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Ernildo Stein (2012:30-33) – Lebenswelt e ser-no-mundo

segunda-feira 5 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

A redução transcendental   coloca entre parênteses a realidade em sua existência exterior reproduzindo-a nos polos (vividos) da consciência, noesis   e noema (sujeito e objeto), vivendo-a numa espécie de universalidade e não na sua existência concreta.

Então, a palavra Lebenswelt   ligava-se de alguma maneira com a questão da existência. Como a questão da existência, em Husserl  , era menosprezada e como era necessário excluir a fé na existência ao praticar a redução fenomenológica, evidentemente o conflito estava posto entre aquilo que era reduzido e Lebenswelt.

A questão tornou-se mais tensa quando Husserl enfrentou o mundo histórico. Até que ponto é possível conhecer por meio dos diversos processos reducionistas o mundo histórico? Como o mundo histórico deve ser cortado dos elementos da experiência imediata da existência, ou seja, dos elementos que são reduzidos a atos conscientes, noesis e noema? Era também aí que a palavra Lebenswelt representava um papel muito importante, isto é, será que a história não deveria repousar em um elemento privilegiado, representado pelo Lebenswelt?

Foi na sua ocupação com o mundo da vida que Husserl encontrou-se com um dos seus discípulos, Heidegger, que um dia fizera-lhe uma observação dizendo que a redução transcendental excluía algo que não podia ser excluído da Filosofia. Que na redução transcendental não se tematizava o eu empírico que sustentava a redução transcendental. É a famosa objeção de 1926. Com essa observação Heidegger atingia a intenção com que Husserl criara o termo Lebenswelt. A expressão mundo da vida era uma compensação para aquilo que na redução transcendental não era tematizado, mas que ficava sob uma certa reserva.

Não podemos estranhar muito, portanto, que a ideia de cotidianeidade que Husserl criou fosse usada depois por Heidegger. Foi nesse momento, em que Husserl escutava a objeção de Heidegger (de que a redução transcendental excluía o sujeito concreto, existente, que sustentava o eu transcendental), que ele ouviu pela primeira vez a [31] expressão In-der-Welt-sein  , ser no mundo. A expressão “ser-no-mundo” de Heidegger era sinônimo de Lebenswelt. O discípulo de Husserl substituía, desse modo, a expressão que Husserl havia criado sem que as razões para isso fossem visíveis, mas tendo compreendido o que ele queria dizer com ela.

Aquilo que Husserl excluía da tematização da redução transcendental não deveria ser atingido por um outro processo, mas, ao contrário, a palavra Lebenswelt colocaria em dúvida a redução transcendental. Então Husserl, que havia desenvolvido a sua Filosofia por meio de um método rigoroso, no meio de seus devaneios ou de um ato falho, criou a palavra que tornava problemático o seu próprio método. Poderíamos dizer que, deixando de lado a palavra Lebenswelt, continuar-se-ia a praticar a redução transcendental sem problemas.

Na verdade Husserl, depois disso, nunca mais recuperou a paz. O termo Lebenswelt produz a crise da razão na fenomenologia de Husserl como ele a concebera, reconstruindo a realidade exterior pela redução.

Husserl inventara Lebenswelt para designar o campo que ele precisava para dar unidade às experiências, um campo indefinido, mas imenso, inalcançável, pelo qual se deveria falar sobre aquilo de que não se pode falar. Esse campo criava um problema de método e seu discípulo chamava-lhe a atenção de que a exclusão da existência concreta do mundo, do eu, à maneira feita pela exigência da redução transcendental, bem analisada, era incapaz de dar conta de uma questão essencial que o próprio filósofo tinha levantado com Lebenswelt.

Por que Heidegger fez isso? Em parte por preconceito, uma vez que a palavra Leben era a coisa mais temida pelos fenomenólogos durante um certo tempo, pois nela ressoava todo o vitalismo do século anterior. Ressoava toda a preocupação com algo tão simples e óbvio como é a vida humana concreta e que, entretanto, acabou por receber ressonâncias infinitas, ou seja, a Leben seria considerada como um mundo inalcançável, de certo modo, inatingível.

[32] Tanto assim que hoje podemos ler textos de Heidegger, do período de 1921-1922, em que ele escreve o seguinte: “Não vida, mas Dasein  ”. Não vida, mas ser-aí. A resistência à expressão Lebenswelt por parte de Heidegger, certamente, surgiu da Leben, que era objeto de muitos preconceitos nos anos 20 entre os fenomenólogos.

Quanto a Husserl estava posto o germe da desconfiança de que a construção de sua teoria não dava conta de uma questão central. Essa suspeita foi cada vez mais reforçada, até que surgiu Ser e tempo  . A obra em que Heidegger realizava um processo novo, em que se introduzia um método novo. Esta obra passou a ser um espelho no qual Husserl via o problema do seu trabalho não resolvido, o qual ele havia remetido ao conceito de mundo da vida.

Fundamentalmente, o que vai ficar visível, então, é que a crítica do mestre ao discípulo não será feita tanto no sentido de que Heidegger havia construído uma Antropologia, como havia dito, mas consistia também na tentativa de Husserl de corrigir seu método, isto é, mostrar que era possível, dentro do método de redução transcendental, salvar aquilo que Ser e tempo dizia que ali não era possível salvar. Husserl assumirá, então, com mundo da vida um lugar indeterminado onde remete ao que é subjetivo, ao que as ciências não contemplavam e que de certo modo era o chão importante para a Filosofia.

Husserl, com a palavra Lebenswelt, queria procurar um lugar onde houvesse uma evidência não produzida pela redução transcendental: o mundo da vida, essa evidência irrecusável que todos temos, mas da qual não conseguimos falar porque ela não é objeto. Ela é posta como o não lugar do qual partem todos os lugares ou onde tudo tem lugar.

Essa opção de Husserl em definir esse campo revelou-se como o seu grande achado, mas que ao mesmo tempo o pôs em crise. Achado que foi reforçado por Heidegger contra o método husserliano e que levou Husserl a desenvolver uma série de elementos novos que vão aparecer na sua obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. [33] Neste livro Husserl tenta justificar o conceito de mundo da vida, sabidamente sem o sucesso que ele próprio esperava, e nele aparece claramente a crise da razão, a ruptura da razão husserliana em que podia caber tudo, exceto a existência e o mundo concreto.


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, Ernildo. As ilusões da transparência: Dificuldades com o conceito de mundo da vida. Ijuí: Editora Unijuí, 2012