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Horizonte e Complementaridade

Eudoro de Sousa (HCSM:125-142) – Heráclito

Ensaio sobre a relação entre mito e metafísica, nos primeiros filósofos gregos

domingo 10 de outubro de 2021

[Eudoro de Sousa  . Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 125-142]

72. Deixamos Heráclito   para o fim, por duas razões que, de algum modo, sem sabermos por ora quais sejam, devem andar estreitamente correlacionadas. A primeira é que o filósofo não tem lugar na «história» da filosofia grega, se por tal entendemos o desenvolvimento do que se chama «filosofia», em qualquer direcção bem definida a partir de problemas enunciados, de Tales de Mileto a Proclo de Atenas, isto é, do primeiro dos pré-socráticos ao último dos neoplatónicos. Heráclito não pode ser posto depois de qualquer um e antes de qualquer outro, por intrínseca necessidade de uma evolução do pensamento, seja qual for a ideia que se proponha como propulsora de uma evolução. Se, ainda hoje, compêndios e tratados de história da filosofia lhe designam um lugar que, com raríssimas excepções, é o da imediata precedência a Parmênides  , o facto se deve, certamente, à parcialidade de um mal-entendido, voluntário ou involuntário. E a segunda é que o «obscuro» Heráclito permanece na obscuridade e ainda não vemos que luz possa esclarecê-lo. Ao que nos parece, os estudos mais recentes só penetram até o ponto, do qual bem se avista o que ele jamais pensou. Damos, por flagrante exemplo, a obra de Kirk (1954), mostrando com perfeita clareza o lugar e o tempo de onde arranca o erro de interpretação que viciou a história. Não há certeza mais certa do que esta: a «fluência» de todas as coisas não é a primeira nem a última palavra de Heráclito; nem sequer é palavra que alguma vez tenha designado o quer que Heráclito tenha por verdade a realidade: o panta   rhei é um dos maiores ludibrios da história. A seguir vem a «dialéctica». Também não se vê o que possa ter iludido Hegel  , a ponto de proclamar que todos os fragmentos de Heráclito foram incorporados na sua Lógica, o que, evidentemente, quer dizer que, por pouco, Heráclito falhara o alvo que ele se propôs atingir. «Fluência» da realidade e «dialéctica» dos contrários, uma em grau maior outra em grau menor, mais obscurecem a obscuridade do «obscuro» filósofo de Éfeso. Para Heráclito, o lugar predilecto da história é o do adversário inominado, a quem Parmênides se oporia expressis verbis, no frg. 6. Porém, o mais que desses versos se infere é que eles poderiam referir-se a Heráclito (Mansfeld, cap. i) se demonstrável fosse, mediante provas internas ou externas, que Heráclito cronologicamente precedeu Parmênides, e, ainda, que Parmênides tivesse conhecimento da obra de Heráclito. Mas «a data de Heráclito tem de assentar em mera conjectura, e sua cronologia relativa, em provas internas, valham o que valerem tais provas. Na história da filosofia clássica, poucas fantasias têm tão picante ironia, quanto a ainda demasiado frequente confiança em provas externas, para datar Parmênides após Heráclito» (Stokes, 1971, p. 109). E quanto a provas internas: «pode dizer-se, por exemplo, que, se Parmênides conhecia a obra de Heráclito, seria possível, talvez mesmo provável, que Parmênides tinha Heráclito em mente, como principal representante de alguma das concepções que rejeita. Restam-nos algumas ‘reminiscências’ verbais, cujo efeito, se algum têm, há-de ser, evidentemente, considerado como acumulativo. Se há filólogos que prefiram decidir-se pelo efeito acumulativo, pouco ou nada se poderá fazer no sentido de que mudem de opinião  . Mas o efeito acumulativo de ‘nadas’ é coisas nenhuma, e pode legitimamente duvidar-se que alguma das alegadas reminiscências tenham qualquer efeito; seria excessivamente difícil especificar uma só passagem de Parmênides que necessite a postulação de uma referência a Heráclito, para torná-la inteligível ou evidente. Se Parmênides e Heráclito têm em comum alguns elementos vocabulares, isso nada prova; ambos eram gregos, ambos, pelo menos no essencial, escreveram em dialecto jónico, e eram próximos contemporâneos. Não posso achar qualquer razão para supor que qualquer um tivesse conhecimento do outro» (ibid., pp. 126-127).


Parmênides

73. Todas estas investigações (acrescente-se às duas obras citadas: Hölscher, pp. 161-165), cujo resultado negativo, quanto à ordem de sucessão tradicional, ainda não baixou ao nível do compêndio e, portanto, não saiu do restrito âmbito da bibliografia especializada, têm como ponto de partida a escandalosa inversão das posições de Heráclito e Parmênides, proposta por K. Reinhardt, em 1916: «não deviam os contrários ser descobertos como contrários, sentidos e ensinados como algo que se acha em contradição consigo mesmo, antes que a descoberta da respectiva unidade pudesse efec-tivar-se como uma nova revelação?» (Reinhardt, p. 220.) Por muito logicamente que a hipótese se apresentasse — e se apresente, agora, levando em conta o modo como Schwabl (com o acordo expresso de Mansfeld) interpreta a relação da «Verdade» com a «Doxa», no poema de Parmênides (cf. supra § 54) —, o certo é que ela ainda encontra menos apoio nos testemunhos tradicionais, do que a mais geralmente aceite: Heráclito não menciona, nem uma só vez, o nome de Parmênides. É óbvio: supondo que a interpretação de Schwabl acerta no essencial da doutrina do Eleata, o Efésio podia ter manifestado o seu acordo, precisamente pela ausência de qualquer menção da sua obra. Exceptuado Hermodoro (frg. 121), que, fosse quem fosse, certamente não era filósofo, os nomes que Heráclito refere são sempre os daqueles a quem ele se opõe (Hesíodo  : frgs. 40, 57,106; Pitágoras: frgs. 40 e 81; Xenófanes: frg. 40; Hecateu: frg. 40; Homero   e Arquíloco: frg. 41). Mas, a não ser por amor a uma continuidade histórica, que, a bem dizer, não exige que o mesmo problema passe de pensador a pensador, como que em corrida de estafetas, escusamos de insistir sobre a questão de precedências e influências. Heráclito pode estar muito mais próximo de Parmênides do que vulgarmente se julga, sem que, por isso, haja a necessidade de admitir que um tivesse lido a obra do outro. A aproximação, que tão naturalmente se insinua por meio daquela ideia de que o Ser, na «Via da Verdade», é a unidade das contrárias potências cosmogónicas (Luz e Noite), que intervêm na «Opinião dos Mortais», reencontramo-la, sem que houvesse o propósito de achá-la, num dos mais interessentes momentos de um seminário sobre Heráclito, dirigido por Eugen Fink  , com a participação de Heidegger (Fink, 1973). Vale a pena, ou antes vale o prazer, reproduzir o que se disse, nesse seminário, a propósito do frg. 57 (pp. 64 e segs.): «(Fink:) Do frg. 6, passamos ao frg. 57 […]. A tradução de Diels diz: ‘Mas mestre do maior número é Hesíodo. Julgam que foi o mais sábio dos homens — eles que, no entanto, não conheciam a noite nem o dia. Pois são uma e a mesma coisa!’ Em que consiste este saber que se atribui a Hesíodo? Em que sentido não reconheceu ele o dia e a noite, ele, que escreveu sobre os trabalhos e os dias? Dia e noite são estados alternantes do país do sol, em que se faz claro e escuro, numa mutação rítmica. […] A locução mais difícil (no fragmento) é: ésti gàr hén   (‘pois é um’). Se o dia e a noite devem perfazer um, não deveria estar no lugar do singular ésti (‘é’) o plural eisí (‘são’)? O sentido visado aqui é a in-diferença do dia e da noite, ou algo completamente diverso, que de modo algum aparece ao primeiro relance? Perguntamos: será que o frg. 57, entendido a partir do hén (‘um’), contém um enunciado sobre o dia e a noite? Estão, o dia e a noite, no hén, ou são eles o hén ? Hesíodo é manifestamente aquele que melhor compreendeu o dia e a noite, e, no entanto, Heráclito o censura, por considerar dia e noite como duas coisas. Em sua Teogonia, a oposição do dia e da noite significa algo diverso da simples oposição de dois estados do espaço transparente, no qual a luz pode estar presente ou ausente […]. Aqui desenha-se um plano que atravessa o todo como conjunto e que se fecha, para Heráclito, na harmonia, mesmo se esta é mais invisível do que manifesta. Neste sentido é que se poder ler o ésti gàr hén. O dia e a noite não constituem uma diferença qualquer, mas a forma originária da diferença. Em Parmênides, também a oposição do dia e da noite desempenham um papel (‘pois convieram em dar nome a duas formas’), pelo menos, na opinião dos mortais. Compreendo o estí gàr hén no sentido de que o dia e a noite perfazem um, no hén, não devia estar eisí (‘são’) no lugar de ésti (‘é’)? Será que do ponto de vista da linguagem, só um plural é possível aqui? Para mim, a questão é a de saber se não se deve, em lugar de o dia e a noite são um hén, ou antes, estão no hén, ler: há o hén. Neste caso, a coincidência do diferente receberia outro significado. Hesíodo sabia tudo; mas não sabia, do hén, que ele é. Pois há o hén. Lido deste modo, o hén não é predicativo, mas o sujeito da frase. (Heidegger:) Logo, o estí gàr hén tem de ser considerado absolutamente; considerá-lo de outra maneira e entender que Hesíodo não reconheceu o dia e a noite seria uma impertinência. (Fink:) Quando Heráclito diz que Hesíodo não reconheceu o dia e a noite trata-se de uma frase intencionalmente provocadora.»

Os Opostos

74. O frg. 57 presta-se, efectivamente, mais do que qualquer outro, a traçar uma linha que passa pelos três pontos assinalados pelos nomes de Hesíodo, Parmênides e Heráclito. A argumentação de Fink, com a qual Heidegger concorda, tanto aproxima Heráclito de Parmênides, quanto os afasta de Hesíodo. Também é certo que, antes de Parmênides, ninguém podia ter dito «o Um é» ou «há o Um» ou «o Um existe»; temos, contudo, nossas dúvidas de que Hesíodo o não soubesse. Boas razões assistem a Fink para dizer, como o diz no final da citação: da parte de Heráclito «trata-se de uma frase intencionalmente provocadora». Hesíodo sabia, não só o que são o dia e a noite («em sua Teogonia, a oposição do dia e da noite significa algo diverso da simples oposição de dois estados do espaço transparente, no qual a luz pode estar presente ou ausente»), mas também que existe o Um. Dá-se, porém o facto de que, na codificação mítica, tal saber não se expressa do modo como se expressará na codificação lógica: à cifra «Um» da filosofia corresponde, na mitologia hesiódica, a cifra «Noite», mais próxima, ou a cifra «Caos», mais distante, mas ambos situados além do horizonte; e a «provocação» de Heráclito tem seus motivos, ou na incompreensão, que é possível, ou, bem mais provavelmente, em sua orgulhosa convicção de que no logos   recém-descoberto maior é a transparência à luz da verdade que, porventura, possa caber ao mythos  . E agora, se traduzirmos o fragmento, com o sentido posto na interpretação de Fink, teremos: «Mas, mestre do maior número é Hesíodo. Julgam que foi o mais sábio dos homens — ele que, no entanto, não conhecia nem a noite nem o dia. Pois o Um é (há ou existe).» E Fink pergunta: «Será que o frg. 57, entendido a partir do hén, contém um enunciado sobre o dia e a noite?» Duas respostas hipotéticas são substituídas por uma dupla interrogação: «estão, o dia e a noite, no hén, ou são eles o hén?», que nos convida a negar que o dia e a noite sejam o hén, ou nele estejam. Mas, é claro, que em toda a citação acima referida, nunca transparece, nem podia transparecer uma dúvida de que, efectivamente, o fragmento contém um enunciado sobre o dia e a noite. O pensamento de Heráclito podia rejeitar que ele se resolva tão simplesmente de forma que o dia e a noite «são» o hén ou «estão» no hén; no entanto, a existência ou a essência do Um, de algum modo terá de correlacionar-se com a verdade ou a não verdade de um conhecimento do que é a noite e o dia. Na interpretação de Schwabl, Parmênides teria visto essa correlação do modo seguinte: por convenção, duas formas (Luz e Noite) tomam o lugar da forma única, por natureza, que é o Um-Ser, e o erro dos mortais consiste de pensar que esta não é necessária; e poder-se-ia subentender: não é necessária para que se entenda o que sejam as duas contrárias formas, por convenção, proposta em vista de compreender o mundo, tal como ele nos aparece. A «Doxa» de Parmênides prossegue no sentido de demonstrar que a tal necessidade se torna patente, pelo menos na exclusão do nada, que é comum à «Via da Verdade» e à «Opinião dos Mortais». Heráclito concorda com Parmênides, quando afirma que o Um é (há ou existe); mas, por tudo o que nos dizem, ou nos parecem dizer, os demais fragmentos, discorda de Parmênides, quanto à convencionalidade dos contrários. Portanto, se há uma linha que, mediante a convencional da doxa, une Platão   a Parmênides, a mesma linha se romperia no ponto em que quiséssemos fixar o sistema de Heráclito.

Sono/Vigília

75. Por acaso não é que, de tantos fragmentos citados a propósito e a despropósito, grande número nos fale dos contrários. E embora se saiba que o «contrário», nos diversos fragmentos, se diz de vários modos (v. análise, em Kirk e Raven), e ainda permanece certo que, de qualquer modo que se diga, é sempre a polaridade, ou a oposição dos contrários, o que Heráclito tem em mente. No «contrário» vem à fala a mais extremada forma do «diverso», e a pluralidade, em Heráclito, organiza-se em pares de contrários, cada um dos quais, mesmo sem sair do sensível, vemos que são uma coisa só — basta atentarmos no LOGOS, que talvez não seja senão o próprio discurso, mediante o qual, o filósofo demonstra, como demonstrar se pode, a mesma coincidência dos contrários. Post factum ou post dictum torna-se grato exercício para o estudioso, tentar descobrir como teria Heráclito chegado à conclusão de que os contrários coincidem. Mas, desde o frg. 1, o filósofo nos adverte de que a descoberta, afinal, resulta do que poderia considerar-se como autêntica «conversão». É o que procuraremos mostrar, na imediata sequência, antes de prosseguirmos até um final que não poderá ser mais do que a formulação de outra hipótese, entre tantas que de hipóteses não passam, pretendam ou não desvendar, de uma vez, a secretíssima intenção do «obscuro» filósofo de Éfeso. Eis uma tradução do frg. 1: «Este logos, sendo (como o enuncio), sempre o não entendem os homens, quer antes de o haverem escutado, quer após o terem ouvido. Pois, ainda que tudo suceda em conformidade com este logos, inexpertos parecem, mesmo que experimentem palavras e acções, tal como eu as exponho, distinguindo a natureza de cada uma delas e explicando-a tal qual é. Os demais homens, porém, tão pouco sabem o que fazem despertos, quão pouco se lembram de que fizeram dormindo.» O que impressiona, na última frase, se cotejarmos este fragmento com alguns outros (21, 26, 63, 72, 73, 75, 88 e 89) é que a imagem do sono e da vigília deve ter exercido no pensamento de Heráclito certa obsessão fascinante; de contrário, dificilmente se explicaria que a encontrássemos nas primeiras linhas, se aceitamos — e nada se opõe a que a aceitemos — a opinião tradicional de que, no teor do frg. 1, possuímos os primeiros períodos, ou o primeiro aforismo, do livro que se lhe atribui. A ideia é esta: entre mim, que escrevi e conheço o logos, e os outros, que o desconhecem, tenham ou não o tenham lido ou escutado, é que eles tão pouco sabem o que fazem despertos, quão pouco se lembram do que fizeram dormindo. Se há uma oposição e um contraste entre o sono e a vigília, a gradação é tão diminuta, que mal se apercebe, pelo menos nos que não sabem nem querem saber. E repare-se que tais homens não são exclusivamente os da massa despreocupada do saber; entre esses, também há os que a muita ciência não ensinou a serem inteligentes (frg. 40), os que não compreendendo o que se lhes depara, nem o reconhecendo depois de o aprenderem (frg. 17), muito menos se acham à altura de entender a sua mensagem originalíssima. Do sono à vigília comum, vai um mínimo de gradação qualitativa. Despertos, agem e falam como dormentes (frg. 73), isto é, operam e cooperam, sem participação lúcida e consciente, com o que sucede no mundo (frg. 75). Tão insignificante é a gradação do sono à vigília, na vida mental do comum dos homens, que «morte» é o que veem despertos, e «sono» o que veem dormindo (frg. 21): com efeito, pouco há que distinguir entre os dois gémeos mito-poéticos, o Sono e a Morte. Mas, por outro lado, há uma vigília diferente, os que têm um Cosmo comum a todos (frg. 89), a dos vigilantes que se erguem diante de não sabemos quem, para serem os guardiães dos vivos e dos mortos (frg. 63). É possível que este último fragmento pertencesse a um contexto escatológico como pretende o autor que o cita. Não importa. O caso é que nos encontramos diante de duas vigílias, das quais só uma não é como que o outro lado do sono. Esta é a que Heráclito reivindica para si; a outra é a da multidão…

Harmonia

76. O pensamento arcaico dos Gregos conforma-se a alguns esquemas, facto por muitos estudiosos pressentido, mas que a bem poucos foi dado exprimir em sua iluminante concreção. Entre estes, foi Hermann Frankel quem logrou denunciar em Heráclito o sugestivo processo do meio proporcional. Os frgs. 82 e 83, que, infelizmente, são livre trasladação dos originais do filósofo, constituem-se como mais claro exemplo do mencionado esquema: (82) «Homem, tu ignoras aquelas palavras de Heráclito, que o mais belo dos símios é horrendo, comparado com o género humano e, como diz o sábio Hípias, a mais bela das marmitas é feia, comparada com a estirpe das donzelas?»; (83) «Que dizes, Sócrates  ? As donzelas, comparadas com os deuses, não estarão no caso das marmitas comparadas com as donzelas? Não pareceria feia a mais bela das virgens? Não afirma o próprio Heráclito, que tu invocas: o mais sábio dos homens, comparado com deus, parece um símio, em sabedoria, beleza e tudo o mais?» A norma é evidente (a:b = c:d): o símio está para o homem, como o homem está para Deus; a mais perfeita das marmitas está para a mais bela das virgens, como a mais bela das virgens está para a excelência da divindade. O processo encontra-se completa ou incompletamente formulado, plenamente expresso ou apenas sugerido, em muitos outros fragmentos. Podemos revertê-lo para o frg. 1: o dormente está para o vigilante, como o vigilante está para x. E que é este x, senão o homem que desperta para uma vigília tal que, comparada com ela, a vigília comum é sono? A vocação do filósofo manifesta-se, pois, como apelo a uma Vigília, como um toque de despertar do sono que os mais prosseguem dormindo, ainda que se julguem despertos. «A vida é sonho», nem literariamente, isto é, nem mesmo desvestida das insígnias da transcendência que lhe impôs o poeta espanhol, é uma verdade banal. Se o que dorme, vive no mundo que só ele sonha, e está voltado só para um, que é o seu próprio mundo sonhado (frg. 89), também os que todo o dia despertam para a vigília comum, percorrem sonambulicamente as sendas que cruzam e se entrecruzam no mesmo horizonte da cultura que receberam e que os recebeu. Na verdade, mesmo despertos, agem e falam como dormentes (frg. 73). Mas a relação sono-vigília, mesmo na vulgar imanência do fisiológico, tem um sentido: e esse, de algum modo se transfere para a segunda relação, vigília-x. Só que o primeiro sentido passa, agora, quase despercebidamente, do plano da imanência para o da transcendência. Da vigília comum, que nem tanto difere do sono, passa-se a uma Vigilância, à qual se acede por um autêntico salto para o transcendente. Chame-se-lhe — se algo é preciso chamar-lhe — uma transcendentização do horizonte próximo. Diga-se — se em algum dito se encontra apoio — que a grande Vigilância do filósofo tem o LOGOS por descrição do horizonte extremo. Mas o fundamental é compreender que o símbolo de igualdade, só verdadeiramente o é, na proporção a:b - b:c; pois na forma operacional-metafísica, de Heráclito, é mais a sugestão, o convite instante para superar a minorada gradação sono-vigília, por meio da «acrobacia» espiritual, em que uma vez se viu, como ver se pode, a real in-diferença do sono e da vigília. É neste ponto que muito naturalmente se poderia inserir toda a problemática atinente à obscuridade da expressão filosófica em Heráclito. A transcendência não tem linguagem que propriamente a exprima. Depois do quanto se escreveu acerca do LOGOS heraclitiano, que ficamos nós sabendo, que se possa expressar por palavras inequívocas, sem ambiguidade que nos deixe irremediavelmente perplexos, enrodilhados e empecidos em questões insolutas e insolúveis? Que é o LOGOS? O próprio discorrer do filósofo, a expressão verbal em que se distingue a natureza de cada uma das coisas, expondo-a tal qual é (frg. 1)? Ou o que faz que tudo venha a ser o que na verdade é, segundo uma lei que o filósofo não formula directamente em nenhum dos fragmentos que restam de sua obra? Não cremos que haja ou jamais tenha havido alguém que, tendo alguma coisa a dizer, e bem quisesse dizê-la, de propósito, oculto ou declarada, obscuramente a dissesse. Heráclito é o «obscuro»; não mais, todavia, do que qualquer outro que o inviso tenha visto e o inaudito tenha ouvido. A transcendentização da experiência comum tem seu preço, que não é módico: paga-se pela troca inevitável da «expressão» pela «codificação», pelo câmbio indesejado das «coisas» que as palavras designam sem ambiguidade, por «símbolos», de que indefinidamente se fala, sem nunca lograr a exacta expressão do que se pretende dizer. Assim é que no horizonte da grande Vigília avultam as cifras dos «opostos», do «fogo», do «prélio», e talvez até a do «logos», todas conjugadas na mesma codificação. Aliás, da impossibilidade de falar e da necessidade de não calar, testemunha o próprio filósofo, propondo-se orgulhosamente na sede do Oráculo: «O Soberano de Delfos não diz nem cala: dá sinais» (frg. 93).

Meio

77. Depois deste rodeio necessário e inevitável, tendente a demonstrar que a descoberta da coincidência dos contrários pressupõe uma «conversão», reverso ou recôncavo sujectivo de uma «revelação» — prossigamos falando deles, com o sentido sempre posto no frg. 57, em que vimos alinharem-se, de algum modo, Hesíodo, Parmênides e Heráclito. Entre Parmênides e Heráclito, assinalamos uma concordância e uma discordância; nesta tem de residir a diferença específica — a que não consente que Heráclito entre assim tão facilmente na história da filosofia grega, como qualquer filósofo que de outro recebe um problema, para transmiti-lo ao que se lhe segue. O Efésio não vê, como o viu Parmênides e, talvez, como o verá Platão, que a diversidade do sensível se deva a alguma espécie de convenção. Toda a realidade e verdade do mundo em que vivemos, se firma e se confirma na tensão e na harmonia dos contrários, múltiplos pares de diversidades extremadas em contraposição polares, infinito número de polaridades. A diversidade, assim entendida, não é aparente, ilusória, convencional: não é aparência, mas aparição da physis  . E verdade que, desta, Heráclito diz que ela ama, ou prefere, esconder-se (frg. 123) e também que há uma harmonia invisível, que supera a visível (frg. 54). E aqui começamos a entrever qual seja o lugar do Um, e como se relaciona ele com os contrários, dia e noite. O frg. 57 afigura-se-nos tanto mais importante, quanto mais certo parece que a interpretação de Fink não exclui a de Diels, o que, em suma, não surpreende, pois a ambiguidade das cifras dir-se-ia que é de regra na codificação heraclítica da realidade. Com os olhos postos na harmonia visível, dia e noite — entenda-se, este, como um entre quaisquer pares de contrários, ou como o par arquetípico de todas as polaridades — é uma e a mesma coisa (note-se que a gramática, ao invés do que Fink parece supor, não elimina a ambiguidade). Mas não esqueçamos a harmonia invisível: a todos as polaridades em conjunto, cada uma das quais é «um», opõe-se a unidade de todas — «pois o Um é (há ou existe)». E que a physis ame ou prefira ocultar-se, não significa que não se desoculta, enquanto se vai ocultando. Desocultação na ocultação, ou ocultação na desocultação, é própria tanto das coisas de que Heráclito fala, quanto do heraclítico falar das coisas; daí a alusão ao Oráculo, «que dá sinais» (frg. 93). Os sinais, o figurado, o enigmático, no estilo do filósofo, não é questão de forma literária, pela qual Heráclito optasse, como poderia ter optado por outra: o visível está aí, diante dele, como sinal da aparição do invisível, e ao sinal-coisa só pode corresponder a palavra-sinal. Mais do que para qualquer outro, em Heráclito se mostra a identidade de «o que é dizer» com o «dizer o que é» pois nele, não é apenas o «material» que está em jogo, mas também o «formal  ». Na forma de dizer reflecte-se a forma do ser. E voltando, mais uma vez, ao frg. 57: que houvesse o Um, sabia-o Hesíodo, embora, como vimos, não soubesse dizê-lo como Parmênides e Heráclito o diriam; mas saberia ele que dia e noite, sendo um, na polaridade de tudo quanto é diverso, esse um era sinal da invisível harmonia, a que ele mesmo aludira pela cifra da «Noite» ou do «Caos»?

Fogo

78. O «fogo» é uma das cifras mais importantes e significativas, na codificação heraclitiana da realidade e, por isso mesmo, das mais equívocas. Quem poderá agaloar-se por alguma vez ter enunciado um juízo acerca do fogo, em que se declarasse sem ambiguidade o que ele é, nos diversos contextos de tão numerosos fragmentos que o referem ou que a ele se referem? Em Heráclito, o fogo anda ligado ao universo como um todo, à alma e à morte, ou ainda, a uma parte do universo, na figura do Sol ou do raio. Não importa por onde comecemos; mas seja pelo frg. 30, que diz assim: «Este Cosmo (arranjo ou ordenação do universo), o mesmo de (para) todos (os homens? os homens e os deuses?), nem (o) fez qualquer um dos deuses ou qualquer um dos homens, mas sempre era (foi) e é e será (um) fogo vivendo continuamente (eterno), alumiando-se por medidas e por medidas se apagando.» O fragmento seguinte (31) fala das tropai do fogo — e não há razão para supor que este não seja o mesmo fogo do fragmento anterior (Snell reuniu os dois, em um só); o que tropai (plural; sing. trope) o mais verosimilmente significa é «transmutação», «mutação no oposto (contrário)» — «viragem», mediante a qual uma coisa que nos aparece de um modo, vem a aparecer-nos do modo contrário, ou como o contrário. Em suma, trope é a palavra-chave, designando pelo menos uma das maneiras como vemos que os contrários coincidem. Guardemos esta observação semântica até o momento de inquirir o sentido do frg. 30. Repare-se, por ora, que numa parte deste fragmento está contida a totalidade de outro, o frg. 89: «os que vigiam têm um cosmo comum a todos», — portanto, é à compreensão do vigilante, para o qual a vigília comum é como o sono (cf. §§ 75 e 76), que se dirigem as palavras do frg. 30; consequência, ainda, é que provavelmente tenhamos que optar pela lectio-difficilior. A significação que parece óbvia é esta: o fogo representa o Um — a unidade do múltiplo, arranjado (kosmos  !), como sabemos, em pares de contrários, cada um dos quais, sendo «um», constituem, todos em conjunto, a visível harmonia, que a invisível supera. O fogo seria pois o Um e a Harmonia invisível, da visível harmonia do universo. Mas, de encontro à interpretação óbvia, erguem-se dificuldades que não são poucas nem de pouca monta. Sem sair do teor do fragmento, depara-se-nos um fogo que, sendo eterno, se alumia e se apaga. Como se há-de entender que «continuamente vivo» (aeizoon) seja um fogo sujeito à alternância do alumiar-se e do apagar-se? Não morrerá ele, quando se apaga? E não reviverá, quando se alumia? Manifestamente, o aei («sempre», «continuamente») não condiz com a descontinuidade marcada pelos momentos de extinção. O contraditório aparente, resolver-se-ia por método semelhante ao que Fink usou na interpretação do frg. 57? Neste caso, haveria que absolver do período, aquela parte em que se diz: «mas sempre era (foi) e é e será (um) fogo vivendo continuamente», pois fogo apagado é fogo morto. E então ficariamos diante de um apagar-se e de um iluminar-se, que não se diz do fogo, mas do universo. Tem sentido: no tempo em que o universo dura, pode suceder-se um e outro «arranjo» (kosmos) e nada impede que do surgir de cada um se diga «alumiar-se»: no mundo, de um alumiar-se, surge, uma vez e outra, um e outro arranjo da multiplicidade que o constitui, e «alumiar» e «apagar» seriam verbos sugeridos pela cifra do Um, o «fogo», sem implicar a contradição com o «continuamente vivo». Esta lição, mais difícil, poderia ser a mais verdadeira. Mas temos de levar em conta as tropaí do fragmento seguinte. Por aí se vê que o fogo não pode ser tão simplesmente posto ao lado do Um — se este tem de se opor, solitário, além do extremo horizonte, ao mundo que está para aquém. Com efeito, no frg. 31, o fogo «vira» mar, do qual metade virá a ser terra e metade «turbilhão ígneo» (prester), isto é, a «viragem» indica que o fogo e o mundo se constituem em outro par de contrários, em outra polaridade, como eram, por exemplo, o dia e a noite do frg. 57. A ambiguidade das cifras subsiste. Tal como o frg. 57, também o frg. 30 (com o frg. 31) pode ser lido de duas maneiras: ou o fogo representa o Um, como «continuamente vivo», diante de um cíclico alumiar-se e apagar-se de sucessivos kosmoi, ou o Um é absorvido na unidade dos contrários que são o fogo e o mundo. No primeiro caso, a cifra «fogo» aponta para a transcendência; no segundo, para a imanência.

79. O fogo, em Heráclito, não é uma cifra da codificação filosófica da «natureza»; pelo menos, não o é, exclusivamente: encontramo-lo em fragmentos que nos falam da morte e da alma. O fogo e a morte, com o sono e a vigília, constam do frg. 26, um dos mais exacerbadamente discutidos, e que trasladamos, primeiro, a) na forma como o traduziu Bruno Snell (1949), e depois, b), segundo Jean Bollack (1972), para que o leitor possa fazer uma ideia das enormes perplexidades da exegese: a) «O homem, de noite, acende (por contacto) uma luz, quando seus olhos se apagaram. Vivendo, no sono toca no morto (no sono, ele é, por assim dizer, um morto aceso), vigilante, toca no dormente (é um dormente aceso)», b) «O homem toca a luz na noite, quando morreu para si, a vista extinta; mas, vivente, toca no morto, quando dorme, a vista extinta; toca no dormente, quando vigia». Diga-se, em transcurso, que as diferentes versões não resultam só de diferentes interpretações de um texto estabelecido de uma vez para sempre; o desacordo também vem a lume, quanto à decisão de manter ou eliminar algumas palavras do original, tal como nos foi transmitido por Clemente de Alexandria. Snell traduz e interpreta o texto estabelecido por Diels, eliminando apothanon («tendo morrido»), que Bollack conserva, como conserva o segundo «a vista extinta», que Snell (e Diels) elimina; por isso, encontramos na versão b) um «quando morre para si», de que não há vestígios na versão a). O leitor mais exigente achará todos os resultados da interminável e acerba contenda filosófica em Zeller-Mondolfo (parte i, vol. iv, 1961) e, mais comodamente, em Mondolfo (1966). Também no frg. 26 se fala de um «alumiar-se» e de um «apagar-se» e, no original grego, as palavras são exactamente as mesmas; mas, enquanto em se tratando do frg. 30 (e 31), nunca se cogitou, que o saibamos, na ambiguidade do haptetai («acende» ou «toca») e haptomenon («acendendo-se» ou «tocando»), os intérpretes dividem-se, em se tratando do frg. 26: Bollack decide-se por «tocar»; Snell, embora assinalando a ambiguidade, optou por «acender» ou «alumiar» e, na opção, é evidente que comprometeu o sentido de um com o do outro fragmento. Mais uma vez, só em transcurso, seria o caso de perguntar, dando por certo que os dois fragmentos perseguem o mesmo sentido, se o frg. 26 converte a cosmologia em psicologia (ou escatologia), ou se o frg. 30 (e 31) converte a psicologia em cosmologia, ou ainda, se o confronto de ambos não convida a pensar que uma distinção das duas nunca foi, para Heráclito, objecto de sérias cogitações. A pergunta seguinte, mais importante e de muito maior alcance, concerne o que eventualmente se ganha do cotejo do fragmento cosmológico com o fragmento antropológico, para a melhor compreensão, tanto de um, quanto de outro. Antes de o fazer, convém advertirmo-nos de que nada resultaria em tão ilusório fracasso como o tentar estabelecer uma rigorosa correspondência entre os dois fragmentos, com a reservada ideia de que o próprio Heráclito tivesse querido estabelecê-la, nos mesmos termos em que os redigiu, ou em que foram redigidos. Escusamos de voltar ao frg. 30 (e 31), senão para nos lembrarmos de um «fogo sempre vivo» que «se alumia» e «se apaga», e de que, passando sobre a aparente contradição entre o «apagar-se» e o «alumiar-se» do fogo que «vive continuamente», temos de entender que um kosmos, em virtude do que se diz no frg. 31, é fogo apagado ou como que o rescaldo de um incêndio. O «acender-se» e o «extinguir-se», no frg. 26, sugere (mas apenas sugere) que se trata do mesmo fogo; mas aí, se o dormente é um «morto aceso», e o vigilante é «dormente aceso», ou se o sono queima a morte e a vigília queima o sono — no sentido em que se diz que uma lâmpada queima azeite —, então esta espécie de antropogonia corre ao invés daquela espécie de cosmogonia, expressa pelos frgs. 30 e 31 (recordemos, sem propósito de tirar conclusões, que em Empédocles   também achamos o processo zoogónico como inversão do processo cosmogónico): que o fogo se torne cada vez mais vivo e o incêndio recrudesça, quando se passa do morto ao dormente e do dormente ao vigilante, é a mais natural das inferências; e, tão natural, supor que, por fim, nada reste por queimar. Mas onde está este «por fim»? Sem dúvida, na alma em seu estado mais puro, que é também o de puro fogo; — fogo que, por sua vez, «virado» em seu contrário, é corpo só. Daqui voltamos ao frg. 31 e às tropai («viragens») do fogo cósmico: «primeiro, o mar». Ao lado, devemos ter presentes o início do frg. 36, «morte para as almas, o tornarem-se em água», o frg. 77, «para as almas, prazer ou morte, o tornarem-se húmidas», e o frg. 118, «alma seca: a mais sábia e a mais perfeita».

Meio Proporcional

80. Com esta maneira de interpretar a relação entre o frg. 26 e o frg. 30 (e 31), concorre o que acima (§ 76) ficou escrito sobre certa forma do pensamento arcaico dos Gregos: o «meio proporcional». No frg. 26, temos sono e vigília, como no frg. 1 e nos demais que citamos em cotejo, no propósito de evidenciar aquela proporcionalidade que exige, como quarto termo, um x igual a uma «vigília tal que, comparada com ele, a vigília comum é sono». Neste fragmento, comparecem sono e vigília, e não há motivo para crer que esta não seja a vigília comum; mas, antes do sono, está a morte, e depois da vigília não está nada. Ou estará a mesma Vigília, num silêncio tão eloquente, quanto o do frg. 1? A presunção, aqui, é de que também o frg. 26 entre no esquema do «meio proporcional». Mas, neste caso, a proporção assumiria uma forma mais complexa: a morte está para o sono, como o sono está para a vigília, como a vigília está para x (lembremos, muito a propósito, que Frankel aplica o esquema da proporcionalidade à imagem da Caverna platónica, acrescendo o número de termos). Apenas, a gradação ascendente do frg. 1 se encurvaria em círculo, no frg. 26, e o x, que ainda pode ser a Vigília para além da vigília comum, redundaria na Morte, entendida como «viragem» da vida ao seu contrário, e subentendendo a unidade sem nome, da vida e da morte. Sem nome; pois o que aparece em seu lugar é uma cifra: o «fogo». Note-se bem que sobre esta interpretação, valha o que valer, não paira qualquer ameaça do pessimismo concomitante de toda separação do sensível e do inteligível, que se proponha como abismal e intransponível. Pois em nada se opõe ao sentido do frg. 36: «Para as almas, morte é tornarem-se água, e da água a alma.» O mesmo se diz, com mais brevidade, no frg. 103: «Igual é o início e o término, na circunferência de um círculo», ou no frg. 60: «O caminho para cima e o caminho para baixo, é um e o mesmo.» Entendam-se, estes dois, como exemplos da unidade dos contrários; mas nada impede, e tudo leva a crer, que também, e sobretudo, se refiram à doutrina da «anathymíasis» (exalação): do elemento húmido, «viragem» do fogo em seu contrário, por «reviragem» em sentido inverso, reobtém-se o fogo, isto é, a alma. A propósito da teoria de Schwabl acerca da relação entre a «Via da Verdade» e a «Opinião dos Mortais», perguntávamos se Parmênides não estaria mais próximo de Heráclito, do que vulgarmente se julga (§ 54). Mas há uma proximidade por semelhança e uma proximidade por contraste. Já nos referimos a uma e a outra (final de § 74). Chegou o momento de insistir no tema. Primeira, é a vez da proximidade por contraste. O fogo está presente na «Doxa» parmenídea, pela Luz: a mesma luz, na constituição do Cosmo e na constituição do homem; mas, ainda que alguma vez um homem chegasse a constituir-se apenas de Luz, por exclusão de tudo quanto na mistura era Noite, nem por isso ele viria a morar no Ser, pois a Luz somente, nem sequer o representa ou imita (em sentido platónico), no domínio da convenção. Em Heráclito, só vemos um convencional oposto ao real, no frg. 102: «Para Deus todas as coisas são belas, boas e justas; os homens, porém, umas consideram injustas, outras justas.» De resto a harmonia visível anuncia a harmonia invisível, e a physis mostra-se, ainda que ame ou prefira ocultar-se. Parmênides parte da revelação do Ser para a compreensão das coisas; Heráclito parte da revelação da unidade dos contrários, neste mundo das coisas, para a visão de uma Unidade de todas as polaridadees (cf. frg. 67): «Deus é dia e noite, Inverno Verão, guerra paz, saciedade fome; muda, porém, como fogo (ou óleo?) misturado com essências perfumadas: toma um nome, segundo o aroma de cada uma.») O único problema, que seria agora o da proximidade por semelhança, é o de saber se essa Unidade última, poderá considerar-se como separada. Só conhecemos um testemunho inequívoco, o do frg. 108: «De tantos, cujos discursos ouvi, nenhum chega a ponto de reconhecer que o Sábio é algo separado de tudo.» Snell, ao lado de «separado» (Getrenntes), escreve, entre parêntesis: ab-solutum. A palavra grega é kekhorisménon, particípio perfeito do verbo khorízein, com o mesmo radical que está em khorismós, o nome da grande «separação» que preside aos sistemas de Parmênides e Platão. Na codificação filosófica do fascinante mistério do horizonte, separação é a primeira e a última cifra.


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