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Derrida (2016:451-454) – logos

terça-feira 13 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] Heidegger que diz, eu lembro, em Introdução à metafísica, que não é senão tardiamente, depois do acontecimento (Geschehnis), depois da aparição consciente, ciente, sapiente (die wissende Erscheinung   des Menschen als des geschichtlichen) do homem como homem historial, que não foi senão depois dessa acontecimentalidade historial, e, portanto, tardiamente, que se definiu (Heidegger coloca a palavra entre aspas: “definiert”) o homem por meio de um conceito (in einem Begriff  ) e que esse conceito foi, Heidegger o diz sem mesmo ter a necessidade de nomear o signatário dessa definição literal, Aristóteles  , zoon logon echon  , animal rationale, ser vivo dotado de razão, “vernunftiges Lebewesen”. Nessa definição de homem, especifica Heidegger, o logos   aparece, certamente, ele aparece (kommt vor), mas ele aparece sob uma forma, em uma figura passível de incompreensão, desconhecida (in einer ganz unkenntlichen Gestalt), e em um meio ambiente muito curioso, muito peculiar (in einer sehr merkwurdigen Umgebung)·, e é isso que interessa a Heidegger, que está em vias de, no curso daquela que é também uma preleção sobre Parmenides  , Heráclito  , Aristóteles e Hegel  , tentar repensar de maneira originária a relação entre logos e physis   (physis da qual ele diz, no início de sua Introdução à metafísica, que [451] a tradução latina por natura, que diz também “nascimento”, se afastou do sentido originário do grego physis, assim como a ética, no sentido da moral  , degradou o sentido originário do ethos  ) [1].

Cinco questões tinham sido formuladas anteriormente por Heidegger, que precisamos manter em mente durante toda essa reflexão:

1) “Wie West die ursprungliche Einheit   von Sein   und Denken   als die von physis und logos? [Como é a unidade originária entre ser e pensar, na medida em que ela é a unidade entre physis e logos?]”

Depois, 2) “Wie geschieht das ursprungliche Auseinandertreten von logos und physis? [Como advém a secessão, o divórcio entre logos e physis?]”

Em seguida, 3) “Wie kommt es zum Heraustreten und Auftreten des logos? [Como se chega à saída (fora de cena) e à aparição, à entrada em cena do logos?]”

Depois, 4) “Wie wird der logos (das ‘Logische  ’) zum Wesen   des Denkens? [Como o logos (sob a forma do ‘lógico’) se torna a essência do pensar?]”

Enfim 5) (Questão à qual eu conferiria aqui certo privilégio, e eu direi porquê) “Wie kommt dieser logos als Vernunft   und Verstand zur Herrschaft uber das Sein im Anfang   der grieschichen Philosophie  ? [Como esse logos chega, como razão e entendimento, a reinar (a exercer seu domínio, sua autoridade, sua soberania (Herrschaft) sobre o ser no começo da filosofia grega?][M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik  , op. cit., p. 94; tr. fr., p. 135. Na tradução de Gilbert Kahn, as cinco questões são lidas da seguinte forma: “1. ‘Como é a unidade originária de ser e pensar, na medida em que ela é a unidade de physis e logos?’; 2. ‘Como se produz a di-secção originária de logos e physis?’; 3. ‘Como se chega a se-cessão e à pro-cissão do logos?’; 4. ‘Como o logos (o ‘lógico’) se torna a essência do pensar?’; e 5. ‘Como esse logos chega, como razão e entendimento, a reinar sobre o ser no começo da filosofia grega?’” (N. E.)]] Dito de outro modo, como não o logos, o logos mesmo, mas o logos determinado, interpretado, subentendido, travestido, dissimulado, dir-se-ia quase [452] corrompido sob a aparência da razão e do entendimento, o logos como razão e entendimento, de fato como “lógica”, como, sob essa dissimulação ou sob essa aparência, vem a dominar o ser, a tornar-se mais forte do que o ser, desde o início da filosofia grega? Eu não insisto sobre essa palavra “força” ou sobre essa relação de força e de forçação, de dominação e de hegemonia. É o discurso e é a intenção explícita de Heidegger que eu respeito, pois Heidegger fala de “Herrschaft” aqui (poder-se-ia traduzir Herrschaft já por soberania tanto quanto por dominação ou assenhoreamento); trata-se certamente de uma soberania violentamente imposta do logos como razão, entendimento, lógica; trata-se com efeito de uma força da razão que tem razão sobre outra ou outras interpretações ou outras escutas do logos, da palavra ou do léxico, do sentido de legein, logos; trata-se antes de uma espécie de guerra e de conflito de forças na qual a razão se impõe pela força, e, com a razão (ratio, Vernunft), o racionalismo daquilo que virá mais tarde, nós retornaremos a esse ponto, se inscrever no conceito de animal rationale ou de zoon   logon echon. Isso significará também não um conflito ou uma oposição simples, como se acredita com frequência, entre força e razão, como entre força e direito, mas um conflito no qual a força está do lado da razão, e se sobrepõe a ela, um pouco como “a razão do mais forte”, em outro sentido e em outro nível, mas de maneira concorrente com o discurso da fábula de La Fontaine que encontra talvez aqui sua fonte fundamental. Eu forço tanto menos o sentido, o uso e a implicação da palavra “Herrschaft”, traduzindo-a por soberania ou por dominação soberana nessa frase que, duas páginas acima [2] — eu vos remeto a isso — falando da “lógica” que surgiu da escola platônica ou de uma doutrina do pensar que se tornou uma doutrina do logos no sentido da proposição, falando também da ascensão em termos de potência do lógico, da lógica, da determinação lógica do logos em Hegel, Heidegger serve-se duas vezes da palavra “Machtstellung des ‘Logischen ”, e “Machtstellung é a posição de força, expressão que se utiliza com frequência para falar do Estado, da posição de força de um Estado, assim como a expressão “Machtspruch” [453] significa decisão em força, decisão arbitrária e soberana. Além disto, o tradutor francês, Gilbert Kahn, traduz aqui “Machtstellung des ‘Logischen’ por “soberania do ‘lógico’” [3].

Isso não significa que essa soberania, essa hegemonia, essa força superior da razão lógica tenha se sobreposto contra um pensamento do logos que seria ele mesmo inocente e estrangeiro a toda força. Trata-se antes de um conflito entre mais de uma força. Pois o legein e o logos como reunião, como Sammlung   ou Versammlung, que Heidegger considera como mais originária do que o logos como razão ou lógica, é já um desdobramento de força e de violência. O recolhimento nunca é, diz Heidegger, um simples colocar junto, uma simples acumulação, ele é aquilo que retém em um pertencimento mútuo (Zusammengehörigkeit) sem deixar se dispersar. E nessa retenção, o logos tem já o caráter violento de uma predominância ou, como se traduz, de um predomínio, Durchwalten, da physis [4]. A physis é essa Gewalt  , desse desdobramento de força que não se dissolve no vazio de uma ausência de contrastes ou de contrários (in eine leere   Gegensatzlosigkeit), mas mantém aquilo que é assim “durchwaltete”, atravessado, entorpecido pelo desdobramento da soberania, ou das forças, na mais alta acuidade de sua tensão (em sua tensão ela mesma extrema, poder-se-ia dizer soberana, “in der höchsten Schärfe seiner Spannung). Portanto, o logos é ele mesmo, de qualquer maneira que nós o interpretemos, como recolhimento, Sammlung, ou, mais tardiamente, como lógica, razão ou entendimento, o logos é já, sempre, da ordem do poder, da força, até mesmo da violência, dessa Gewalt tão difícil de traduzir (força, violência, potência, poder, autoridade: com frequência poder político legítimo, força da ordem: walten   é reinar, dominar, comandar, exercer um poder com frequência político; a soberania, o exercício da soberania é da ordem do walten e da Gewalt).


Ver online : Jacques Derrida


[DERRIDA, Jacques. A besta e o soberano (Seminário) : vol I (2001-2002). Tr. Marco Casanova. Rio de Janeiro: Via Verita, 2016]


[1M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, op. cit., p. 108; tr. fr., p. 155.

[2Na edição citada, a frase se encontra de fato na página precedente. (N. E.)

[3M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik, op. cit., p. 93; tr. fr., p. 134.

[4Idem, p. 102; tr. fr., p. 147.