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Horizonte e Complementaridade. Sempre o Mesmo acerca do Mesmo.

Eudoro de Sousa (HCSM:214-219) – mitologia, mito, mítico

Uma resposta o segundo questionário de Ordep

sexta-feira 8 de outubro de 2021

[DE SOUSA, Eudoro. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 214-219]

Não que faltem manuais, tratados, dicionários ou enciclopédias especializadas, expondo de maneira mais ou menos resumida ou de modo excessivamente minucioso, o que se deva entender por tal palavra [mitologia]. Mas não há leitor que não perca o pé nesse oceano de erudição (nós o perdemos, lendo o artigo «Zagreus» que W. Fauth escreveu para a REI), ao bem atentar em «histórias» que, no fundo, nada têm a ver umas com as outras. Já vemos algo de significativo na distinção de «mito» e «lenda heróica», embora, nesta, quando os deuses intervém (e quase sempre intervém) mostram alguns traços seus, que não são de importância desdenhável. Em primeiro lugar, decidimo-nos, pois, por apartar os deuses para o lado do mítico, e alguns homens que poderíam demonstrar-se como personagens históricos, para o lado da lenda heróica. Também se fala muito, a propósito tanto de mito, quanto de lenda heróica, de traços que pertenceríam ao «conto popular». Não queremos dizer que não os encontremos, e em considerável profusão. Esses traços interviriam, num e noutra, como emergências folclorísticas; mas, diga-se de passagem que sempre ficamos perplexos diante de afirmações demasiado dogmáticas, ou só de arteiras insinuações de que tal situação ou acontecimento, relatados por poeta ou mitógrafo, é traço característico do conto, pois nada impede, nem sequer a sua lata difusão por toda a literatura popular, oral ou escrita, de nele vermos uma sobrevivência persistente de situações ou acontecimentos, dos quais se perdeu a memória de uma forma sua, originariamente [224] mítica. Depois, deveríamos certificar-nos de que de nada nos servem as tentativas de estabelecer uma cronologia científica, assente na maior ou menor antiguidade dos documentos escritos, pois, no concernente à Grécia, há sempre que não perder de vista a lacunaridade da tradição literária, porque a mesma lacunaridade invalida qualquer argumentação ex silentio e, portanto, só uma vã superstição de cientificidade histórico-filológica pode sustentar que um mito, ou um simples traço seu, testemunhado por algum escritor das épocas helenística e romana, não seja tanto ou mais antigo do que outro que já se lê em Homero   ou Hesíodo  , ou em alguma passagem ou fragmento da lírica ou da tragédia. Uma verdadeira cronologia, muito provavelmente, terá de assentar, neste caso, em critérios internos. E, entre estes, releva-se o de uma gradativa «humanização» de seus personagens, quer no carácter, quer na acção.

Temos, pois, de nos decidir quanto ao que certamente é mito e ao que tão certamente o não é. E se uma decisão parece imprescindível, a nossa será esta: um mito autêntico situa-se na linha, aberta ou fechada, que vai das origens primeiras aos fins últimos. Quer dizer, o mítico move-se entre os dois extremos assinalados, de um lado, pelas teocosmogonias, e de outro lado, pelas escatologias. Mito seria, portanto, um relato sui generis acerca das origens e dos fins do que nós chamamos hoje Homem e Natureza (com tudo o que, a seu tempo, esta contém), incluindo a genealogia dos deuses — de cada um que, a seu modo peculiar, une e desune seres naturais e seres humanos. E já que falamos de deuses, digamos logo, que, no mito, eles se nos afiguram como os nódulos de uma rede   ou de uma teia, que aprisiona tenazmente respostas e perguntas que o homem só havia de enunciar, após ou com o advento da filosofia. Mitologema, ou mitema, é resposta a pergunta que jamais e por ninguém foi feita, e filosofia é pergunta que nunca aceitou qualquer resposta como definitiva. Daí, talvez, que a filosofia surgisse como antagonista da mitologia (não porque fosse seu objectivo aprofundar e perpetuar esse antagonismo), mas, de tal maneira comprometida no furor da luta pela subsistência de seus desiderata, que não se apercebeu de que ia caminhando, até certo ponto, ao lado, e de mãos dadas com o adversário. E o ponto certo está determinado historicamente pelo momento de uma dispersão (da filosofia una, ou da metafísica, ou ainda, da ontologia, em disciplinas, cada uma com seu objecto próprio) que podemos comparar à da luz atravessando um meio refrangente; pelo momento em que, atenta a cada uma das cores, se esqueceu da mesma luz que está nas cores, e sem a qual ninguém as veria. [215]

Mas tudo isto são «aproximações», tentativas de ladear um obstáculo aparentemente irremovível; e este nos parece que seja a crença que bem longe de nós está a idade do mito, tendo-se visto, bem ou mal, que vivemos, há muito, na idade de uma razão soberana. Na verdade, porém, o que se dá é apenas o facto de, a partir de determinada e bem caracterizada época da história, não mais se contarem ou escreverem mitos. Hoje, o mítico é-o, tanto mais, quanto menos nos advertimos de sua existência. E assim, temos de nos resignar somente a uma suspeita da sua persistência, pela acção que, mesmo que inexpressa como tal, ele exerce sobre a maneira de concebermos os laços que unem todas as coisas que nos rodeiam, e sobre o nosso próprio agir sobre elas, ou ainda, sobre o que determina a atracção ou a repulsão que se verifica entre nós e elas. Porque, afinal, o nosso kosmos   não é assim tão alheio ao dos Gregos, não obstante pareça faltar a estes, o que a nós já vai sendo em demasia. O desenvolvimento tecnológico, dialecticamente ligado ao progresso da ciência, é uma explosão da verdade que não chegou a revelar-se inteiramente no mito de Prometeu. O titã de outrora só agora se tornou realmente «titânico», no sentido comum da palavra. Só agora, na terra, se acendem estrelas do céu; só agora o fogo foi verdadeiramente arrebatado das mãos dos deuses. E como todos eles tinham sua face maléfica, oposta a uma face benéfica, assim o novo fogo que se atiçou na terra pode servir para o bem e para o mal, ou, por outras palavras, é um fogo que está para além do bem e do mal, aguardando uma decisão do único ser que se arrogou do poder de decidir acerca de tudo; pelo menos, é isso que o homem se lhe afigura ser: o dono de seu próprio destino, senhor absoluto do universo inteiro, na medida em que cientificamente o conhecendo, tudo pode prever. Quem duvida de que a previdência humana substituiu a providência divina? A diferença entre os Gregos e nós está apenas em que é o Homem o próprio Prometeu; o que não espera que lhe entreguem gratuitamente o fogo roubado por outrem. Mas esta substituição do perpetrador do astucioso latrocínio, pelo antigo receptador, não seria possível sem que seguíssemos as linhas de força do mito judaico do Paraíso Perdido e depois, as do mito cristão do Regresso ao Paraíso. É evidente e, por ora, não nos deteremos aqui. Basta lembrar que no Gênesis o homem incorre na suspeita de se querer igualar a Deus — o que hoje acontece, em se falando de criar, quando apenas se constrói — e que os Evangelhos lhe abriram o caminho que levaria à crença em um senhorio absoluto sobre toda a natureza, o que, pelo menos, tangencia a ideia de que ele já é, ou poderá vir a ser o próprio Deus. [216]

Todas as culturas, ou todas as épocas da Cultura, vivem a vida de um mito — o qual, já o dissemos acima, pode não chegar a revestir-se da forma concreta de um «relato» acerca do que aconteceu no princípio, do que acontece no meio e do que acontecerá no fim — princípio, meio e fim de tudo quanto existe ou de alguns de seus aspectos mais fascinantes, mais angustiantes, mais atractivos ou mais repulsivos, enfim, de tudo o que verdadeiramente acontece. Em todo o caso, uma coisa se pode dizer e di-la-emos, embora só com uma segurança muito íntima: um mito oculto (o que jamais, ou ainda não, assumiu a forma de relato, escrito ou oral) é o que traça as linhas que, em todas as direcções, são percorridas pelo nosso pensar e agir, sem que saibamos que não é «bem» nosso, o plano do traçado. E quando falamos de «mito oculto», imediatamente nos ocorre que ele possa ser o a priori   de todo o apriorístico, daquele que não se constitui apenas da nossa subjectividade, em suas formas de apreensão do sensível e em suas categorias de compreensão do inteligível, mas o que está antes e atrás, ou depois e adiante, de toda a dualidade sujeito-objecto, o que talvez seja o fundamento insondável das mais diversas correlações do subjectivo e do objec-tivo e, portanto, o desvelamento de um ou outro aspecto da Realidade: todo aquele que degrada e invalida o pensar, por exemplo, que um do outro se possam apartar «homem que se esforça por assenhorear-se do mundo» e «mundo que se deixa assenhorear pelo homem» ou «homem submisso à natureza» e «natureza que submete o homem», e assim, respectivamente, a todas as relações de dualidade em irredutível oposição. O mítico desconhece um dualismo radical, quaisquer opostos inconciliáveis; mas nós o reconheceremos sempre que, de longe ou de perto, as eventuais oposições nos apontam a terra ignota onde eles tendem a coincidir numa unidade inimaginável, irrepresentável, impensável e indizível. O mítico indica-nos silenciosamente o silenciar-se de todos os choques e entrechoques da multiplicidade-parcialidade, nessa Unidade-Totalidade que, seja o Real, o Absoluto, o Ser, ou o como quer que o denominemos, é também a mais imperiosa exigência de quem jamais se deteve à beira do caminho, olhando, só com a sede de uma gota de água, para a miragem de uma fonte inexaurível.

Está bem de ver que nestas últimas linhas começa a despontar no horizonte uma distinção que, nas primeiras (ao menos, conscientemente) de modo nenhum estava prevista: a de «mítico» e de «mito». Os mitos viveram outrora; e agora, o mais que se pode dizer é que só uns poucos, muito poucos, sobrevivem. Mas esses são projectos da Realidade — outro modo de referirmo-nos àquelas [217] Fulgurâncias Ofuscantes, àqueles Regimes de Fascinação, a que repetidamente aludimos — mais ou menos duradouros, mais ou menos efêmeros, diversas configurações do acontecer, que assumem, cada um de cada vez, uma forma só, cujo lado de dentro é o homem intramundano, e o lado de fora, o mundo extra-humano. Por conseguinte, perseveramos em entender por «mito» qualquer dos relatos sui generis, que nos vêm, por último da Grécia Antiga (alguns, da Idade Média), com seus correspondentes nas culturas «primitivas» que conseguem sobreviver ao de cima do grande mare motum da Cultura, isto é, as formas concretas, literárias ou pré—literárias, do «mítico». Hoje, nenhum digno representante da nossa civilização conta ou escreve mitos — entenda-se, mitos que já não tenham sido escritos e contados; mas o «mítico», isto é, certo modo de se pensar ou de se exprimir o que se pensa, ou antes, do que se deixa inexpresso por intrínseca debilidade da expressão, não cessa de se revelar e de revelar um pouco do que se possa entender por Realidade ou por outro qualquer termo impróprio para designar o que, de modo nenhum, propriamente se designa; naturalmente, porque todas essas designações correspondem, não ao que dizemos, mas só ao que, querendo dizê-lo, jamais o dissemos, em suma, porque tentamos transpor, por aí, os umbrais do transracional ou o limiar do pré-racional (e esses domínios são vastos e profundos), quer no início do processo de racionalização, usando de premissas indemonstráveis, quer no fim, tirando ilações improváveis. Em ambos os casos, Platão ainda não se coibia de contar um mito, pois vivia numa época em que os poetas lhe davam exemplos quotidianos. Hoje, não o mito, mas só o mítico transparece nos poetas que verdadeiramente o são, tanto nos poetas da palavra, quanto nos das cores, dos volumes e dos sons e, sobretudo, nas religiões, quaisquer que elas sejam. Aliás, já o dissemos, é delas que tão naturalmente, tão espontaneamente, nascem os mitos, quanto as conhecidas formas de vida orgânica por sua vez surgiram da vida cósmica da natureza; o mais difícil é detectá-la num sistema filosófico, embora não duvidemos que o não haja em todos, nem que a construção intelectual deva seu início e seu término a um impulso mítico originário. Nem exceptuamos o que escrevemos nestas páginas, queira—se ou não ver nelas, certo colorido filosófico.

Aqui deparamo-nos com uma dificuldade que talvez provenha mais da «palavra» do que da «coisa»: «mítico» é derivado de «mito» e, apesar disso, pretendemos atribuir-lhe uma universalidade tal, que ele deve abranger tanto o mito propriamente dito, isto é, o mito relatado, quanto aquele que tanto mais o é quanto menos nos [218] apercebermos da sua existência e da sua agência, o que implica, evidentemente, que esse jamais foi relatado ou redigido, e nem sabemos se alguma vez o será. No entanto, o que vem primeiro, historicamente, é o mito: «uma história dos deuses, semideuses, heróis e dos que habitam o Hades», como se lê (aproximadamente) no texto platônico. Trata-se de uma definição pela natureza dos personagens. Dezenas e dezenas de outras vieram depois, resultantes da aplicação de outros critérios. Mas todas nos parecem tão abrangentes, que o vago em que flutuam permite que se chegue a falar de um «mito de Getúlio Vargas»! Quisemos nós, ou, como dissemos, decidimos defini-lo pela presença, em seu teor, de referências explícitas às origens primeiras e aos fins últimos. Os fins podem aparentemente faltar, mas nunca renunciaremos à presença expressa das origens, para reconhecermos o mítico que está no mito e até no que, por tal, se não reconheça.