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Filosofia Grega I

Carneiro Leão (2010:36-39) – O Caos

O sentido grego do cháos

segunda-feira 11 de outubro de 2021

[CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Filosofia Grega I. Teresópolis: Daimon   Editora, 2010, p. 36-39]

Em seu Essai sur la connaissance approché (277), Gaston Bachelard afirma peremptoriamente: “La diversité absolue d’un chaos   ne pourrait recevoir l’occasion d’acune action e par conséquence d’aucune pensée! [“A diversidade absoluta de um caos não poderia receber a ocasião de nenhuma ação e, por conseguinte, de nenhum pensamento”!]

Diante de uma afirmativa tão cabal, nossa tentativa de falar do sentido grego do caos é uma insensatez. Pois promove a expectativa de que se vai pensar sobre ο cháos. Não é o que se pretende. Na verdade, o propósito nem é simplesmente outro. Ninguém nunca consegue pensar sobre o caos, por mais que deseje e se empenhe. Quem o pretendesse nem mesmo sabería o que estaria fazendo, i.é, que não estaria pensando sobre o caos mas sobre uma coisa. Pois só é possível pensar sobre o que tem sentido, nunca sobre o princípio de ordem e articulação da possibilidade de haver sentido. E o primeiro aceno que nos deixou a experiência grega: o caos só se dá na impossibilidade e como impossibilidade de se pensar, de se falar e/ou de se agir sobre ele. Por isso, com o tema, O sentido Grego do cháos, nem podemos renunciar à pretensão de pensar e/ou falar sobre ο cháos. Estamos sempre numa “outra” possibilidade? Mas qual?

Na possibilidade de se pensar, de sc falar, de se agir, não de certo sobre - o que será sempre impossível - mas a partir do caos. E não se trata de uma tal ou qual possibilidade. Trata-se da possibilidade que sempre se dá e tem sempre de se dar, para se poder pensar, falar ou agir sobre qualquer coisa que seja. É, pois, a possibilidade kat’exochen, a possibilidade por excelência. Esta possibilidade por excelência é a impossibilidade de [36] ο cháos ser alguma coisa e não obstante deixar surgir em e de seu seio toda e qualquer coisa. Sem ele, não se daria nem o real, nem o possível, nem o necessário. É desta possibilidade por excelência que Heráclito   de Efeso nos convida a pensar quando diz que, acima do real e do necessário, está o possível.

Por outro lado, não é apenas impossível pensar, falar e/ou agir sobre o cháos. Também não carece fazê-lo. Pois, em tudo, o que se diz, quando se fala e/ou se cala, sempre se faz a partir do cháos. E o segundo aceno que nos dá a experiência grega: ο cháos não só não é uma coisa. Ο cháos é sobretudo o princípio da possibilidade de tudo. Trata-se de uma experiência de ser e de realidade tão rica e inaugural que dela se origina tudo, o que é e não é, nela se nutre toda criação em qualquer área ou nível, seja do real ou irreal, seja do necessário ou contingente. Por isso é que todo propósito de pensar, falar ou agir envia sempre para este vigor matinal do ser e da realidade. Do cháos provém, para ο cháos remete, no cháos se mantém e de volta ao cháos retoma toda ordem e toda desordem, o mundo e o imundo, tudo que está sendo como tudo que não está sendo.

A palavra, to cháos, caos, tem o mesmo radical do verbo chásko que nos envia para a experiência de manter-se continuamente abrindo-se, de estar, portanto, sempre em aberto. É o princípio de todo cindir e separar, de todo distinguir e discriminar e por isso mesmo gerador e constitutivo de todo bico e qualquer bifurcação. Diz, portanto, o hiato do ser, o abismo hiante que a realidade é, no sentido transitivo de fazer ser e realizar. Todo real e irreal se instala e sustém numa realização da realidade hiante, que se abisma numa abertura sem fim mas dentro de limites e/ou indeterminações, sem exaustão mas dentro de ordens e/ou desordens, sem compromisso mas dentro de discriminações e/ou indiscriminações, de todas as possibilidades e/ou impossibilidades. Neste sentido, to cháos, o caos é o poder, em si mesmo, indeterminado e indetermináveI mas determinante de qualquer determinação ou indeterminação.

Nestas condições, o sentido grego de cháos remete sempre, em toda experiência de ser e realizar-se, para a conjugação das três dimensões ou poderes da realidade, que, na grande época de sua criação, os gregos pensaram em palavras e em mármore: [37]

1º ο cháos está aquém de toda ordem e/ou desordem de qualquer tipo, natureza ou nível;

2º ο cháos é a possibilidade, em sentido incoativo de possibilitar, i.é, dar e/ou tirar o poder de ser, de toda discriminação e de toda indiscriminação;

3º ο cháos é o princípio de conservação e continuidade para toda diferenciação e/ou indiferenciação.

Por isso mesmo, ao anunciar o momento oportuno de uma transformação histórica radical, Zaratustra proclama: “É preciso a coragem de ser um cháos para se gerar uma estrela dançarina”.

Onde é que se encontra presente a integração destes três poderes no sentido grego de cháos?

Esta integração não tem lugar de encontro. Constitui de alto a baixo toda a experiência grega, em cuja força se inaugura a existência histórica do Ocidente. Nela mora tanto o silêncio das falas como o espanto da criação. Dela vive a estranheza que atrai o conhecimento, e o inesperado que alimenta de esperança toda espera. Com ela partilha o pensamento a ousadia de suas aventuras e para ela se encaminham todas as tentativas de superação e ultrapassagem. Um eco de sua força matinal chegou até nós e ribomba pelos séculos afora nos versos 116s da Teogonia de Hesíodo  : [citação em grego: “Como princípio de tudo, gerou-se o caos, a seguir, então, a terra de amplo seio acolhedor, sede para sempre inabalável de tudo que é imortal….”]

O vigor de pensamento destes versos se recolhe no poder inaugural de sua dinâmica arcaica em todas as apropriações de cada etapa da história grega: na épica e na lírica, no pensamento originário, na filosofia e na tragédia, na ciência e na técnica clássicas, no período helenista. [38]

Os séculos VIII-VII antes de Cristo viveram da emergência dos três princípio de ordem que transformaram os fundamentos de toda a existência anterior: o princípio universal das trocas de poder, a Cidade, o princípio universal das trocas de símbolo, o alfabeto, o princípio universal das trocas de bens e serviços, a moeda. A poesia arcaica antecede a instalação da ordem destes três poderes. A poesia arcaica é a poesia do caos, no sentido de ser a poesia que deixa aparecer e mostra a impossibilidade e a possibilidade de ordens e desordens. Para o poeta arcaico, ο cháos rege todas as forças históricas. Ο cháos é, ao mesmo tempo e num mesmo elã, criação e aniquilação das realizações. No advento do cháos, a poesia encontra, em cada coisa, o poder de superar as distâncias nos diversos modos de ser e não ser. E o poder gerador de mnemosyne. Em nove noites de amor, Zeus faz com o caos de Mnemosyne a mãe das Linguagens criadoras, as nove musas.

Três séculos depois de Hesíodo, em plena ordem da Cidade, do Alfabeto e da Moeda, Aristóteles retoma o poder criador do caos no IVº livro de suas physike   akroasis, “Escuta Física”, ao discutir “uma dinâmica prodigiosa”, thaumaste dynamis  , a dinâmica do Lugar, e o faz nas seguintes palavras: [citação em grego: “Mostra talvez que Hesíodo pensa corretamente, tendo posto o caos no princípio… E como se um solo devesse sustentar, como princípio, a totalidade do real, por julgar, como todo mundo, que tudo está em alguma parte e num lugar. Sendo assim, pois, o poder do lugar é um poder prodigioso e acima de tudo; pois, sem ele, nenhuma outra coisa é, enquanto é forçoso que ele seja princípio sem nenhuma das outras coisas; com efeito, o lugar não deixa de ser mesmo quando se destrói tudo que nele está”.]


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