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Considerações sobre a crise do senso comum

Barbuy: senso comum (4) - realidade

Revista Brasileira de Filosofia, vol. III, fasc. 4, 1953

quarta-feira 6 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 145-146.

4. A negação do existencial nos idealismos derivados de Kant   — em particular no de Hegel   — criou a necessidade artificial de uma reconstrução do mundo pelo próprio homem, agora abandonado a si mesmo, mas tomado da consciência idealista de que a realidade decorre dele mesmo e será tal qual sua razão a construir e sua vontade a plasmar: esta é [145] uma dimensão do criticismo kantiano, que atribui ao homem a tarefa de plasmar e replasmar o mundo, num desesperado esforço de retorno ao concreto; tal é a herança romântica de Kant, por onde se encontra revivendo a crença na façanha do herói e no poder mágico da vontade; negada a realidade concreta pelas abstrações científicas, produto da decomposição do homem pelo racionalismo, a tarefa da filosofia romântica, ainda apegada à tradição e ao mito, foi replasmar a realidade perdida, no termo de uma ação transfiguradora; é por isso que a crise espiritual do mundo moderno tem no idealismo um espírito muito diverso do que tem no positivismo: este último nega ao contrário a grandeza da ação e a magia da vontade, afirmando a natureza material como produtora e não como produto do homem. Mas o idealismo, cortadas as relações do homem com a realidade pela morte da metafísica, se caracteriza pela tentativa de lançar uma ponte entre o nada e o ser, como quando se vê o Espírito Absoluto ou o Ego   Absoluto determinando-se para tirar o ser do nada e construir de novo a realidade. O voluntarismo contemporâneo exprime justamente o esforço com que se procura cobrir o abismo kantiano entre o pensamento e a realidade, por meio de um encontro que restabeleça o contato do homem com o mundo da sua vivência. Não é outro o sentido da vigorosa separação operada por Windelband, Rickert e Dilthey   entre as ciências da natureza e as ciências do espírito, enquanto o positivismo se preocupava ainda em fechar toda a realidade nos limites das ciências naturais.

Ora, se o mundo não é construído essencialmente pela vontade humana, também a vontade humana não é construída pelo mundo; o idealismo e o positivismo são duas linhas divergentes que nasceram do abandono do senso comum e da realidade. A realidade não se explica por uma ação pura da vontade e muito menos pelas ideias claras e distintas e pelas fórmulas algébricas que se detêm na superfície do fenômeno, no mundo rotineiro das relações, sem penetrar os abismos e mistérios sobre os quais os fenômenos se suspendem.