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Ernildo Stein (2012:27-29) – de onde se dá o discurso filosófico?

terça-feira 6 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Então qual é a base do discurso filosófico? Se ele se manifesta, perguntaríamos de que lugar? Wittgenstein   dirá que são as formas da vida, são os jogos de linguagem. Heidegger dirá que são os modos de ser do ser-aí, que podemos descrever formalmente. A Filosofia tem isso como campo de operação. Wittgenstein vai dizer: “Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”. Quando, porém, ele usa a palavra “mundo” não é o “mundo físico” que posso esgotar empirica-mente, mas o meu mundo enquanto ele resume minhas ansiedades, minhas ações, minhas decisões, minhas fantasias, mais do que isto, é meu mundo dentro do qual são possíveis frases que tenham sentido, é possível comunicação. Quando Wittgenstein diz assim: “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, ele quer dizer que esse mundo é o mundo da vida, no qual se dão as formas de vida, os jogos de linguagem, etc.

Esse mundo é o mundo do qual Heidegger, junto com outros autores, insistentemente, fala do homem, não do ponto de vista empírico, mas de outro ponto de vista, enquanto fundamento da Filosofia. Heidegger chama esse homem de “ser-no-mundo”. Ser-no-mundo não é aqui considerado físico-materialmente; ser-no-mundo é ser um ente que, ao falar e agir, faz brotar o sentido por toda parte ao seu redor. Isto é ser-no-mundo. Então, mundo é aquilo de onde brota o sentido, quando falo, trabalho, ajo. Assim se articula o sentido. Essa é a questão na visão de Heidegger. Para os dois, Wittgenstein e Heidegger, o conceito de mundo da vida é fundamental no sentido em que aí está o reduto último da nossa racionalidade. Ali termina qualquer interrogação, porque para trás disso não há como chegar. As Ciências Humanas, de alguma maneira, encontram aí, também, o lugar ao qual remetem o fundamento, a base. Isto me parece extremamente importante.

Agora, uma questão que poderíamos expor ainda, é: podemos chamar isto de transcendental  ? Parece que, assim como numa época era moda falar em dialética, e tudo que era paradoxal, ambíguo, contraditório e antinômico era resolvido pela dialética, assim agora tudo [55] que remete para além de uma racionalidade cognitiva e científica é “transcendental”. Quer dizer, tudo o que é difuso, que significa uso de conceitos sem remeter a objetos, chamamos de transcendental. É uma questão que temos de provar, que temos de testar, quer dizer, a questão do caráter e do valor do transcendental e da transcendentalidade. É isso que temos de testar no conceito de mundo da vida. Por que a Filosofia contemporânea, se formos juntar os autores, termina sempre remetendo a algo semelhante, que se pode designar com outros nomes, mas que é sempre um conceito próximo ao conceito de mundo da vida, o lugar onde radica nossa racionalidade e o lugar de onde extraímos o sentido para os nossos discursos?

Como conclusão, poderíamos afirmar que tudo o que foi dito até agora é muito simples. Basta dizermos o seguinte: o ser humano teria dentro de sua cabeça, isto é, na articulação de seu cérebro um comando determinado que impede que ele seja irracional. Esse comando resultaria da combinação dos diversos elementos que compõem o cérebro e que fazem com que o ser humano deva agir de um modo assim chamado racional. O ser humano não pode não pensar racionalmente.

A estrutura neurofisiológica, portanto, faz de nós seres que não perdem jamais a garantia genética de racionalidade. Pode haver curto-circuitos, pode haver alguma coisa em cabeças individuais, mas se observarmos do ponto de vista geral, indivíduos que têm o cérebro igual ao ser humano são indivíduos racionais. Assim, a garantia de racionalidade não viria de elucubrações filosóficas, mas de uma estrutura complexa do sistema de neurônios. Esta é propriamente a afirmação que percorre tudo e que é pressuposta em todas as revistas que se veem por aí, em todos os seminários, em todas as análises do comportamento, em todas as Psicologias. [1]

[56] A diferença entre a Filosofia e estas afirmações é fantástica. No momento em que a racionalidade pudesse ser dada por meio da materialidade da constituição do ser humano, a racionalidade neste sentido de legitimar nossos discursos científicos cairíamos numa espécie de naturalismo. Diria mais, cairíamos numa espécie de beco sem saída, estaríamos afundados no behaviorismo. O nosso comportamento seria simplesmente conduzido pelo funcionamento correto do cérebro humano (no mundo da vida e nos jogos de linguagem). [2]

Porque não dizer que nós, a espécie humana, está garantida para sempre de que ela não vai, em última análise, “fazer besteira”, isto é, a humanidade tem uma garantia de racionalidade embutida no cérebro, traz ela consigo geneticamente. Estranhamente, ainda que nossas proposições venham desse cérebro, tenho de atravessar um mundo para mostrar como a racionalidade vem daí. A racionalidade vem do fato de os cérebros poderem produzir discursos, de poderem tornar-se intersubjetivos e mediante esses discursos legitimá-los. Isso significa uma ruptura abissal com o modo clássico de ver o conhecimento. Fisiologia do cérebro e racionalidade filosófica, eis a questão. Como aproximar esses dois campos, sem cairmos no empirismo? Nas teorias linguisticistas da Filosofia, mas basicamente nas teorias da relação mente-corpo, a mente seria apenas um elemento que usa um modelo determinado de Engenharia, mas que nada mais seria do que a articulação funcional do cérebro, que então produz isso que chamamos de estados mentais. Mente seria apenas a fina ponta do processo material, neurofisiológico, neurobiológico, bioquímico.

Penso que a Filosofia, no entanto, quando colocamos a questão do mundo da vida, traz isso — a Filosofia, de certo modo, trabalha ao nível da mente, ao nível do que se pode chamar de espírito e ao mesmo nível de um elemento que é produzido na conversa comum. Todos sabemos a [57] diferença entre fenômenos físicos e mentais (alguns dizem que há uma separação radical entre fenômenos físicos e mentais). Outros dirão que a diferença entre esses fenômenos é de grau, uma questão de função.

Poderíamos recordar que o avanço da exploração material do cérebro parece nos aproximar cada vez mais de esgotarmos o campo das teorias filosóficas. Cada vez mais as afirmações científicas vão ocupando o espaço, até que um dia não se falará em mente. “Existe ciência”, isto é afirmado de maneira insistente e geral.

Fazemos ciência do cérebro, fazemos ciência da mente e buscamos sua unidade, no entanto esta unidade já se deu desde que nos compreendemos como seres humanos. Apenas separamos para pensar, explicar isto que cada vez mais se põe como questão quando enfrentamos o modo como hoje temos de enfrentar o conhecimento na Filosofia. Penso que se trata de assíntotas que parecem encontrar-se no infinito, mas não se encontram. O avanço neuropsicológico não suprime o elemento da racionalidade produzida pela mente humana. Há como que uma aproximação assintótica no infinito, que já se dá pela autocompreensão. A ilusão que temos quando queremos ser apenas cientistas vendo a Filosofia apenas como uma afirmação vazia e sem sentido. Se assim fosse estaríamos visando com essa afirmação à supressão da Filosofia pelo progresso da ciência.


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, Ernildo. As ilusões da transparência: Dificuldades com o conceito de mundo da vida. Ijuí: Editora Unijuí, 2012


[1Ver Stein, E. Inovação na filosofia. Ijuí: Ed. Unijuí, 2011.

[2Hoje a Filosofia está diante desta questão quando fala em conhecimento. Ver McDowell, J. Mente e mundo. Aparecida, SP: Ed. Ideia e Letras, 2004.