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APRENDENDO A PENSAR II

Carneiro Leão (1991:11-20) – Fé, Pensamento e Conhecimento

Fé e Contemplação

segunda-feira 11 de outubro de 2021

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel, Aprendendo a pensar. Volume II. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 11-20

Fé, Pensamento e Conhecimento são três modalidades existenciais que se excluem mutuamente, mas que “a loucura da Cruz” reuniu historicamente. De per si, não há homogeneidade, continuação ou passagem possível entre o Conhecimento que define a Ciência, ou o Pensamento que dá vida à Filosofia, e a Fé em que se funda a Contemplação. Toda contaminação de uma pela outra arruína todas as três. Embora irredutíveis em si, são três modos de ser que se equivalem na vida do cristão pela riqueza de perspectivas que abrem às possibilidades de sua realização. Se, por um lado, Ciência e Filosofia não são escravas ou servas, por outro, também não poderão pretender constituir, como queria Kant  , a verdade da Fé. Por sua vez, o crente não pode vangloriar-se de deter ou simplesmente de ter resposta para os problemas do Conhecimento ou para a questão do Pensamento. Pois, como fiel, o crente não apenas não pode tomar a iniciativa, como nem mesmo poderá retomar para si, em toda a plenitude de seu vigor interrogativo, qualquer questionamento, sem negar-se a si mesmo, como crente ou, ao menos, sem fazer como se não fosse um crente.

Por sua vez, Ciência e Filosofia não poderão olhar por sobre os ombros do crente com a pretensão de ditar-lhe o sentido real, e não o sentido imaginário ou até alienado, de sua Fé. O que significa a Fé, somente quem crê é que poderá saber. Trata-se de uma experiência exclusiva e intransferível. Toda pretensão de confiscá-la é blasfêmia, a blasfêmia que Kierkegaard   denunciou na filosofia do absoluto de Hegel  . Pois o próprio da Fé é esquivar-se à meditação do Pensamento e subtrair-se à apreensão do Conhecimento. Assim, uma incompreensão recíproca torna impossível qualquer tentativa de se reduzir a Filosofia ou a Ciência à sabedoria da Fé e vice-versa.

Existe uma gravidade na questão do Pensamento que é refratária a qualquer crença: a própria audácia de questionar. Existe uma verdade originária no Pensamento que é incomensurável a tudo que é verdadeiro: a irrupção da realidade nas realizações, que desencadeia a aventura filosófica e faz pensar o Pensamento. Mas há uma grandeza na teologia quando se mantém fiel à sua missão. Há também uma verdade originária na Fé, em que mora e vive o crente: uma verdade histórica a que não tem acesso o homem da Ciência ou da Filosofia. É tudo isto que se perde e se trai, é toda esta ousadia que se transforma em covardia, é toda esta grandeza que se apouca e amesquinha, quando, deixando de contemplar, a teologia corre atrás da Filosofia ou da Ciência, num esforço suicida de corresponder às conquistas do progresso, ou levar em conta os resultados do conhecimento, ou ceder às palavras de ordem e slogans das ideologias. Nas relações de encontro histórico entre Fé, Pensamento e Conhecimento, não se trata de uma liberdade de escolha já dada e constituída. Trata-se da liberdade essencial que não é nem negativa, independência, nem positiva, autonomia e determinação. A questão não é escolher a crença em oposição ao questionamento e ao conhecimento, como quem prefere a certeza à dúvida ou antepõe o movimento ao repouso. Também não se trata de ficar com tudo numa síntese impossível das três formas de existência. O que está em causa é uma radicalidade histórica, a radicalidade do cristão, que tem de aprender e reaprender sempre de novo a ser, a sentir e a viver em cada uma das formas a morte essencial das outras e, assim, reconhecer que a própria mortalidade de sua condição acolhe e recolhe precisamente a possibilidade de uma comunhão profícua entre as Ciências, que correspondem ao conhecimento das coisas na contemplação da Fé.

Mas como é que neste tecido estranho de comunhão, na e pela exclusão, se tecem as três formas em que veio a concretizar-se, na Idade Moderna, a existência histórica do cristão?

Comecemos com a Filosofia. O que há com o Pensamento na Filosofia?

Para Aristóteles  , uma única questão definiu desde sempre o estatuto do Pensamento Filosófico em tudo que ele pensa: a questão da realidade realizando-se nas realizações do real. O primeiro capítulo do Sétimo Livro da Metafísica nos lembra:

E assim, pois, o que tanto outrora, como agora, como em qualquer hora se procurou e nunca se encontrou uma saída, foi o questionamento da questão, o que é o ser de qualquer sendo…

Na Filosofia o Pensamento se concentra em ser, todo e somente, o questionamento desta questão da essência de tudo que é. É desta atenção inveterada que a Filosofia recebe tanto sua especificidade irredutível como sua virtuosidade sem fim, como a temeridade incrível de sua pretensão. É aí também que aparece a exaustão e o limite insuperável de seu esforço de pensar.

Na avalanche da questão filosófica tudo é levado de roldão pela tríplice radicalidade do questionamento. A envergadura do empenho de pensar se estica até às fronteiras do Nada e do não ser, cobrindo a totalidade do real. Toda a questão filosófica se estende entre o ser e o nada. Por isso não é possível escapar ao alcance de sua atropelada. Mas não se trata de uma totalidade extensiva, apenas. É também o questionamento mais profundo do Pensamento. Pois não se contenta com muito. Quer tudo. Somente o satisfaz o último fundamento e o derradeiro porquê. O porquê do porquê não o atrai. É um marcar passo no mesmo nível. Por isso apenas um porquê é capaz de levá-lo à plenitude de seu viço interrogativo: o porquê que extingue a necessidade de outro porquê e abole a possibilidade de ulterior questionamento. Com e por ser a mais extensa e profunda, a questão filosófica exige também um questionamento originário. É um questionamento matinal. Remonta à primeira manhã, “à aurora dos dedos de rosa” da aventura ocidental: aparecimento, comparecimento e desaparecimento contemporâneo da terra, do homem, do mundo e do céu: dia e noite da história do Ocidente.

Por isso tudo, a questão filosófica do Pensamento não é uma questão entre muitas outras. É a única questão, por ser ao mesmo tempo a mais universal e a mais concreta, a mais simples e a mais difícil, a mais indeterminada e a mais determinante. É a questão que mais nos tem, atém e detém, a única que, em sua obscuridade mesma, esclarece e nutre todas as demais questões. Sendo a questão extra-ordinária, tem por instância o ser, fundo de sustentação (hy-archei) de todo é, de todo era, de todo será: o verbo mais ordinário e banal, a experiência mais corriqueira e comum, a primeira palavra das línguas ocidentais, em que desde sempre a Linguagem nos é concedida.

A audácia da questão filosófica não conhece limites. O Pensamento se entrega todo a questionar. A interrogação é levada até aos confins das possibilidades interrogativas e corta para si mesma qualquer ajuda que não advenha da própria interrogação. Isto significa: na Filosofia, pelo tremor da vertigem interrogativa, o próprio real cambaleia em toda a sua extensão. Falta-lhe o chão e se apresenta a finitude do questionamento. Abre-se o abismo do Nada, que o questionamento não consegue exorcizar de todo. O Nada nunca deixa de constituir a terra natal de todo questionamento, a fonte de qualquer interrogação, a própria possibilidade de arrancar e mover-se de sua audácia de pensamento.

É de tal monta a presunção essencial do Pensamento, na Filosofia, que uma solidão audaciosa constitui a provocação para pensar da própria questão filosófica fundamental. Para a Fé originariamente cristã, tudo isto não passa de loucura, que o Apóstolo denunciou no primeiro capítulo da Primeira Epístola aos Coríntios (1,18-22):

A doutrina da cruz é loucura para os que se perdem, mas é poder de Deus para os que se salvam. Consoante está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes". Onde está o sábio? Onde, o erudito? Onde está o debatedor das coisas do mundo? Deus não transformou em loucura a sabedoria do mundo? Porquanto na sabedoria aprouve a Deus servir-se da loucura da pregação para salvar os que creem.

Assim no questionamento da questão filosófica o crente denuncia o delírio e a tentação do saber. Filho de Deus, irmão de Cristo, o cristão não necessita da vertigem interrogativa do Pensamento. Pois já está ancorado na Fé que o protege de qualquer ousadia metafísica. Goza da proteção do Deus que canta o Salmista: “O Senhor é meu pastor, nada me faz falta” (Salmo 22,1). O que é crer, diz o Autor da Epístola aos Hebreus: “A Fé é a consistência do que se espera e a adesão às coisas que não se veem” (Hb 11,1). À visão do filósofo se contrapõe a convicção do crente, à audácia do questionamento se opõe a aceitação da crença que consente a uma verdade obscura para o conhecimento, mas brilhante de revelações para a vida do crente.

A vigência da Fé, em que mora e vive o cristão, é um espaço de verdade originária, isto é, irredutível, indeclinável e incompreensível para a atitude interrogativa do filósofo. O modo próprio de se estar na Fé não é apenas uma forma e um modo de ser da existência, ao lado de outros modos e de muitas outras formas. O testemunho, que de si mesma dá a Fé, pertence à própria Fé. Neste testemunho, a maneira de se estar na crença não provém de uma simples escolha nem resulta do esforço de uma conquista. É um dom da própria Fé. A Fé do cristão é graça e não preferência. A Fé na “loucura da cruz” inclui em si tanto um conteúdo, como um processo todo próprio. O consentimento já é em si mesmo Fé e dádiva de misericórdia. O cristão é o homem em quem Cristo vive e a quem é dado ser testemunho vivo do próprio Cristo. Fé não é ideologia. É transformação do modo de pensar, de sentir, de agir, uma verdadeira metanoia. Por isso, para o cristão, todo não cristão nunca é o inimigo, o adversário ou mesmo o estranho. É o irmão, um cristão virtual que o Sangue Redentor de Cristo já salvou na cruz.

Um cristão nunca sabe se crê realmente. Pois a Fé não é uma questão de saber. Não basta voltar-se sobre si mesmo e conferir as disposições da própria consciência com as prescrições de uma doutrina e os padrões de uma moral  . O cristão crê simplesmente, aceitando com simplicidade a graça da Fé. Mas este não saber não se deve tomá-lo por cegueira. Cegueira é ainda uma forma, embora privativa, de saber. Por isso este não saber não significa que a Fé vive entre dúvidas e hesitações. Significa que a Fé não pertence nem passa pelo reino do conhecimento e, por isso mesmo, se esquiva a todo questionamento e a qualquer interrogação. A Fé só pode ser mesmo objeto e processo de Fé. Contra a interpretação de Hegel, o cristão não sabe em que crê, sobretudo quando crê da maneira requerida pela Fé. Em S. Agostinho  , o seio da famosa frase: seio cui credidi (2Tm 1,12) (sei em que acreditei!), não tem o sentido de um saber sem crer, diz pelo contrário que a convicção da Fé é dom da graça do próprio crer.

E, não obstante, estar na Fé não exclui e, sim, inclui estar na verdade, e numa verdade originária. O mundo brilha numa outra luz. Tudo se transforma. É que o fiel mora num país em que a paisagem é da graça e toda a economia é da salvação. Por toda parte o cristão descobre a irrupção e o advento de Deus na história dos homens. Mas o Deus da Fé não é o Absoluto da Filosofia, uma mediação sem mediador. Embora condicionada pela verdade do ser, que instala o lugar de origem da existência e proporciona o princípio da historicidade, a. Fé dá ao cristão um outro alento. O fundamento ontológico da historicidade não basta para constituí-la nem fundá-la como Fé salvífica da história dos homens. É-lhe, apenas, condição necessária de possibilidade e nunca princípio de vida e mobilização. Muito ao contrário. Modo de existir diferenciado pela participação no acontecimento salvífico da Redenção, a Fé permanece em sua essência sempre “eventual” e indiferente à verdade originária do ser que inaugura a historicidade, realidade ontológica de toda realização humana, mas nunca evento histórico de salvação. Saber o que se desvela na crença da Fé só com os recursos do questionamento é igualmente impossível tanto para o crente como para o descrente. Pois o que se revela imediatamente na Fé cristã é a crença no Deus crucificado, “escândalo para os judeus, loucura para os gentios". Não é a onipotência da Causa Primeira, mas a misericórdia do Pai Celeste que entregou o próprio Filho para a salvação do mundo. Quaisquer que sejam os arcanos e o vigor do horizonte aberto pela Fé, uma experiência o cristão sempre faz: a obscuridade da Fé nunca é cega. É sempre perspicaz. Pois vê todas as coisas, o mundo inteiro, na luz de uma verdade invisível, mas revelada, que a própria Fé acende. No mundo cristão não se dá uma luz do conhecimento ao lado de uma luz da crença, uma luz do sol junto a uma luz do homem, uma luz natural com uma luz sobrenatural. É o sentido contemplativo da frase de C. Péguy: le surnaturel est charnel “o sobrenatural é carnal". Para o cristão, tudo irradia a luz da Fé. Como disse Angelo Silésio numa experiência de contemplação: “para ver Deus, basta meu coração virar-se para a luz, como faz a rosa"!

Enquanto cristão, o cristão não sabe nem precisa saber que mora na verdade e pertence à história do ser. Mergulhado na luz da Fé, ignora os pressupostos ontológicos e as condições de possibilidade de sua Fé. Por isso é que para o fiel a Filosofia é uma loucura. Não o seduz a avalanche do questionamento nem o toca a vertigem interrogativa do Pensamento nas peripécias da Filosofia. Mas, por outro lado, a proteção dada pela Fé não é isenta de perigos. Uma inquietude essencial é constitutiva da crença. Sob pena de banalizar-se numa atitude de tibieza, o crente permanece sempre exposto à possibilidade da descrença. É o “espinho na carne” que o atormenta continuamente. Todavia não se trata de dúvida e hesitação, insegurança ou ambivalência. A inquietação do crente é tão irredutível à dúvida, como a verdade da Fé o é à verdade do conhecimento. Os existenciais da Fé não são os mesmos do Pensamento. Enquanto crente, o crente não se interroga nem se examina acerca de sua crença. Para fazê-lo teria de sair do horizonte da Fé. O aguilhão da crença não pode ser a interrogação do pensamento. Estranha às flutuações da dúvida, a crença não necessita ter certeza. Ela é a sua própria verdade. Por isso também não pode ser ameaçada pela dúvida. O aguilhão da Fé é a infidelidade. É esta que gera a dúvida e não vice-versa. O tormento da infidelidade acompanha sempre a vida do cristão. Ser cristão inclui sempre a vigilância, o dever de vigiar com o Cristo da Fé, em agonia no Getsêmani, até à consumação dos séculos: “vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito está pronto mas a carne é fraca” (Mt 26,41). Não é para se entender esta presença da infidelidade na Fé, da descrença na crença, como uma dialética de constituição. A vigência da Fé está fora de qualquer dialética. Não é a infidelidade que, entrando em tensão com a fidelidade, constitui a Fé. Não! É a própria Fé que se expõe sempre, e por si mesma, à possibilidade da infidelidade, a fim de poder manter viva e atuante a fidelidade do crente. É o testemunho de São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios 12,7-10:

E para que a grandeza das revelações não me levasse ao orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, que me esbofeteia e me livra do perigo da vaidade. Três vezes roguei ao Senhor que o afastasse de mim. Mas três vezes ele me respondeu: “basta minha graça porque é na fraqueza que a força chega à perfeição". Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Pois quando me sinto fraco, então é que sou forte.

Assim o cristão não pode desprezar o filósofo, cuja ousadia o mantém em contínua procura por dentro dos vestígios da passagem histórica do ser. Pois o cristão não é aquele que já encontrou o que o filósofo sempre procura. O mundo da Fé e o mundo do Pensamento não são homogêneos. A “resposta” da Fé não responde à pergunta do Pensamento, por não se corresponderem pergunta e resposta. A Fé nunca pode ser uma solução para a angústia ontológica do Nada, como “a resposta” do Pensamento nunca pode ser uma solução para a inquietude da Fé. O que ambas podem vir a ser uma para a outra, é apenas a dissolução uma pela outra. Vãs, portanto, e de uma vaidade radical, são as tentativas de se afrontarem Fé e Pensamento, disputando as pretensões da serenidade e da inquietude: pois cada qual possui sua verdade e cada qual tem seu aguilhão. Nem a Fé, nem o Pensamento podem aliviar a angústia radical da existência, sem desfigurar a própria essência. Conservando-se o que são, só podem mesmo conferir à história dos homens mais gravidade, e de uma maneira exclusiva e peculiar a cada uma.

Em suas oposições irredutíveis, as duas modalidades de existir, a Fé e o Pensamento, não têm por fundo um mesmo domínio, o mundo da existência humana, divergindo apenas no modo de abordá-lo, a saber, pelo questionamento, uma, e pela crença, a outra. Trata-se de dois mundos diferentes e irreconciliáveis. Esta foi a reação da primeira comunidade cristã, desde os tempos apostólicos até aos chamados Padres Apologetas, ao contacto e encontro com a sabedoria grega. Era a época do “primeiro fervor", antes da constituição da Teologia.

Uma atitude análoga de separação irredutível só voltou a acontecer em plena Idade Moderna, com a progressiva dessacralização do mundo que terminou no materialismo puro e simples. Entre estes dois extremos de concordância invertida se localiza o fenômeno histórico-cultural do Cristianismo com sua teologia, suas instituições e ritos, seu império e poder. Embora com diferenças e percalços de avanço e retrocesso em diferentes regiões, a “Europa   dos Povos” foi praticamente dominada pelo Cristianismo, até a segunda metade do século passado.


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