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Horizonte e Complementaridade

Eudoro de Sousa (HCSM:160-165) – Diálogo com os pré-socráticos

Sempre o mesmo acerca do mesmo

quinta-feira 16 de setembro de 2021

Excertos de DE SOUSA, Eudoro. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 160-165

2.a De acordo com Heidegger, a atividade mais futurosa do pensar de hoje consistiria no reatamento do diálogo com os primeiros filósofos; V. que se empenhou nesta árdua tarefa, a qual pode ser descrita, nos termos do seu livro, como o defrontar-se da filosofia com sua origem e seus confins, diga-nos o que, segundo lhe parece, torna justamente agora oportuno e possível este diálogo. (p. 160)

2.a Para responder à segunda questão, preciso de contar-lhe um mito more platonico. Um dia, no decorrer da evolução animal, surgiu um que, por desgraça sua (hoje, a maioria dirá, antes, «para glória sua»), não nasceu especializado em coisa nenhuma; e, por isso mesmo, se encontrava diante de todas as possibilidades. Durante longa, longa série de séculos permaneceu indeciso; mas, ao abeirar-se o início do que própria ou impropriamente chamamos «história universal», de entre todas elas, ao que parece, escolheu só uma: recusar o mundo que lhe fora dado (lembremos o relato bíblico do Gênesis) e, em vez dele, ou sobre ele, ou, ainda, por meio dele, construir outro que mais e melhor se lhe acomodasse (escrevemos esta última palavra no sentido estritamente etimológico: accomodo significa «ajustar», «adaptar», «conformar»). Doravante a coisa torna-se difícil de expressar em termos de linguagem corrente, pois sendo ou tendo sido assim, não há que fugir à ideia de que «homem» e «mundo» (ou «natureza») moderadamente, desde os primeiros alvores da hominização, freneticamente desde os primeiros séculos da história, explosivamente desde a invenção da ciência física, sempre viveram numa harmonia visível (mais uma vez: «harmonia» figura aqui, com a significação do seu étimo, o grego harmózo que também quer dizer «adaptar», «ajustar»), na medida em que podemos supor que ele se ia criando enquanto e na forma como criava o seu mundo, ou, equivalentemente, criava o mundo, o seu mundo, enquanto e na forma como e em que ele mesmo se ia criando. Agora não é fácil retrair-nos ao salto especulativo que consiste em supor a existência de um Desvelante, que não é o homem nem o mundo, mas que, em cada época da história, faz que o homem esteja para o mundo, como o mundo está para o homem, e vice-versa. Tudo isto se diria numa única proposição, falando à maneira de Vicente Ferreira da Silva  : «homem» e «mundo» comparticipam no mesmo projeto do Ser. E o que se projeta simultaneamente, consubstancialmente, é o homo faber, vivendo cada vez mais complacentemente, mais intensamente, mais ardorosamente no mundo ab hominae fabricatus, e cada vez mais ansioso pela total exaustão do processo que terminaria ou terminará na insuperável harmonia do homem convivendo consigo próprio, mesmo nos breves instantes em que julga viver no seio da natureza. O «aórgico», termo que o citado filósofo brasileiro pediu de empréstimo — se não erramos — a Hölderlin, para designar o «não feito pelo homem», vai diminuindo assustadoramente, ou, pelo menos, assustadoramente vai aumentando a possibilidade de uma total devastação (por aquela bomba nuclear que, no dizer de Heidegger, teria começado a explodir no século XVII?). Seja como for, o homem corre o risco de conviver consigo mesmo, solitário, na casa onde decidiu morar, a casa que edificou por suas mãos, e creio não errar muito, dizendo que o mundo só é o lado de fora do homem e o homem, o lado de dentro do mundo. A história caminha nesta direção, não obstante as crises que atravessou… Somente… somente, se esta é a estrada real da razão, acontece que, a cada dia que passa, mais e mais são os que desertam da casa paterna e fogem pelas bermas da estrada ao encontro do que nem eles sabem. Sabem apenas que morrerão (ou antes, acabarão, sem morrer a sua morte) se não fugirem. Acontece até que nos países mais decididos a prosseguir e mais bem sucedidos no processo de «desenvolvimento», muitos perdem a razão e investem às cegas, como rinocerontes enraivecidos, contra tudo e todos, talvez porque, saibam-no ou não, querem e só querem o nada. Aquilo a que se dá o nome de «sociedade» tem todos os motivos para tentar reprimir a força da maré. Mas há que compreender: querer o nada é um querer voltar às origens, àquelas, precisamente, a que alude Parmênides, quando define o Ser-Verdade só por via da negação. Daí, como surpreendermo-nos de que, segundo Heidegger, «a atividade mais futurosa do pensar de hoje consistiria no reatamento do diálogo com os primeiros filósofos»? E, por conseguinte, que ele «se torne justamente agora oportuno e possível»? Não será, esta, uma verdadeira revolução, precisamente um regresso por via circular ao primitivo e originário, em que a razão do hominídeo voltando a defrontar-se com todas as possibilidades (daquelas mesmas de que um dia desdenhou) pode recriar-se e revivescer o mundo de uma forma que, infelizmente, ainda não podemos vislumbrar? (p. 163-165)