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Pensar e Errar

Ernildo Stein (2015:80-82) – divergência Husserl-Heidegger

Capítulo 1 – A Filosofia - O Pensar

quinta-feira 8 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

Heidegger se pergunta se essa ideia da constituição transcendental   de mundo exige esse recuo ao Eu transcendental, à consciência e à representação. Por que não descobrir a constituição transcendental de mundo em um ente do mesmo nível do próprio conceito de mundo?

A concepção de Filosofia e fenomenologia, afirma Heidegger, escrevendo para Husserl  , se distinguirá ou se aproximará conforme a justificação ou a descrição do conceito de mundo nos dois filósofos. O importante e revolucionário da fenomenologia é que ela vai tratar do conceito de mundo, mas de uma maneira transcendental  , e isso é totalmente novo na tradição filosófica. A questão é a seguinte: será que o conceito de mundo pode ser discutido, explicitado e resolvido em sua constituição transcendental, por meio de um recuo que Husserl faz aos atos conscientes (ao Eu transcendental) para, a partir deste, poder recuperar a dimensão objetiva do mundo, nos seus dois polos: noético e noemático? Ou seja, é possível que o Eu transcendental seja considerado a condição de possibilidade de o mundo ser objeto do conhecimento, mesmo que a partir de uma relação sujeito-objeto? Assim, Husserl trata de uma operação de retorno sobre si mesmo; um distanciamento do mundo fático e uma recuperação das condições da constituição de mundo no Eu transcendental.

Heidegger se pergunta se essa ideia da constituição transcendental de mundo exige esse recuo ao Eu transcendental, à consciência e à representação. Por que não descobrir a constituição transcendental de mundo em um ente do mesmo nível do próprio conceito de mundo? Isso significaria, então, que o conceito de mundo não exigiria a constituição de uma esfera transcendental de representação, mas poderia ser descoberto na própria descrição de um ente no qual se daria esse conceito de mundo. Heidegger afirma: “Tal é o problema central de Ser e tempo  , a saber: uma analítica existencial do Dasein  ”. Uma frase dessas tem um poder explosivo na época em que a questão transcendental era sempre posta a partir das teorias da consciência e da representação.

[81] Segundo Heidegger, é preciso mostrar que o ser do Dasein é totalmente diferente daquele dos outros entes. Se a constituição do Dasein é completamente distinta da constituição dos outros entes, então é possível encontrar nele mesmo o acontecer transcendental. Desnecessária a operação de “pôr o mundo entre parênteses”, recuar ao Eu transcendental, ao mundo da representação, para depois então recuperar o mundo fático. A constituição transcendental é uma possibilidade central da existência do próprio Dasein. E a maravilha é que a constituição existencial do Dasein torna possível a constituição transcendental de tudo que é positivo.

Tudo, então, passa a poder ser visto, num plano transcendental, a partir da constituição existencial do Dasein. Os elementos unilaterais do corpo e da Psicologia pura — nos quais Husserl insistia muito — só são possíveis sobre a base de uma integralidade concreta do homem, tal como ele é determinado primariamente em seu modo de ser. Quer dizer: corpo e espírito, o elemento somático e o elemento psíquico, pressupõem esse modo de ser do Dasein, no qual se constitui aquilo que se chama mundo.

O elemento constituinte dessa dimensão transcendental, do qual Husserl fala, é algo. E, se ela é algo, então é um ente, algo entitativo. Ainda que não possa ser um ente num sentido positivo, como as ciências tratam dos entes, é um ente já pensado de maneira transcendental. A frase que separou os dois gigantes pode ser literalmente traduzida assim: a questão do modo de ser do constituinte é incontornável. Aí, Heidegger acrescenta a isso algo que Husserl temia até acatar como objeto. É por isso que o problema do ser se refere universalmente ao constituinte e ao constituído. O ser, portanto, refere-se tanto ao Dasein quanto ao mundo. Husserl não aceita que o elemento transcendental tenha uma dimensão de ser, uma dimensão ontológica. O transcendental tem a dimensão de um artifício teórico-gnoseológico, com o qual instauramos o espaço de transcendentalidade por onde passa toda a realidade.

Por que essa observação da carta de Heidegger é tão importante? O “ponto fraco” de Husserl era exatamente essa questão: se eu reduzo tudo aos polos noético e noemático do Eu transcendental, para ver se há uma constituição como conhecimento sujeito-objeto (S-O), eu necessariamente faço isso em [82] uma dimensão, em algum lugar. Esse lugar é o ser humano concreto. O ser humano com seu enraizamento num mundo vivido. Como reduzir aquilo que sustenta o Eu transcendental, e também este, à dimensão transcendental do polo sujeito-objeto, nóesis   noésios? Como dar àquilo que sustenta a redução transcendental uma dimensão transcendental? Impunha-se uma espécie de objeção de circularidade transcendental inaceitável. Husserl, quando leu Ser e tempo, percebeu ali também uma circularidade: uma circularidade entre o ser-aí que se compreende em seu ser — e, portanto, se assume na preocupação enquanto se compreende — e, com isso, compreende o ser e, compreendendo o ser, compreende a si mesmo. Isso também constitui uma circularidade, que, no entanto, é outra; é um retorno que se dá mediante um compreender, e não por meio de um polo fictício que se instaura na mente daquele que produz a redução transcendental, o qual deveria também ser reduzido, por sua vez, à dimensão transcendental.

Esse, contudo, ainda não era o grande problema. Fora atingido o que Husserl tinha como seu projeto fundamental: construir um sistema acabado, no qual toda sua obra deveria confluir e, ainda, no qual toda a relação com o mundo seria uma relação transcendental constituída nos polos da consciência (sujeito e objeto; noético e noemático) até se constituir a síntese absoluta.

No momento, porém, em que mundo já contém o conceito de transcendentalidade a partir do Dasein, então Dasein e mundo remetem a elementos históricos e culturais que sustentam aquele que pratica a redução e não são redutíveis transcendentalmente. Husserl percebeu as consequências da crítica e, por isso, escreveu A crise das ciências europeias e retomou a questão do mundo vivido, que tentou reduzir também ao nível transcendental da consciência. E essa redução exigiria uma operação constante de reduzir todas as dimensões da cultura e da História à dimensão transcendental, tanto na direção do passado quanto na direção do futuro. O mundo vivido, entretanto, representa sempre o horizonte inesgotável do passado e o horizonte inalcançável do futuro e, por isso, seria uma tarefa infinita sempre com elementos novos a recuperar. Husserl percebeu que aí estava a impossibilidade da redução de tudo à objetivação dos polos noético e noemático. Algo ficaria sempre de fora. Daí, a impossibilidade do sistema, de um sistema acabado.


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