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A Morte

Dastur (2002:70-77) – A morte e o morrer

Fenomenologia do ser-mortal

quarta-feira 31 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Excertos de F. Dastur  , A Morte

Se ninguém pode atenuar ou anular a responsabilidade do outro sobre sua própria morte e não pode, no sentido estrito, morrer pelo outro, isso implica que o morrer não é somente uma determinação extrínseca da existência, um "acidente" da substância "homem", mas, ao contrário, um atributo essencial deste. A relação que o ser humano mantém com o morrer é então constitutiva de seu próprio ser e primeira no que se refere a todas as suas outras determinações. É o que leva Heidegger, em um curso em que ele aborda pela primeira vez a análise do ser-para-a-morte, a afirmar que a certeza do dever-morrer é o fundamento da certeza que o Dasein   tem de si mesmo, de modo que não é o cogito   sum, o "eu penso, eu existo", que constitui a verdadeira definição do existir do Dasein, ao contrário de sum moribundus, "sou moribundo", "o que está morrendo", o "destinado a morrer" dando somente seu sentido ao "sum", ao "eu existo". [1]

A morte não pode mais então aparecer como a interrupção da existência, como o que determinaria o fim desta de maneira externa, mas como o que constitui essencialmente a relação do Dasein com seu próprio existir, o que Heidegger chama existência. Considerar que essa relação não pode lhe acontecer a não ser pela mediação da morte dos outros e não pela angústia quanto ao que diz respeito à sua própria morte é se atribuir, por antecipação, o que se trata de estabelecer. Na verdade, não podemos nos comover com a morte do outro, a não ser se somos já um si, e se essa estrutura de receptividade que é a ipseidade, o si-mesmo, já esteja ali, e ela não pode sê-lo senão naquilo que concerne a um próprio dever-morrer. A hipótese, por mais interessante que seja, de um "luto originário" [2] que pretenderia desviar a relação com o si do acontecimento da morte do outro estaria condenada a ver no si o simples resultado da operação de um outro, que seria necessário então, como o faz com inteira coerência Lévinas  , considerar como o "Inteiramente Outro" que, em sua infinidade, é "anterior" à finitude e à passividade de uma ipseidade "refém" [3]. Mas, ao mesmo tempo, ela seria compreendida como uma representação da sujeição, isto é, como um "sujeito" e uma "consciência exagerada do eu", e não como o que os torna possíveis e que Heidegger chama exatamente de ipseidade, a qual só se constitui na aceitação do Inteiramente Outro que é também a morte. Mas, ao contrário de Deus, o Inteiramente Outro infinito do qual o sujeito não é "refém" a não ser porque está separado dele, do Inteiramente Outro do existente, do Nada que é a morte, o Dasein que não é um "sujeito", mas um estar aberto a si mesmo e ao outro, a relação, e é somente essa relação que pode ser assumida.

Eis a razão pela qual não é necessário identificar a morte e o morrer, como Heidegger expressa sua preocupação. A morte é, na verdade, num vasto sentido, um fenômeno que faz parte da vida. O Dasein pode também ser considerado como um simples vivente, por exemplo, enquanto objeto das ciências biológicas, e há, consequentemente, toda uma pesquisa sobre a morte que pode se desenvolver nesta perspectiva. Ela não o pode, contudo, a não ser que o pesquisador já saiba, enquanto Dasein, o que é a morte. Esta não pode, na realidade, apresentar-se como um dado biológico e tomar a forma de um acontecimento objetivo tendo lugar no mundo senão a partir do se-saber mortal do Dasein. Se este não tinha já por si mesmo uma relação com a morte, nenhum acontecimento do mundo poderia jamais colocá-lo em relação com ela. O que caracteriza essencialmente o Dasein é a relação com sua própria morte, a qual não pode nunca tornar-se um "acontecimento do mundo", já que ela constitui justamente o fim deste. Se, segundo Heidegger, o simples vivente, ou seja, o animal, pode morrer, no sentido de "chegar a seu fim" (verenden  ), é precisamente porque esse fim não determina intrinsecamente seu existir, ao qual não temos, analisando por outro ângulo, senão um acesso negativo, a partir do momento em que a "vida" sendo sempre para nós a vida humana, isto é, uma vida capaz de se interpretar, de se compreender e de se assumir por si mesma, não podemos representar a vida do "simples" vivente a não ser por um esforço de abstração. Quando a morte do Dasein aparece sob a representação de um acontecimento do mundo, como morte dos outros, falaremos de "falecimento", no sentido de saída para fora da vida (ableben  ), mas não se poderá dizer do Dasein o que foi dito do animal, ou seja, que ele chega a seu fim, pois seria considerar que sua morte deriva de uma artificialidade puramente externa, enquanto o Dasein não pode, na realidade, falecer, isto é, sair da vida, a não ser enquanto tem intrinsecamente relação com sua própria morte e que ele seja, desse modo, suscetível de morrer.

Para Heidegger, não se trata tanto de reservar ao homem, unicamente, o privilégio e a dignidade de morrer e de consagrar assim, recomeçando de uma nova maneira, a superioridade que a tradição filosófica sempre reconheceu ao homem sobre o animal, quanto pôr em evidência a origem existencial do conceito de morte. O que caracteriza, na verdade, a existência é, como já foi ressaltado, que nenhuma de suas determinações possa lhe ser exterior, o que implica que é, para o Dasein, rigorosamente impossível jamais poder considerar um ponto de vista exterior sobre si mesmo, a partir do qual sua existência se lhe apresenta como um acontecimento tomando lugar no mundo. E, no entanto, diríamos, o que ele faz constantemente quando se considera a si mesmo como o "objeto" das ciências da natureza, da biologia, por exemplo, e como o das ciências humanas, da psicologia, da sociologia ou da antropologia. De forma alguma é questão para Heidegger negar a possibilidade e a validade de uma biologia, de uma psicologia, de uma sociologia e de uma antropologia da morte, mas simplesmente de mostrar sobre qual pressuposto despercebido elas repousam; em outras palavras, sobre a compreensão que o Dasein tem de si mesmo como um mortal. É através de sua própria mortalidade que o Dasein pode somente ter acesso à morte "em geral", o que é menos o sinal de uma "superioridade" do homem que de sua fundamental impotência, já que lhe é assim impossível ter acesso direto a uma outra morte além da sua própria.

Por outro lado, é dessa fundamental impotência que ele tenta escapar quando pretende ver na morte um "acidente" que acontece certamente "todos os dias" mas somente aos outros, e quando ele identifica de maneira inautêntica o morrer com o simples falecimento. Pois, fazendo da morte um acontecimento que lhe sobreviria do exterior e que lhe aconteceria a partir do mundo, o Dasein se arma de uma segurança contra ela, desde que, enquanto ela não está ali, ele pode se acreditar imortal. É dessa imortalidade provisória que vivemos a princípio e o mais das vezes, o que implica que a vida humana não pode se estender largamente a não ser na medida em que ela se esquiva da morte e em que é capaz de transformar em acontecimento futuro aquilo que é o próprio fundamento da existência. Não seria necessário, com efeito, ver na descrição que Heidegger faz do estar cotidiano para a morte uma condenação unilateral da "inautenticidade" e da "alienação" do devenir estranho a si mesmo que ela implica para o Dasein. Muito ao contrário, o fato de que o Dasein se desconheça a si mesmo e esconda de si sua própria mortalidade não somente constitui um atestado desta, mas essa "fuga" diante da morte é, além do mais, necessária para sua manutenção na existência. Não há vida humana durável a não ser na medida em que esta mantém o respeito pela morte, o que exige sua "banalização", e eis aí, sem dúvida, o que distingue fundamentalmente, no final das contas, o homem do animal, pois este não tem necessidade de domar a morte nem de ajustar-se a ela, precisamente porque vive uma vida absolutamente vivente, pela qual o ser humano pode experimentar nostalgia, mas que nela não saberia tomar parte.

Heidegger é, desse modo, levado a definir o morrer como termo que designa a maneira de ser pela qual o Dasein se refere à sua morte. Neste sentido, o morrer é uma definição do que é a vida humana, em outras palavras, um "existir a morte" ou uma mortalidade. No sentido mais exato, só os humanos são "mortais", pois só eles são "capazes" de se referir à sua própria morte e de fazer "existir", assim, a morte. É de um outro ponto de vista que o idealismo alemão, com Novalis   e Hegel  , já tinha percebido claramente, quando via no suicida a capacidade de dar a si mesmo a morte, a origem da humanidade. Pois essa interrupção, esse corte radical que é a morte, o fim do existir, o ser pensante não se refere a esse ponto como um limite externo, mas, ao contrário, como um fim interno, a partir do qual seu próprio ser-no-mundo ou seu próprio ser-na-vida torna-se possível: "O findar no qual se pensa no caso da morte", escreve Heidegger, "não significa um estar no fim do Dasein, mas um estar para o fim do existente. A morte é uma maneira de existir que o Dasein assume desde o instante em que é: ’A partir do instante em que um homem vem à vida, ele já é bastante velho para morrer’." (2002, p. 70-77)


Ver online : A MORTE


[1M. Heidegger, Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs, Gesamtausgabe, GA20, Klostermann, 1979, pp. 437-438 (Curso do semestre de verão 1925).

[2Derrida, "Dificuldades lógicas", p. 331.

[3E. Lévinas, Autrement qu’être, Le Livre de Poche, p. 180.