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Diferença e Metafísica

Ernildo Stein (2008:180-183) – "eu" (Ich)

Bases Analítico-existenciais da Desconstrução e da Desobjetificação

sexta-feira 9 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

“No dizer eu, o ser-aí se pronuncia como ser-no-mundo” (SZ  :321)

A grande questão que resulta da desconstrução de certos conceitos da Psicanálise, a partir da Antropologia existencial, reside nas transformações que ela impõe ao problema do eu como sujeito. O que significa a pretensão [181] de Heidegger de encontrar uma dimensão ontológica em que a concepção do sujeito e do eu é precedida por uma descrição do fenômeno do mundo? Poderíamos dizer que não é tão importante a afirmação de um nível mais profundo em que é pensada a questão do eu. Trata-se antes de introduzir um modo de falar do ser humano em que ele não pode ser tratado simplesmente como objeto ou como coisa, pois ser-no-mundo é um modo como se dá o ser-aí. A partir dessa maneira de pensar, a objetificação, trivial no campo psíquico quando se fala no eu ou no sujeito, é superada por um estilo de ver que não passa mais simplesmente pela representação e pela reflexão. Trata-se de um fenômeno em que há algo irredutível, posto que ele não é simplesmente dado, mas é condição da instauração de qualquer sentido a partir do mundo. E assim que dizer eu remete não àquilo que eu sou, mas a um modo como se dá o sentido pelo ser-no-mundo. A relação que se estabelece se constitui a partir da compreensão de que o dizer eu aponta para o estar em jogo do meu modo de ser.

Heidegger introduziu, pela analítica existencial, uma maneira de pensar a relação que tenho com o meu eu como um compreender-me de modo prático no mundo. O ser-aí consiste fundamentalmente num compreender-se em jogo enquanto se é. O problema do eu que antes podia ser resolvido como a representação de si como objeto, é pensado agora como uma relação prática de si consigo mesmo. Essa relação prática pode ser descrita como um ter-que-ser inelutável em que se produz o sentido que é dado pelo mundo e que ao mesmo tempo está comprometido com esse sentido. Trata-se primeiro não de uma representação ao nível do eu, mas de uma compreensão do seu ser que está em jogo desde que eu sou. Heidegger explicita isto como a compreensão que o ser-aí tem de si mesmo e que nasce da compreensão do ser. O eu enquanto um como, enquanto um modo de ser, é posto fora da relação que ele pudesse ter consigo mesmo numa relação sujeito/objeto ou numa espécie de percepção interior.

Heidegger irá falar de uma atividade de encobrimento que o eu realiza no cotidiano enquanto se objetifica como um entre muitos, deixando de lado propriamente a sua condição de ser um modo de ser-no-mundo e como [182] tal participar de um acontecimento referido à estrutura prévia de sentido. Esse encobrimento que nos leva a vermos o eu como objeto é inevitável, mas não é inevitável a possibilidade de percebermos que ele é precedido e acompanhado por um acontecer mais originário. Poderíamos perguntar até que ponto os processos que acontecem entre o latente e o manifesto de Freud   possuem algum parentesco com esta ambiguidade que se revela na tendência para o encobrimento. É difícil, porém, sustentar uma conexão implícita entre os dois fenômenos. A razão disso é que aquilo que se mostra no eu e o que no mostrar é encoberto representa um elemento estrutural do ser-aí, enquanto a relação entre latente e manifesto se refere a um dinamismo atribuído aos processos psíquicos.

A aproximação talvez seja impossível porque o elemento psíquico desaparece da descrição do ser humano, como modo de ser-no-mundo. Ser-no-mundo é descrito por Heidegger como um sentimento de situação que se expressa numa disposição de ânimo de caráter existencial. É nesse lugar que se mostra a diferença do que Heidegger apresenta na sua antropologia filosófica. Assim como ela significa a superação da teoria clássica das faculdades, ela também significa a superação de outras teorias do psiquismo humano, como construções do eu. E, sobretudo, a questão dos aparelhos que entra em crise com uma teoria não objetificante como é a teoria do ser-aí. Tanto os aparelhos da mente que se constituem na teoria do conhecimento quanto o aparelho que aparece nas duas tópicas da Psicanálise, são expressões de processos de objetivação do inobjetivável, são resultados da instrumentalização de aspectos do modo de ser-no-mundo reduzidos a instâncias psíquicas.

As estruturas do psiquismo, descritas como instâncias psíquicas ou como aparelhos mentais, são resultados de uma concepção metafísica objetivista, na qual o eu e o sujeito humano são tratados como objetos ou coisas. É nesse ponto que aparece a importância daquilo que podemos chamar de desconstrução dos conceitos, assim como Heidegger procede na analítica existencial. O filósofo diria que as construções ou os aparelhos psíquicos nada mais são que modos de encobrimento daquilo que ele pretende explicitar com a descrição das estruturas existenciais relativas ao ser humano enquanto ser-aí.

[183] Sob esse ponto de vista a Antropologia existencial de Heidegger enquanto analítica existencial nos serve de ponto de partida para mostrar, por intermédio da desconstrução, as diversas camadas de encobrimento a que servem as múltiplas análises da teoria do eu, das relações de objeto e a introdução das duas tópicas na Psicanálise. Por mais utilidade que tenham representado as diversas inovações da metapsicologia freudiana, ela faz parte do universo conceituai de origem metafísica, portanto, de caráter objetificante a que são levadas as teorias que fazem do universo psíquico da alma, da realidade mental, simples objetos que perdem e encobrem o modo de ser-no-mundo, que é o caráter primeiro do ser-aí.


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