Página inicial > Fenomenologia > Ernildo Stein (2003:30-32) – círculo hermenêutico e diferença ontológica

Nas Proximidades da Antropologia [PA]

Ernildo Stein (2003:30-32) – círculo hermenêutico e diferença ontológica

Dois teoremas da finitude como base para uma antropologia filosófica

segunda-feira 13 de novembro de 2023, por Cardoso de Castro

O círculo hermenêutico e a diferença ontológica são os teoremas que sustentam a teoria heideggeriana   da realidade e do conhecimento, isto é a teoria da fundamentação do conhecimento. Mas as implicações da proposta de Heidegger devem ser confrontadas com outras soluções apresentadas na tradição.

A abordagem da primeira questão nos leva aos dois níveis que desde a metafísica de Aristóteles   estão consagrados na ontologia — o nível do ente enquanto ente e o nível do ser do ente. A tradição metafísica aborda esses níveis de maneira objetivística. Ela trata os dois níveis como objetos a serem conhecidos. Os diversos autores, até a Idade Média, dão formas várias ao conhecimento deste objeto, mas sempre se examina o modo como são conhecidos, mas não se pergunta porque eles não são questionados enquanto são condições de possibilidade, razão pela qual Aristóteles permanece nos dois níveis.

Quando Heidegger introduz um ente privilegiado, o Dasein  , aparece um novo nível de problematização do ser. O ser não se dá isolado como objeto a ser conhecido ele faz parte da condição essencial do ser humano. O Dasein compreende o ser e por isso tem acesso aos entes. Sem essa compreensão nada se move no conhecimento, tudo permanece opaco. Mas assim, como pelo ser compreende os entes compreende-se também como ente; e não apenas isso. Compreende o ser porque compreende a si mesmo e se compreende porque compreende o ser.

Com esse terceiro nível o filósofo inaugura duas questões centrais na Filosofia — o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. A compreensão do ser nos leva a um caminho de duas mãos: o ser é, pela compreensão, a possibilidade de acesso ao ente: sem compreensão não há ente. Nosso acesso aos entes só nos é possível porque o Dasein compreende o ser e não porque temos um outro fundamento para o conhecimento dos entes.

[31] Assim o Dasein, pela compreensão, inaugura uma circularidade. Mas ela não é simples circularidade (no conhecimento, na lógica), mas uma circularidade que se dá pela compreensão. E, portanto, uma circularidade hermenêutica. O ser não funda o ente, nem qualquer ente funda o ser. A recíproca relação entre ser e ente somente se dá porque há o Dasein — isto é, porque há compreensão.

Aparentemente isso constitui uma simples afirmação; mas, na verdade, estamos aqui diante da introdução de um novo paradigma. Desde Aristóteles e a Idade Média, de um lado, e Kant   de outro, não houve revolução igual. Sobretudo as consequências da diferença ontológica são tão radicais que passam a nos oferecer a possibilidade de repensar os modelos de fundação de toda a tradição.

O círculo hermenêutico e a diferença ontológica são os teoremas que sustentam a teoria heideggeriana   da realidade e do conhecimento, isto é a teoria da fundamentação do conhecimento. Mas as implicações da proposta de Heidegger devem ser confrontadas com outras soluções apresentadas na tradição.

A ideia de ser de Heidegger, na medida em que é vinculada com a compreensão do ser, caminho para pensar o ente, se revela como uma dimensão operatoria: compreendendo-me no mundo e na relação com os entes compreendo o ser. Naturalmente esta compreensão do ser não é temática e deve ser explicitada. É precisamente essa explicitação a meta buscada pela analítica existencial ou ontologia fundamental, cujos teoremas se expressam no círculo hermenêutico e na diferença ontológica.

[32] O ser heideggeriano torna-se o elemento através do qual se dá o acesso aos entes, ele é sua condição de possibilidade. Isto é a diferença ontológica. Como esta condição só opera através da compreensão pelo Dasein, pelo ser humano que se compreende, a fundamentação (condição de possibilidade) sempre se dá pelo círculo hermenêutico.

A relação com o ser e com o modo de ser do Dasein não é uma relação com um objeto ou através de um sujeito, mas é uma relação que possibilita algo, o acesso aos entes.

Na tradição objetivista o ser é ainda pensado como objeto, ou como ente, ainda que o supremo, como na Idade Média. Esse objetivismo, porém, padece de uma estranha circularidade. Constrói-se uma teoria do ser, uma ontologia — e para esta operação necessita-se de uma “quaedam illuminatio divina” — quando, no entanto, esse ser supremo (teologia) do qual se recebe essa illuminatio, é precisamente resultado da ontologia. É um círculo na argumentação que naturalmente não pode ser aprofundado aqui, mas é também um círculo na fundamentação

Heidegger dirá que assim Deus entrou pelos fundos na metafísica, ex post: esta operação de contrabando da Teologia na Metafísica deu-se por causa da entificação do ser por efeito da ausência da diferença ontológica.


Ver online : Ernildo Stein


STEIN, E. Nas proximidades da antropologia. Ensaios e conferências filosóficas. Ijuí: UNIJUÍ, 2003.