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O FUNDAMENTO EM HEIDEGGER

Blanc: A ÁRVORE-RAIZ, DIAGRAMA DA FILOSOFIA

terça-feira 30 de maio de 2017, por Cardoso de Castro

Excertos de Mafalda Faria Blanc  , O Fundamento em Heidegger, p. 245-248

Deleuze   (Cf. Deleuze, Gilles, Différence et Répétition e Logique du Sens) distingue três acepções de fundamento, correspondentes àquelas etapas da história da filosofia, ao longo das quais esta vai realizando a ideia programática de ontologia - a descrição e ordenação das principais estruturas do ser do ente.

A primeira acepção de fundamento é a identidade. Surgindo com a determinação platônica do ser como ideia, ela inaugura «(…) o domínio da representação, preenchido pelas cópias-ícones e definido, não pela relação extrínseca a um objecto, mas por uma relação intrínseca ao modelo ou fundamento.» A referência à unidade paradigmática da ideia constitui o critério da destrinça entre o diverso aparente e o ente singular bem fundado. Aprofundando o projeto platônico, Aristóteles   confere um estatuto ontológico à fenomenalidade, atribuindo-lhe consistência e inteligibilidade pela via lógica da relação entre os gêneros e as espécies.

A segunda acepção de fundamento é a identidade da diferença. Fundar significa agora tornar infinita a representação, alargando os seus limites ao infinitamente grande e pequeno, abrindo-a ao ser, para lá dos grandes gêneros, e à pluralidade dos indivíduos, para lá das mais pequenas espécies. Esse supremo esforço da filosofia para submeter a diferença ao conceito deve-se a Hegel   e a Leibniz  .

Aquelas duas acepções de fundamento reúnem-se numa terceira, em que fundar significa distribuir todas as coisas no círculo único de um princípio fundador, que as apreende no seu centro e as reparte pela sua conferência.

A óptica da generalidade, que a interrogação socrática inaugura como específica da filosofia, conduz à elaboração de uma hierarquia conceptual e, por aí, à inevitável interpretação ôntica do fundamento como o supremo e último grau de generalidade. Heidegger acerta assim no alvo ao caracterizar como onto-teo-lógica (onto-theo-logische  ) a estrutura da inauguração filosófica.

No entanto, a perspectiva ôntica não é a única tematização possível do fundamento, como ficou mostrado pelo nosso trabalho de interpretação do fundamento em Heidegger. Mais aquém da teologia e da egologia, já não como o topo da hierarquia dos entes ou o princípio genético da sua constituição, mas como o modo ontológico do aparecer, o fundamento assume na obra de Heidegger o carácter dessa estrutura-Logos   de presencialidade, de acordo com a qual, de cada vez, a manifestação ocorre.

Não obstante as fundamentais diferenças, as versões ôntica e ontológica do fundamento são indiscutivelmente figurações de uma mesma ideia. Forçoso é então perguntar: quais são os traços formais comuns que caracterizam o pensamento do fundamento como tal? Abre-se assim um espaço de investigação que excede obviamente o quadro restrito da nossa dissertação. Limitar-nos-emos, por isso, a dizer alguma coisa sobre o seu significado e interesse  .

Determinar as categorias que informam o espaço mental circunscrito pela ideia de fundamento significa recortar a imagem filosófica do «real» e, através dela, tomar consciência da tipicidade desta interpretação do que nos força a pensar. À primeira vista simples exercício de formalização, não será este trabalho já um primeiro passo em direção à libertação do pensar para outras possibilidades?

Na sequência de Heidegger mas mais radicalmente que este, Deleuze é, tanto quanto sabemos, o pensador que mais longe foi na exploração daquela geografia do fundamento.

Assim, é com a imagem da árvore-raiz que ilustra o espaço mental da filosofia, principalmente orientado para a derivação do múltiplo a partir de uma unidade prévia. A ela opõe a imagem do rizoma, diagrama de um outro modo de pensar a «physis  », como produção distributiva de uma diversidade não totalizável.

Com o modo de pensar rizomático pretende-se estabelecer uma relação com as coisas diversa da relação arborescente própria da filosofia e dar a palavra a todos os gêneros de devir por esta silenciados: «A árvore impõe o verbo ser.; mas o rizoma tem como textura a conjunção e… e… e… Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser.» Não se trata apenas de uma substituição de modelos, no espaço neutro onde as interpretações se guerreiam, mas de um novo exercício do pensar, de uma nova forma de ser interceptado por aquilo que o força a pensar: «(…) instaurar uma lógica do E, derrubar a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo (…) fazer uma pragmática.»

A árvore dominou toda a realidade ocidental, estruturando a sua prática e a sua teoria em torno da ideia de um fundamento—raiz. Pelo contrário: «Contra os sistemas centrados (mesmo policentrados), com base numa comunicação hierárquica e em ligações preestabelecidas, o rizoma é um sistema acentrado, não hierárquico e não significante, sem Geral, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados.»


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