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Ernildo Stein (1973:283-297) – Introdução ao Método Fenomenológico Heideggeriano (1-3)

quarta-feira 6 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

Ao lado de Ser e Tempo   e Que é Metafísica? temos, no ensaio Sobre a Essência do Fundamento e na preleção A Determinação do Ser do Ente segundo Leibniz  , a melhor possibilidade de observar o método fenomenológico de Heidegger em sua aplicação concreta. Não apenas cronologicamente estão estas duas análises próximas dos momentos mais altos da criação heideggeriana  ; também tematicamente lhe são vizinhas. O texto sobre Leibniz tomou corpo na esteira de interpretações de filósofos que foram incluídas em Ser e Tempo. O estudo sobre o fundamento continua uma exploração da questão da transcendência analisada no § 69 c), da mesma obra. A conferência Hegel   e os Gregos é uma peça magistral do segundo Heidegger. É uma engenhosa aplicação da fenomenologia a um problema de história da filosofia. Na análise de Leibniz o filósofo diz que sua interpretação da história da filosofia não é meramente historiográfica, mas que isto não quer dizer que seja do tipo da que Hegel realiza. Ao estudar a relação existente entre Hegel e os gregos, partindo da interpretação hegeliana da filosofia grega, o filósofo tem em mira uma crítica ao modo hegeliano de interpretação dos diversos segmentos da história da filosofia. Em ambos os estudos está latente a ação e o modo de proceder do método fenomenológico de Heidegger. Pois, a fenomenologia heideggeriana   não é apenas uma “técnica” de análise do ser-aí e da correlata questão do ser. Seu outro pólo é o confronto com a história da filosofia, também este tendo, é verdade, como meta, a retomada da problemática ontológica. A destruição e repetição dos momentos mais decisivos da história da filosofia eram mesmo projeto da segunda parte de Ser e Tempo, que nunca foi escrita. Fragmentariamente, porém, este projeto inacabado se realiza durante as já quatro décadas de confronto direto com as questões da metafísica ocidental. Ser e Tempo não está, portanto, interrompido por um fracasso; esbarra no enigma que espreita todo o questionamento filosófico. Impasses deste tipo não podem ser previstos, mas fecundam as mentes geniais que até aí conseguiram progredir. Seria muito simples afirmar que uma obra destas fracassou. Mas isto certamente proviria ou de uma auto-suficiência dogmática ou de uma superficialidade que, em filosofia, se contenta com um cardápio de respostas prontas.

Mesmo no ensaio sobre a essência do fundamento, o método fenomenológico não se reduz aos momentos de analítica existencial. Também nele há aproximações fenomenológicas da história da filosofia. E esta maneira de proceder enriquece uma análise que, de outra forma, poderia desgarrar-se na pura especulação. Temos, portanto, nos três textos, material para observar a estrutura e o movimento da interrogação heideggeriana. É preciso não apenas coragem para subverter da maneira como Heidegger o fez, a questão do princípio da razão e a questão do fundamento, basilares em toda a tradição. Sem um método que dê coerência e sentido, tentativas destas desembocam em experimentos sem consistência. Somente a maneira de ver fenomenológica pôde conduzir a uma ruptura da rigidez de categorias como transcendência, finitude, liberdade.

Mas que quer o filósofo com o método fenomenológico? Não é este antes, uma maneira de pensar bastante arbitrária e contra a corrente da tradição, sem que, no entanto, se possa isolá-lo e confrontá-lo com outros métodos que tomaram forma na história da filosofia? Não é, por acaso, teimosa perseguição de uma intuição original que jamais se esgota e que se espraia por todas as abordagens tanto sistemáticas quanto históricas? Os três textos, lidos com a atenção não apenas avidamente voltada para os conteúdos, mas empenhada em descobrir o movimento de interrogação do filósofo, servirão certamente para novos impulsos e se tornarão indicadores de caminho próprio no campo da reflexão filosófica.

Para introduzir em certos momentos essenciais do método fenomenológico como Heidegger o esboçou provisoriamente em Ser e Tempo (§ 7), como o discute dentro da analítica existencial (§ 63) e como esparsamente a ele se refere nas obras posteriores, analisaremos os seguintes aspectos:

1. A responsabilidade crítica na filosofia atual.

2. A discussão metodológica e a posição da fenomenologia.

3. Os métodos atuais e a crítica da fenomenologia.

4. O método fenomenológico e o primado da tendência para o encobrimento.

5. A ambiguidade do método fenomenológico em Ser e Tempo.

6. Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana.

1. O contexto em que surge, se funda e atua a reflexão filosófica não se recebe nos tempos atuais, como algo evidente. Análises precisas, servidas pelo extremo rigor metodológico que se elabora nas ciências, querem tornar mais transparente a linguagem que a filosofia emprega, e procuram desvendar os caminhos que a conduzem para a verdade. O pensamento filosófico não pode mais eximir-se do processo legitimador, a que se deve submeter todo o discurso humano que pretende, metódica e sistematicamente propor algo sobre o real. Esta incorporação do controle das proposições que se tornou rotina nas ciências, leva a filosofia a por ordem na esfera de suas afirmações. Não se ordenam apenas as interpretações pelo método hermenêutico; não se decompõe somente a linguagem culta da tradição filosófica pela analítica da linguagem; não se presta apenas atenção às críticas do empirismo lógico, para desmascarar falsos problemas. Há todo um esforço positivo que invade o trabalho da filosofia, tentando operacionalizar os dados que acumula e sistematizar a pesquisa filosófica, com as últimas conquistas da lógica e dos processos de formalização. Isto implica na integração de todo um instrumental de análise que a metodologia científica, a teoria das ciências, as pesquisas da linguística, construíram. A filosofia deixou de ser uma ocupação de diletantes, uma teorização sem compromisso e sem controle, uma compensação para a falta de trabalho (ócio). Instaura-se uma rigorosa correlação entre atitude teorética e responsabilidade crítica e, cada vez mais, se pergunta pelas motivações que desencadeiam o comportamento filosófico. Não que se reduza o pensamento filosófico às componentes sócio-culturais, mas sempre com mais insistência se põem a nu os interesses que conduzem a atividade do filósofo. Chega a ser chocante a tenacidade com que se busca um novo estatuto para a filosofia e se alijam cargas “inúteis” da tradição.

2. No que respeita ao método em filosofia, impõe-se cada vez com mais clareza, o domínio do método dialético de um lado e ao método lógico-analítico de outro. O primeiro se perfila sob a influência cada vez maior das ciências sociais, sobretudo da sociologia; o segundo se apóia nas conquistas no campo da linguística, nos processos de formalização e nos domínios da lógica. A polarização entre sociologismo dialético e positivismo lógico parece cada vez maior. E para o futuro próximo anuncia-se uma “perfeita disjunção na oposição entre dialética e lógica”. “Não há dúvida que se destacam dos dogmáticos de viseira, de um e do outro arraial, aqueles que têm em mira uma “síntese”. Mas, justamente esta meta pode ser unicamente estabelecida com base na ideia de que lógica e dialética juntas constituem o todo da filosofia, que hoje ainda merece ser discutida. O que não se resolve nesta alternativa, ou não é filosofia ou é “de ontem”. [1].

Heidegger é por muitos julgado como um filósofo “de ontem” e isto, não em último lugar, por causa de seu método. É relativamente fácil distinguir entre o método fenomenológico como Husserl   o entendia e as pretensões metodológicas dos analistas lógicos da linguagem. Husserl quer atingir a verdade mediante uma análise crítica da intencionalidade da consciência. A analítica da linguagem procura a verdade pela análise crítica da linguagem. Trata-se do deslocamento de interesses, de uma área para a outra, com o qual se prometem melhores resultados e mais rigor sob o ponto de vista do método. Mas a distância que separa as duas posturas metodológicas é enorme. A oposição chega a ser de vontade; depende de motivações. Exemplo para isto: Quando Merleau-Ponty   perguntou a Ryle: “Não é nosso programa o mesmo?”, este respondeu: “Espero que não”. Mas o método fenomenológico assim como o entende Heidegger, é tão radicalmente recusado pelos analistas da linguagem que nem mesmo um tal diálogo sobre as pretensões de ambos é possível. A fenomenologia, assim como Heidegger a formula como método, parece ser definitivamente “de ontem” para os que se ocupam em pôr clareza e ordem nas proposições filosóficas.

Já a determinação inicial do método fenomenológico leva Heidegger a delimitar seus contornos de maneira tal que fica evidente: a) a verdade que busca o método fenomenológico não se pode comparar com e, de maneira alguma é, a verdade que resulta como consequência do método dialético; b) nem é a verdade que se pretende atingir com a argumentação lógico-formal  , a certeza como retitude e exatidão. O § 7 de Ser e Tempo o diz claramente: a verdade é o desvelamento daquilo que a partir de si mesmo se mostra velado. O método fenomenológico exige o passo de volta, para trás dos fenômenos no sentido vulgar, onde se move a lógica, para o âmbito em que o fenômeno no sentido fenomenológico é, antes, aquilo que se oculta. Isto traz como consequência interna ao próprio método uma ambiguidade que, superficialmente, já se revela no fato de o filósofo só poder desenvolver as análises com seu método, utilizando a linguagem que é controlada pelas regras da lógica mesma. Ao nível do próprio discurso se insinua uma ambiguidade que perpassará todas as proposições. Desta maneira, a própria determinação do método fenomenológico heideggeriano parece fugir, em seu momento decisivo, ao controle da lógica das proposições. Não apenas isto; a lógica mesma torna-se ambivalente e querem-se descobrir nela dois níveis: o nível mais profundo determina e condiciona o outro. É um círculo que vem afirmado na própria lógica. A lógica que deve controlar as proposições só o pode na medida em que pressupõe o nível profundo destas mesmas proposições como condição de sua própria possibilidade. Esta ambiguidade do método fenomenológico, como já fora definido provisoriamente em Ser e Tempo, perpassará toda a obra de Heidegger.

Mas a frustração da lógica das proposições, ou melhor a problematização com que ela nada pode fazer, não deve levar para uma tentativa de interpretar dialeticamente o método heideggeriano. Nele nada há que se aproxime do processo dialético, sobretudo, de sua necessidade e movimento teleológico. As proposições centrais da obra de Heidegger não são proposições especulativas no sentido hegeliano.

3. Wittgenstein  , dois anos após a publicação de Ser e Tempo, já suspeitara de que problema fundamental se tratava na interrogação heideggeriana. Numa observação fugidia, diz o autor do Tractatus: “Posso imaginar o que Heidegger quer dizer com ser e angústia. O homem tem o instinto de se jogar contra os limites da linguagem” [2]. Bem contra a tendência do fundador da fenomenologia, Heidegger liga o questionamento de sua obra-prima ao problema da linguagem. Ela assume papel condutor na elaboração de seu método e na realização da analítica existencial. No método fenomenológico como “interpretação ou hermenêutica universal”, como apossamento de tudo o que foi transmitido pela tradição através da linguagem, como destruição e revolvimento do chão linguístico da metafísica ocidental, se descobre um imenso projeto de analítica da linguagem. Mas, como o método fenomenológico visa o redimensionamento da questão do ser, não numa abstrata teoria do ser, nem numa pesquisa historiográfica de questões ontológicas, mas numa imediata proximidade com a práxis humana, como existência e faticidade, a linguagem — o sentido, a significação — não é analisada num sistema fechado de referências, mas ao nível da historicidade. Se no método dialético podemos encontrar uma certa mística teleológica (teleo-trópica), da palavra, no método do positivismo uma certa tecno-lógica da linguagem, encontramos no método fenomenológico de Heidegger uma certa onto-lógica do dizer, isto é, uma compreensão da dimensão pré-ontológica da linguagem, ligada à explicitação do mundo como horizonte da transcendência.

O método fenomenológico, enquanto método hermenêutico-linguístico, não se desliga da existência concreta, nem da carga pré-ontológica que na existência já vem sempre antecipada. É isto que lhe dá como característica uma inelutável circularidade, que, para o método do positivismo lógico, sempre é um excesso que a clareza e linearidade da linguagem proíbem e, para o método dialético, é de menos, por que omite a pretensão de totalidade.

Os dois métodos que monopolizam as atenções na crista da onda de sua atualidade, têm razão em suas críticas contra o método fenomenológico heideggeriano. A ambiguidade em que nele aparece a lógica: de um lado, falhando o essencial, porque presa ao fenômeno no sentido vulgar, de outro, a absoluta necessidade de ter que ser usada para poder-se dizer qualquer coisa daquele âmbito em que se vela o fenômeno no sentido fenomenológico, — tal ambiguidade está longe da transparência em que se evita confundir questões filosóficas verdadeiras com aquelas que são apenas questões nascidas da linguagem. A distância que separa o método fenomenológico da história e da práxis: por mais que se analise a cotidianeidade, a existência, a angústia, a preocupação, a analítica existencial parece manter-se longe do concreto acontecer histórico e das questões que agitam a sociedade. Têm-se a impressão de assistir ao desfile de esquemas, arquétipos, de estar-se caminhando num céu rarefeito em que são decompostos e articulados os momentos essenciais do acontecer humano, num ensaio que nunca chega ao confronto definitivo com a vida. No entanto, ambos os métodos assim flagrados em sua crítica, movem-se sobre pressupostos que eles próprios não são capazes de explicitar, e que necessariamente devem ser respeitadas já que condições de sua própria possibilidade. Isto não diminui a importância e o porte de seu trabalho e de seus resultados, tanto no âmbito da operacionalização da verdade na linguagem para a comunicação intersubjetiva, como no âmbito da operacionalização da verdade empírica para a práxis humana. Mas estes pressupostos devem ser explicitados, se a filosofia não quiser renunciar à sua tarefa de buscar as raízes. Esta explicitação, não será certamente uma explicação positiva, nem se resumirá em “definições operacionais”; somente se dará por um processo de aproximações que não podem ser legitimadas por demonstrações e argumentos apodícticos. A clareza metódica será sempre, em face dos outros métodos, turbada por um conteúdo nunca esgotável nas proposições. É isto que dá esta característica ambivalente ao método fenomenológico como Heidegger o compreende.


Ver online : Ernildo Stein


HEIDEGGER, Martin. Conferências e Escritos Filosóficos. Tradução e notas de Ernildo Stein. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973


[1Michael Theunissen, in Phil. Rundschau, Ano 15, Janeiro 1968, Cad. 1/2, p. 136

[2Ludwig Wittgenstein, Ed. Suhrkamp, 3o. vol., 1967, p. 68