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Ideias acerca de uma Psicologia Descritiva e Analítica (1894)

Dilthey (IPDA:22-24) – explicação e compreensão

domingo 17 de outubro de 2021

Excerto de DILTHEY  , Wilhelm. Psicologia e Compreensão: Ideias Sobre uma Psicologia Descritiva e Analítica. Tr. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 22-24.

Os representantes da psicologia explicativa costumam apoiar-se nas ciências da natureza para justificar um tão amplo emprego de hipóteses. Mas já no início das nossas investigações queremos proclamar a pretensão das ciências do espírito de determinar autonomamente os seus métodos, de harmonia com o seu objecto. As ciências do espírito, partindo dos conceitos mais gerais da metodologia geral, devem chegar, graças à comprovação nos seus objectos peculiares, a métodos e a princípios mais genuínos dentro do seu âmbito, tal como fizeram as ciências da natureza. Não nos revelaremos genuínos discípulos dos grandes pensadores científico-naturais pelo facto de trasladar para o nosso campo os métodos por eles encontrados mas, ao invés, conformando o nosso conhecimento à natureza dos nossos objectos e comportando-nos em relação a estes tal como eles com os seus. Natura parendo vincitur. As ciências do espírito distinguem-se das ciências da natureza, em primeiro lugar, porque estas têm como objecto seu factos que se apresentam na consciência dispersos, vindos de fora, como fenômenos, ao passo que naquelas se apresentam a partir de dentro, como realidade e, originaliter, corno uma conexão viva. Por isso, nas ciências da natureza é-nos oferecido um nexo natural só através de ilações suplementares, mediante um complexo de hipóteses. Pelo contrário, nas ciências do espírito, a base é a conexão da vida anímica como algo originariamente dado. “Explicamos” a natureza, “compreendemos” a vida anímica. Na experiência interna são também dados os processos de causação, dos laços das funções, como membros singulares da vida psíquica, num todo. Primordial é, aqui, a conexão vivida, secundária a distinção dos seus diversos membros. Isto condiciona uma diferença muito grande dos métodos com que estudamos a vida psíquica, a história e a sociedade, relativamente aos outros métodos pelos quais se obtém o conhecimento da natureza. Para a questão que aqui nos interessa infere-se da diferença aduzida que as hipóteses, no seio da psicologia, não desempenham de modo algum o mesmo papel que no interior do conhecimento natural. Neste toda a conexão se estabelece mediante uma formação de hipóteses; na psicologia, a conexão é dada de um modo originário e constante na vivência: a vida está presente [22] em toda a parte só como nexo. Portanto, a psicologia não necessita de conceitos subjacentes obtidos por inferências para estabelecer uma conexão que englobe os grandes grupos dos factos anímicos. Quando uma classe de efeitos surge condicionada interiormente e, todavia, se apresenta sem consciência alguma das causas que interiormente actuam, como acontece na “reprodução” ou no influxo que sobre processos conscientes exerce a conexão psíquica adquirida, subtraída à nossa consciência, é também possível que a descrição e a análise do decurso de tais processos os submeta à grande articulação causal do todo, que pode ser estabelecida a partir das experiências internas. E, por isso, quando constrói uma hipótese sobre as causas de tais processos, não se sente impelida a pô-la, em seguida, nos alicerces da psicologia. O seu método é inteiramente diferente do da física ou da química. A hipótese não é o seu fundamento imprescindível. Portanto, quando a psicologia explicativa subordina os fenômenos da vida psíquica a um número limitado de elementos explicativos univocamente determinados, de absoluto caracter hipotético, não podemos admitir que tal possa ser fundamentado pelos seus representantes como o destino inevitável de toda a psicologia, a partir da analogia   do papel das hipóteses no conhecimento natural. Além disso, no âmbito psicológico, as hipóteses também não possuem a capacidade de realização de que deram provas no conhecimento científico-natural. Não é possível elevar os factos da vida psíquica à determinidade estrita que se exige para a comprovação de uma teoria, mediante a comparação das suas consequências com tais factos. Por isso, em nenhum ponto decisivo se conseguiu a exclusão de outras hipóteses e a averiguação da hipótese alternativa. Na fronteira da natureza e da vida anímica, o experimento e a determinação quantitativa revelaram-se igualmente prestáveis à formação dc hipóteses, como acontece no conhecimento natural. Mas nada disso se adverte nos campos centrais da psicologia. Sobretudo, a questão, tão decisiva para a psicologia construtiva, quanto às relações causais que condicionam a influenciação dos processos conscientes pela conexão psíquica adquirida ou a “reprodução”, não avançou sequer um passo, apesar de todos os esforços até agora empreendidos. Quão [23] diversamente se podem combinar as hipóteses e com que igual facilidade se podem delas derivar os grandes factos psíquicos decisivos, a autoconsciência, o processo lógico e a sua evidência, ou a consciência moral  ! Os defensores de semelhante conexão hipotética possuem o olhar mais acutilante para aquilo que lhe pode servir de corroboração, e são de todo cegos para aquilo que a contradiz. Neste caso, sim, podemos dizer da hipótese o que Schopenhauer   afirmava, erroneamente, de todas em geral: semelhante hipótese leva na cabeça onde se instalou, ou onde nasceu, uma vida que se pode comparar à de um organismo: recebe do mundo exterior apenas o que Ihe é homogêneo e a faz prosperar; pelo contrario, aquilo que lhe é heterogêneo ou prejudicial, ou não o deixa aproximar-se ou, se inopinadamente o recebe, expulsa-o sem qualquer assimilação. Por isso, as conexões hipotéticas da psicologia explicativa não têm em vista elevar-se alguma vez à categoria que corresponde às teorias científico-naturais. Levantamos, por isso, a questão de se outro método da psicologia - a que chamaremos descritivo e analítico - poderá evitar a fundamentação da nossa compreensão de toda a vida psíquica sobre um conjunto de hipóteses.


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