passar de mundo em mundo, «me» perco, «eu» ganhei o jogo, o triplo jogo das cosmogonias, das catábases e das metamorfoses, pois vejo, enfim, quanto e como fui feito à imagem e semelhança de Deus. Vejo que desci aos Infernos, depois de lá ter saído; iniciei-me no caminho de mundo em mundo dos deuses, por vezes, perigosamente suspenso sobre o entremundos; em nenhum deles fiquei, por incontinência de excesso; senti o agridoce antegosto da Morte, em todas as mortes que morri, para bem me aperceber de que tinha de ultrapassar todas as formas que assumi em qualquer dos mundos-mensagens; e de que talvez a Mensagem de todas as mensagens fosse simplesmente esta: «Excede-te! Ao excederes mundos que te dão formas, formas que os mundos te dão, saberás que não és nenhuma das formas e que nenhum dos mundos era o teu. Ficaste sem forma, ficaste sem mundo, só tu ficaste sem ti, diante do que nem Eu sou, pois não me poderás olhar como teu igual. Esperei sem esperar, porque sempre aqui estiveste, mas não poderias sabê-lo se não te enviasses no caminho. E muito importava que o soubesses, pois se ignorasses que estou no aonde chegaste, julgarias haver chegado ao Nada. Pelo caminho aprendeste quantos e quantos nadas de ti por lá ficaram. Eu sou o outro lado do Nada. Vem para o meu lado. Senta-te a meu lado.»

64. Tudo quanto para trás ficou escrito é mitologia, e não quis ser outra coisa. Erraria a minha intenção quem nelas não visse precisamente o que pretendi escrever. Não me censurem pelos erros intencionais, por distorções, por mal-entendidos: todos entram no propósito de me submeter a impulso mítico, criador de mitos. Além disso, no propósito entra o querer aventurar uma atualização daquele impulso, não por versões históricas, psicológicas, antropológicas ou filosóficas dos mitos preteridos, mas [85] tentando mostrar como eles não são pretéritos; que a vida que mereça chamar-se de humana só é vivida na singularidade de cada um dos homens que se entenda como a «incontinência do excesso»; vida que não se viveu somente no outrora, mas a que pode viver-se em todos agoras. Desafortunadamente, não concedemos à época histórica em que vivemos satisfação para a sua mais instada exigência: a de que vivamos com todos os homens, e confirmação da nossa mais relevada afirmação: a de que só podemos viver com todos os homens. Esta mitologia é, pois, a do homem em sua singularidade. É a do «eu», do «tu» e do «ele»; o «nós» refere-se a «eu», a «tu» e a «ele»; o «vós», a «tu» e a «ele», mas «eles» não são personagens desta mitologia. «Eles» estão nos Infernos a que desci, supondo-se eles a caminho do paraíso que nós não procuramos. Perdoem-nos o não acompanhá-los. Bem o podem, porque o número dos que eventualmente me sigam não pesa na balança da massa. Deixem-me ser o que sou, deixem-me viver onde estou. Que sou eu, entre milhares de milhões? Que lhes importa o que mais me importa? Se a tantos nada importa, por que hão-de se importar comigo? Deixem que de mim me importe, que isso não tem importância nenhuma. Uma andorinha não faz verão. De todos os bandos de andorinhas que verão fizeram, se uma faltar, o verão não deixará de ser. Vivam cheios de si mesmos a vida que é de todos; deixem-me que viva a minha até de mim alheado.